Capítulo 6: O que eu te disse aquele dia?

Algumas semanas já haviam se passado e apesar de não sentir mais tanta dor, eu ainda não havia me acostumado com as atividades noturnas e passei a acordar todo dia quando o sol já estava alto. Aquele dia não era exceção. Sentindo uma fraqueza no meu corpo febril, não pude evitar um xingamento.

“Bastardo…”

Peguei o interfone e no segundo toque, Sebastian atendeu.

‘Sim Ma’am’

— Me traz um analgésico e um suco, por favor.

‘Sim Ma’am’

No tempo que levei no banho para lavar toda aquela impureza no meu corpo, o remédio foi depositado na minha cabeceira. Tomei e voltei a deitar. Pouco tempo depois ouvi o celular tocar. Era Trin.

‘Lián, Lián! ’

— Oi Trin — Pigarreei. —  Você não deveria estar no cursinho de escultura?

‘Isso foi antes do almoço… Você tem noção de que horas são agora? ’

— Foi mal, eu acabei de acordar. Não me dei conta do horário. 

‘Sua voz parece rouca… Está gripado?’

— Não, deve ser muita água gelada que eu bebi ontem.

‘…’

— É sério, vou chupar uma pastilha e daqui a pouco fico ótimo.

‘O que está acontecendo? Você nunca conseguiu continuar dormindo depois das 8h antes e agora todo dia acorda tarde assim’ 

— Não é nada, fiquei acordado até de madrugada ontem, lendo.

Preferi não deixar que ela soubesse que não foi exatamente leitura o que me impediu de dormir cedo, nem que se preocupasse comigo então tentei disfarçar.

‘…’

Silêncio pairou por um momento até que Trin voltou a falar em um tom mais sério:

‘Se não quiser me contar, eu vou entender. Mas não ouse mentir para mim. Te conheço melhor do que você mesmo. ’

— Ahh… Não é nada demais. É sério. 

Sabia que meu tom de voz não era convincente e fiquei tenso ao ouvir ela suspirar.

‘Phew… Tá, lembra no segundo ano quando você tava mal depois de passar o final de semana na casa dos seus pais e eu te levei para passear? ’

— Você quer dizer a vez que você me convenceu a fugir do internato no meio da noite e que deixou a gente de castigo e sem almoço por 15 dias? Lembro sim.

‘Detalhes, detalhes… Enfim, o que eu te disse aquele dia? ’

2 ANOS ATRÁS

Eu estava chorando no armário escondido mais uma vez após vir da casa dos meus pais quando Trin apareceu, brava.

— Eu não acredito que você vai chorar por aqueles lunáticos de novo! 

— Eu nã-.

Tentei negar, mesmo sabendo que ela sempre me pega no ato.

— Ah, menos! Como eu vou conseguir seguir com meu propósito se você não me ajudar?!

— Propósito?

Fiquei realmente confuso no momento sem saber do que ela estava falando.

— Eu decidi há muito tempo que minha missão nessa terra é te ajudar a encontrar a felicidade e vou fazer de tudo pra cumprir o meu objetivo. Nunca se esqueça disso. Entendido?

Balancei a cabeça em afirmativa. Achava aquele sonho um pouco fora da realidade, mas ainda sim, foi bom ouvir tais palavras.

— Agora, limpa essas lágrimas que eu vou te fazer sorrir muito hoje!

Seu tom mudou instantaneamente. Conheço aquele sorriso. Ela deve estar aprontando alguma coisa.

— Como assim?

Um frio na barriga foi inevitável pois ela sempre nos metia em confusão.

— Eu sei que você quer ir naquele parque novo desde que inaugurou. Hoje é o dia! 

— Mas como? Não temos permissão para sair do internato fora das datas especiais. 

Olhei desconfiado para ela, à medida que ela expandia ainda mais aquele sorriso travesso.

— Relaxa, eu tenho um plano.

— I-isso não vai dar certo…

Eu olhava incrédulo para meu reflexo no espelho banheiro. Não conseguia acreditar em como as roupas da Trin caíram em mim como uma luva. Realmente era uma imagem que me deixava muito angustiado. E aquela saia, por mais longa que fosse, era muito desconfortável. 

— Qual é Lián, confia em mim, vai dar tudo certo! Deixa eu ver como você ficou. 

Saí do banheiro totalmente sem jeito. A reação da Trin só piorou mais ainda já que ela parecia ter congelado no tempo. Quando eu tive confiança em olhar no seu rosto, fiquei perplexo. Ela parecia um menino de verdade. Ninguém seria capaz de dizer que não. E na versão masculina, ela conseguia ser ainda mais linda. Definitivamente fora abençoada pela genética.

— Não deveria ser um pecado você ser tão bonita? Minhas roupas ficaram melhores em você do que em mim…

Por um momento esqueci que estava apavorado. A pele morena dela contrastava perfeitamente com minhas roupas brancas.

— Hahaha, obrigada? 

— Você definitivamente deveria tentar ser modelo. 

— Não ligo para essas coisas e pra mim, você é muito mais bonito.

Antes que eu pudesse identificar se era sarcasmo ou não, ela riu e bagunçou a minha peruca.

— Vamos, está quase na hora da troca de turnos dos guardas.

Nós escapamos com certa facilidade, o que me surpreendeu. Não imaginei que seria tão fácil. Quando chegamos no parque, fiquei maravilhado. 

— Senhorita?

Demorei um momento para entender enquanto ela estendia a mão para mim. Foi muito embaraçoso quando percebi a placa enorme dizendo que aquela noite a entrada no parque era exclusiva para casais. Enquanto ela esbanjava um sorriso enorme, peguei sua mão timidamente e entramos.

Fomos em todos os brinquedos e barracas possíveis. Não conseguimos ganhar nenhum prêmio, mas como eu tinha gostado de um marcador de páginas de casal, da minha escritora favorita, a Trin comprou e nós dividimos já que ambos gostamos muito de ler. Naquela noite, eu realmente ri como nunca, dando à Trin aquela sensação de dever cumprido por me deixar feliz. Quando deu meia noite, assim como na história da Cinderela, voltamos apressadamente para o internato para não perdermos a troca de turnos dos guardas. 

Infelizmente, não tivemos tanta sorte na volta pois a carrasca, como costumávamos chamar a supervisora, nos aguardava na porta do quarto. A nossa aventura acabou nos concedendo um castigo e tanto. Tivemos que ficar ajoelhados no milho por uma hora durante o intervalo, sem almoço, por 15 dias.