Capítulo 35 - Hereditariedade - 04

“…Lembro-me de que Ah Hu tinha começado a trabalhar há pouco tempo. Quando soube que ele tinha causado tantos problemas, fiquei realmente…”

Yin Jiaming se sentou ao lado de Ye Huairui, contando seu passado com Ah Hu para a única pessoa que o poderia acompanhar.

Essas memórias eram bastante triviais, mas Yin Jiaming falou seriamente, e Ye Huairui ouviu atentamente.

“Mas não foi culpa dele. Foram aqueles dois estrangeiros que o pressionaram demais, forçando Ah Hu a agir…”

Nas lembranças de Yin Jiaming, Ah Hu era um homem teimoso, honesto e impulsivo que frequentemente se metia em problemas, mas era leal e justo.

Quando Ah Hu tinha acabado de ser contratado como segurança do hotel, uma noite, durante seu turno, ele flagrou dois hóspedes estrangeiros intimidando uma funcionária no corredor.

Esses homens tinham bebido um pouco e, confiando na suposta superioridade da nacionalidade de seu país de origem, insistiram em arrastar uma jovem garçonete para seu quarto.

A garota ficou apavorada naquele momento, tanto que não conseguia nem gritar. Suas pernas estavam fracas e ela não conseguia ficar de pé, ficando à mercê dos dois homens altos que a arrastavam para dentro do quarto, um de cada lado.

Naquela época, tais incidentes eram quase comuns.

Se uma garota sofresse por causa disso, ela não só não teria como buscar justiça, mas receber uma indenização de duzentos yuans seria considerado um gesto generoso do empregador.

Contanto que ninguém morresse, ninguém realmente se importava.

Mesmo que ocorresse uma morte, os envolvidos certamente não enfrentariam punições severas. Poderiam gastar algum dinheiro para apaziguar a situação, retornar ao seu país de origem para se manterem discretos e resolver um caso de assassinato com a mesma facilidade com que arrancam um post-it.

Felizmente, a garota teve a sorte de encontrar Ah Hu durante sua patrulha no momento crítico.

Aquele sujeito simplório não se importava se os agressores eram moradores de Jincheng ou hóspedes ilustres de outro país. Ao ver a garota sendo intimidada, ele correu e deu um soco.

Ah Hu, sendo inarticulado e sem conhecimento de nenhuma língua estrangeira, enfrentou dois estrangeiros acostumados à arrogância. Naturalmente, eles não desistiram depois de serem atingidos.

Então, os dois lados começaram a brigar, com socos, chutes e gritos, transformando a cena em um caos total…

Quando Yin Jiaming, o gerente geral, recebeu a notícia e correu, os dois estrangeiros encrenqueiros já haviam sido levados ao hospital, esperando que os médicos tratassem seus ferimentos, enquanto Ah Hu já havia sido levado para a delegacia de polícia…

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“E depois disso? O que você fez?”

Ye Huairui não pôde deixar de perguntar.

A essa altura, Ye Huairui já tinha uma certa compreensão de como era Jincheng nas décadas de setenta e oitenta.

Ele podia imaginar que um sujeito pequeno e insignificante como Ah Hu, caindo no sistema policial ainda controlado pelo governo colonial por agredir estrangeiros, passaria por momentos difíceis, se não piores.

“O que mais eu poderia fazer?”

Yin Jiaming riu baixinho:

“É claro que eu tinha que encontrar uma maneira de o tirar de lá.”

Para salvar aquele sujeito cabeça de ferro que estava empregado há menos de três meses, Yin Jiaming fez de tudo.

Ele pagou indenização, mexeu os pauzinhos e até teve que pedir ajuda ao seu velho pão- duro, gastando uma quantia considerável de dinheiro. Finalmente, três dias depois, conseguiu libertar Ah Hu.

Naquela época, Ah Hu já estava espancado no centro de detenção, coberto de ferimentos e com um grande corte no canto da boca, o que dificultava sua fala correta.

Yin Jiaming não culpou o sujeito por causar tamanho problema. Depois de o tirar dali, apenas perguntou como ele se sentia e se queria ir ao hospital para um check-up.

Ah Hu ficou profundamente comovido, mas, por ser inarticulado, não sabia nem como expressar sua gratidão. Quando Ming ge perguntou como se sentia, sua mente ficou em branco, e ele respondeu: “Não precisa ir ao hospital, mas estou com fome.”

