Doce Rendição

Doce Rendição

Capítulo 2

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O som constante e grave do ar-condicionado zumbia, mal perceptível sob o silêncio meticuloso que envolvia o andar superior da sede da Draeven Enterprises. Ali, onde o concreto parecia respirar com a mesma precisão da lógica empresarial, poucos ousavam passar do limite do elevador sem um convite direto.

A sala do CEO — uma mistura de austeridade moderna e requinte ancestral — parecia pairar acima da cidade como um posto de observação. Nenhuma decoração era supérflua. Nenhuma linha do ambiente existia por acaso. Tudo ali tinha intenção. Como ele.

Lucian estava sozinho.

A luz noturna filtrava-se pelas vidraças escuras, refletindo em fragmentos sobre a superfície envernizada da mesa. Diante dele, um monitor ultrafino exibia os perfis dos candidatos ao novo programa de estágio — um projeto que ele mesmo aprovara, mas ao qual, até então, dedicara atenção mínima. O processo inicial ficava a cargo de outros. Ele se importava apenas com os que chegavam ao segundo nível. Os que passavam pelo crivo invisível de suas expectativas.

Deslizou os dedos sobre o sensor, folheando as fichas digitais. Rostos em miniatura, históricos acadêmicos e breves resumos. Quase todos se repetiam em essência — diligentes, promissores, ambiciosos dentro da margem tolerável.

Até que um nome desacelerou seu gesto.

Noxarian Veleth

O olhar de Lucian se demorou ali. Primeiro no nome. Depois, parou na ausência da fotografia — um espaço em branco onde deveria haver um rosto, uma lacuna formal preenchida apenas por um aviso técnico: foto indisponível.

Ele franziu levemente a testa, não por surpresa, mas por reconhecimento. Aquela ausência era, por si só, um indício. E ele sabia interpretá-los bem. O nome, “Noxarian Veleth”, evocava certa memória, certa presença recente e impossível de confundir. A falta da fotografia não diminuía o impacto — ao contrário, tornava aquele registro ainda mais vívido. Porque Lucian lembrava-se dele. Com exatidão.

Lucian apoiou o cotovelo na mesa, os dedos roçando os lábios, enquanto lia. A ficha era exemplar. O currículo, coerente. A trajetória acadêmica, sólida. Nenhuma contradição. Nenhum sinal de desvio. Mas havia algo que não estava escrito — e isso era o que mais o atraía.

Ele se recostou na poltrona de couro, os olhos ainda fixos na imagem. A lembrança veio com uma nitidez surpreendente.

O evento diplomático do mês passado. Aquele salão ricamente decorado, onde o brilho de taças de cristal disfarçava a tensão das palavras. Ele se lembrava da família Veleth — como poderia esquecer? Todos impecáveis, postados como estatuetas de uma dinastia quase extinta. E ali, um pouco afastado, como se não pertencesse por completo àquele cenário, estava ele.

Nox.

Não rodeado, mas orbitado. Havia uma diferença. As pessoas se aproximavam dele como mariposas em torno de uma chama que não sabiam ser fria. Conversavam, riam, seduziam, e ele… os observava. Participava sem entregar nada. Educado demais para ser rude, mas reservado demais para se entregar.

Lucian observou-o por longos minutos naquela noite, entre uma taça de vinho e outra, entre saudações diplomáticas e promessas vazias. Recordava como o olhar de Nox vagava pelo salão, como se tudo aquilo fosse parte de um jogo cujas regras ele conhecia — e desprezava. Um nobre deslocado. Um erudito escondido sob camadas de convenção.

“Por que você está aqui?” — Lucian perguntou-se em pensamento.

Voltou ao arquivo. Nada sobre isso estava escrito ali. Nenhuma pista de desejo, de inquietação. Nenhuma nota de ambição desmedida. E isso o incomodava. Porque Lucian era especialista em ruídos, em desvios, em sombras. E Nox parecia ter sido esculpido para não deixar rastros.

Digitou um comando simples e puxou a gravação da entrevista. Assistiu sem pressa. A voz de Nox era exatamente como se lembrava: baixa, bem modulada, com o tipo de dicção que transformava até respostas comuns em peças cuidadosamente entalhadas. As palavras não vacilavam, mas também não buscavam impressionar. Ele não parecia tentar convencer Gregory de nada. Apenas… explicava.

“Compreender as simulações pode ser vantajoso.”

Lucian arqueou uma sobrancelha.

A frase ecoava mais do que deveria. Simulações de poder. Máscaras. Curiosidade pelo sistema. Nox não era cego. Ele sabia onde estava entrando. E escolhera entrar mesmo assim.

Não para ver. Para entender.

Lucian desligou a gravação antes de terminar, apoiando-se de novo contra a cadeira. Deixou o silêncio preenchê-lo por um momento. Sentiu-o como um campo magnético ao redor do nome daquele rapaz — uma tensão que ele conhecia bem, aquela fagulha inicial de uma peça que começava a se mover.