Então, Yin Jiaming não teve escolha a não ser o levar para comer macarrão wonton.

Naquela época, Zhao Cuihua também estava lá, acompanhando Yin Jiaming durante toda a provação e, naturalmente, ele se juntou a eles para a refeição.

No entanto, o Camarada Cuihua, tendo vivenciado ocasiões mais grandiosas, sentiu que o macarrão wonton era muito comum e indigno de um momento tão histórico de sobrevivência a uma grande provação. Ele insistiu em trocar para uma tigela grande de miúdos de boi e arroz com carne assada, mas Yin Jiaming recusou firmemente.

Ah Hu disse que não se importava; macarrão wonton estava ótimo.

#Havia uma garota naquela loja de miúdos que parecia ter um certo interesse em mim, mas eu não gostei dela. Não queria causar mal-entendidos, então simplesmente não fui.”

Nesse momento, Yin Jiaming ergueu a cabeça, encostando as costas na parede. Sua voz estava rouca, soando como um suspiro, ou talvez uma autodepreciação:

#Pensando bem agora, que importância essas coisas têm? …Viver não é só ser despreocupado? Comer o que quiser, fazer o que quiser… Eu realmente sou um líder inadequado…”

Ye Huairui detectou a autorecriminação nas palavras de Yin Jiaming.

Ele queria dar um tapinha no ombro ou no braço da outra pessoa, como se estivesse confortando um bom amigo, para lhe dar algum incentivo e apoio.

Sua mão já havia se estendido instintivamente quando Ye Huairui se lembrou de que ele não podia tocar Yin Jiaming.

Sua mão ficou pendurada desajeitadamente no ar e, naquele momento, Yin Jiaming virou a cabeça e percebeu sua ação.

“Ahem.”

Ye Huairui pigarreou e levou o punho aos lábios.

“Este assunto… realmente não é culpa sua.”

Ye Huairui disse:

“Ninguém poderia prever que algo aconteceria de repente com Ah Hu. E além disso…”

Ele fez uma pausa para escolher as palavras com cuidado:

“E além disso, a razão pela qual Ah Hu morreu é muito suspeita em si.”

“…”

Yin Jiaming não disse nada. Apenas apoiou as mãos no chão, sentou-se ereto e virou a cabeça para observar silenciosamente a silhueta humana semitransparente ao seu lado.

“Ah Rui, o que você acha?”

Depois de um longo tempo, ele disse a Ye Huairui:

“Preciso ouvir sua opinião sobre esse assunto.”

Ye Huairui assentiu.

Ele não se apressou em compartilhar seus pensamentos, mas primeiro integrou cuidadosa e completamente as informações em sua mente.

“A polícia do seu lado tratou a morte de Ah Hu como um assassinato de vingança, certo?”

Ye Huairui disse:

“O raciocínio deles é que o método do crime se enquadra nas características de uma ‘vingança’.”

No início da década de 1980, em Jincheng, a indústria de jogos de azar era extremamente próspera e a segurança pública era bastante precária. As atividades de gangues eram particularmente desenfreadas, com incidentes violentos frequentemente decorrentes de disputas sobre agiotagem, operações de apostas e contrabando.

A polícia de Jincheng tinha efetivo e recursos limitados e, ao contrário de agora, não havia câmeras de vigilância por toda parte. Manter a ordem pública já era um grande desafio. Era impossível para eles investigarem cada briga e caso de ferimento entre os bandidos de menor potencial ofensivo.

Naquela época, a polícia de Jincheng tinha um termo vívido para as brigas que ocorriam entre os ‘gangsters’, chamando-as de ‘fantasmas lutando contra fantasmas’.

Como nenhum dos lados era considerado bom, eles simplesmente deixaram que resolvessem a questão internamente.

Não importa se essas pessoas ficaram feridas, mutiladas ou até mesmo mortas, desde que isso não se tornasse um espetáculo público, as autoridades muitas vezes faziam vista grossa e deixavam passar.

Portanto, aos olhos da polícia de Jincheng, a morte de Ah Hu foi um simples ‘assassinato por vingança’.