Pegou o tablet, abriu a anotação da equipe de triagem. Leu as palavras digitadas por Gregory com certo interesse:

“Instável com elegância. Frio, mas articulado. Ambição camuflada em curiosidade.”

Deslizou o dedo pela tela e adicionou uma marca discreta à ficha.

Selecionado para entrevista final. Deve ser conduzida pessoalmente.

— L.

Depois fechou o arquivo.

O rosto de Nox desapareceu do monitor, mas não da memória. A imagem dele — elegante, solitário, cercado de vozes e ainda assim distante — permanecia gravada como uma nota dissonante numa sinfonia previsível.

Lucian já tinha visto centenas, talvez milhares de candidatos. Mas nenhum como ele.

E se havia algo que Lucian Draeven não ignorava…
Era o som exato que uma exceção fazia ao entrar numa sala.

 

—–

 

Nenhum raio de sol ousava penetrar as janelas arqueadas da mansão Veleth. Espessas cortinas de veludo escuro e persianas lacradas garantiam que a luz do dia jamais cruzasse o limiar. A casa vivia em penumbra constante, sustentada por uma iluminação suave e artificial, meticulosamente controlada — não por capricho estético, mas por necessidade ancestral.

O silêncio ali não era mera ausência de som, mas uma presença imposta, como se cada móvel, cada tapeçaria, estivesse consciente de seu lugar e devesse permanecer imóvel. Uma ordem silenciosa reinava, carregada pelo peso de séculos.

Nox estava à mesa, ainda vestido em trajes mais formais do que a ocasião exigia. A camisa perfeitamente ajustada, o colarinho fechado, o cabelo escovado com precisão quase militar. Diante dele, a porcelana branca exibia frutas cortadas com a mesma meticulosidade com que sua vida havia sido moldada desde a infância.

— Fico aliviado em saber que, ao menos, você tomou uma decisão sensata — comentou seu pai, sem erguer os olhos do jornal digital que pairava como um painel translúcido à sua frente.

A voz era aveludada, contida, mas carregava a mesma rigidez da arquitetura da casa.

— Concordo — interveio sua mãe, enquanto mexia o chá com movimentos lentos, quase ritualísticos. — O mercado anda instável. Um cargo fixo, especialmente em uma corporação de grande porte, é uma escolha prudente. Você sempre teve um senso apurado para isso, querido.

Nox sorriu com comedimento. Era o tipo de sorriso que sabia onde terminar.

— Sim — disse ele, repousando a xícara com cuidado sobre o pires. — A oportunidade parece adequada ao que eu almejava.

Nenhum dos dois fez menção de perguntar onde exatamente ele começaria a trabalhar. Era o tipo de informação que, se fosse importante, teria sido comunicada de forma oficial — preferencialmente por outro membro da família, mais envolvido nos círculos econômicos. A ausência de questionamento, naquele contexto, era uma permissão. E Nox sabia usá-la.

A conversa se dissipou logo após isso, com a elegância fria de um véu retirado após uma cerimônia. Ele não prolongou sua permanência na mesa. Sabia o valor de suas ausências tanto quanto de suas presenças.

O prédio da Draeven Enterprises se erguia no centro da cidade como uma lâmina de vidro cortando o céu. Tudo ali exalava precisão: os elevadores que deslizavam em silêncio absoluto, os corredores revestidos de materiais nobres, a ausência de qualquer sinal de desgaste. Era uma máquina feita para funcionar — e, dentro dela, os corpos eram peças cuidadosamente selecionadas.

Nox se movia com naturalidade discreta. Seu andar era contido, seus olhos atentos, mas nunca invasivos. Já havia conhecido parte da equipe, memorizado nomes e funções com eficiência silenciosa. Observava mais do que falava, e já aprendera que naquela estrutura, o que não era dito era muitas vezes mais revelador do que qualquer instrução formal.

Nos primeiros dias, o trabalho consistia sobretudo em leitura e familiarização com os protocolos internos. Nox mantinha uma compostura irrepreensível, entregando relatórios com clareza e sem pretensão. Ainda assim, sentia os olhares curiosos de alguns colegas — não pelo sobrenome, que ele não havia usado abertamente, mas por algo mais tênue. Talvez por não parecer estar se adaptando, mas simplesmente… pertencendo.

 

—–

 

Naquela noite em particular, o ar parecia vibrar com uma tensão contida. Murmúrios se espalhavam como eletricidade estática: sussurros sobre alguém no prédio, sobre movimentações incomuns no andar superior. Pessoas ajustavam gravatas com mais frequência, retocavam a maquiagem ao se verem refletidas nas portas espelhadas do elevador. Nox percebeu tudo — sem comentar nada.

Foi ao descer ao segundo andar que ouviu a primeira confirmação verbal.