Ah Hu morreu em um beco isolado, com inúmeras facadas de uma arma afiada em seu corpo, sucumbindo a ferimentos graves e perda excessiva de sangue.

Além das facadas, o corpo de Ah Hu também apresentava diversas marcas de luta, o que, aos olhos da polícia de Jincheng na época, era prova de que Ah Hu havia reagido.

Por isso, a polícia de Jincheng considerou isso um típico assassinato por vingança.

Embora Ah Hu fosse um segurança de hotel com um emprego legítimo e nunca tivesse se envolvido em atividades de gangues antes, o assalto em Jincheng causou tanto rebuliço que agora, fossem negros ou brancos, todos no submundo sabiam que Ah Hu era um associado próximo de Yin Jiaming.

Se o assassino tentou extrair informações sobre Yin Jiaming de Ah Hu e, sem sucesso, o matou com raiva, ou se simplesmente tinha rancor de Ah Hu e aproveitou a oportunidade para retaliar quando seu apoiador caiu, a polícia viu tudo isso como apenas mais um caso de ‘cães mordendo cães’ em uma vingança.

Então, a polícia deu uma rápida olhada no Hotel Ruibao e confirmou que Ah Hu havia sido demitido no dia do incidente, e que ninguém sabia de seu paradeiro após deixar o emprego. Eles então disseram a Zhao Cuihua, Lele e alguns outros irmãos para ‘esperarem’, e não houve mais nenhuma ação.

Dada a compreensão de Yin Jiaming sobre aqueles policiais, eles nunca iriam investigar seriamente o caso de assassinato de Ah Hu.

Dia após dia, o caso de Ah Hu gradualmente se tornava um caso arquivado, eventualmente se transformando em um mistério sem solução, assim como muitos outros casos semelhantes, que nunca viram justiça.

Se Yin Jiaming não tivesse sido acusado de roubo e assassinato e ainda estivesse solto, ele teria feito de tudo para buscar justiça para Ah Hu.

Mas agora, ele era como um Buda de barro atravessando um rio, incapaz de se proteger. Sem falar em vingar Ah Hu à sua maneira, se o Jovem Mestre Yin ousasse aparecer em público, seu destino poderia ser ainda pior do que ser esfaqueado até a morte.

“Acho que a chave para este caso é o motivo pelo qual Ah Hu foi morto.” Ye Huairui expressou sua opinião. “Os motivos para assassinato geralmente são poucos, certo? Qual você acha que foi o motivo da morte de Ah Hu?”

“Você tem razão.”

Yin Jiaming respirou fundo, livrando-se da tristeza e da dor.

Ao longo do último meio mês, ele se acostumou a discutir casos com Ye Huairui dessa forma.

“Qual seria o benefício de matar Ah Hu?”

Matar uma pessoa não é como matar um cachorro. Envolve correr riscos – além disso, até matar um cachorro traz o risco de ser mordido!

Uma pessoa viva pode correr, gritar e revidar. Um único erro pode não só resultar em fracasso, mas também trazer os riscos inerentes de cometer assassinato – acabar na prisão ou até mesmo ser morto pelo alvo pretendido.

Além disso, Ah Hu era jovem e forte, com uma aparência feroz e difícil de se envolver. Ele não andava com dinheiro e suas roupas não sugeriam que fosse rico. Qualquer pessoa com um cérebro funcional não o teria como alvo para um assalto.

Quanto à alegação da polícia de que alguém poderia ter matado Ah Hu para extrair informações sobre Yin Jiaming, isso era ainda mais absurdo.

A polícia vinha seguindo Zhao Cuihua e Ah Hu há meio mês sem obter nenhuma informação útil. Como alguém qualquer poderia esperar arrancar alguma coisa deles com apenas algumas perguntas?

Mesmo se recuássemos cem passos e assumíssemos que o criminoso procurou Ah Hu para obter informações sobre Yin Jiaming, se não conseguissem arrancar nada dele, simplesmente iriam embora. Não havia motivo para o matar por isso, certo?

Então, se não fosse pelo dinheiro, precisaríamos considerar outra possibilidade.

– O agressor atacou Ah Hu com premeditação e planejamento.

“Mais importante ainda, a hora e o local da morte de Ah Hu.” Ye Huairui lembrou: “Esses dois pontos são contraditórios em si mesmos, certo?”