— Lucian Draeven está aqui. Pessoalmente.

A frase foi dita num sussurro quase reverente por dois funcionários próximos à recepção. Havia um brilho estranho nos olhos deles — medo, talvez, misturado a um respeito visceral.

Nox continuou andando, mas sua mente ficou presa naquela informação. O nome não era estranho. Fora mencionado algumas vezes, em voz baixa, durante reuniões anteriores. O CEO. O nome que sustentava a reputação daquela empresa como um império. Um nome que sempre parecia vir acompanhado de algo não dito.

Ele não esperava encontrá-lo tão cedo. Mas a presença era inegável.

E então o viu.

Lucian. Cercado de executivos seniores, trajes escuros contrastando com a luminosidade dos corredores. Ele se movia com uma calma que era mais perigosa do que pressa. Sua presença deslocava o ar, como se o mundo ao redor precisasse se ajustar a ele, e não o contrário.

Nox parou instintivamente. Não por hesitação, mas porque o momento exigia contemplação.

Lucian ouvia alguém com atenção cortante, os olhos levemente semicerrados como se medisse cada palavra. Quando sua expressão relaxou, foi apenas o suficiente para formar um cumprimento polido.

Então seus olhos cruzaram os de Nox.

Não havia pressa no modo como Lucian se aproximou. O silêncio parecia acompanhá-lo como um cão fiel. Os passos eram medidos, o olhar firme, mas nunca agressivo. Ele estendeu a mão com uma tranquilidade impossível de simular.

— Noxarian Veleth, não é? — disse, a voz baixa e perfeitamente modulada.

O nome foi pronunciado sem peso, como se Lucian soubesse exatamente o que ele carregava e, mesmo assim, decidisse não dar a ele poder algum.

Nox apertou a mão estendida. A pele de Lucian era quente, o toque firme sem ser bruto. Um gesto calculado para transmitir domínio sem imposição.

— Senhor Draeven. É uma honra. — A voz de Nox manteve o mesmo tom controlado, mas havia um brilho atento nos olhos.

Lucian inclinou levemente a cabeça.

— A honra é mútua. Tenho acompanhado seu progresso. Discreto, mas eficiente. Gosto disso.

A frase, dita com simplicidade, trazia camadas ocultas. Um elogio? Um aviso? Nox não soube definir. Mas sentiu o peso do olhar sobre si, como se estivesse sendo lido mais do que visto.

— A estrutura da empresa é impressionante — respondeu ele. — Estou curioso para ver como funciona em seus níveis mais profundos.

Lucian sorriu de leve. Não um sorriso social. Um daqueles que guardam um subentendido.

— Se continuar nesse ritmo, vai ver mais do que imagina.

A frase flutuou entre eles por um segundo, antes de Lucian ser chamado de volta por um assistente. Ele se despediu com um aceno mínimo e se afastou com a mesma compostura meticulosa com que havia chegado.

Nox ficou parado por um momento.

Algo em seu peito havia se movido.

Ele estreitou os olhos, os pensamentos girando de forma ordenada, mas inquieta. Não era a primeira vez que via aquele homem. Tinha certeza. Algo na forma como Lucian o olhara — ou como não precisara olhar duas vezes — havia despertado algo em sua memória.

Mas de onde?

Essa pergunta ficou com ele durante o resto do dia, como uma nota musical sustentada além do tempo esperado.

E, no fundo, ele sabia que a resposta não viria rápido.

Lucian Draeven não era alguém que se revelava.

Era alguém que puxava as cortinas, uma por uma. Até não restar luz.

 

—–

 

Os dias que se seguiram foram marcados por uma cadência estranhamente ritmada, como se cada elemento da rotina de Nox encontrasse um compasso próprio dentro da estrutura monumental da Draeven Enterprises.

Havia uma lógica quase cerimonial no funcionamento da empresa — desde o tilintar sutil dos elevadores que anunciavam cada andar ao discreto borbulhar das máquinas de café espalhadas pelos corredores em mármore escuro. Tudo ali parecia operar sob um pacto silencioso de eficiência e elegância.

Nox adaptou-se sem esforço visível. Sua presença, apesar de recente, já começava a se sedimentar entre os fluxos cotidianos. Não era o tipo de funcionário que se destacava por ousadia ou exibicionismo; pelo contrário, seu valor residia justamente na discrição refinada, no modo como cumpria tarefas com precisão sem chamar atenção. Era como se a estrutura ao redor se moldasse levemente à sua presença — não por subserviência, mas como quem reconhece algo que deveria estar ali desde o início.

Ele ocupava uma sala intermediária, envidraçada, com vista parcial para o pátio interno da empresa — um espaço onde árvores esculpidas e sombras milimetricamente projetadas ofereciam um breve simulacro de natureza entre concreto e vidro. Nos intervalos, Nox observava o movimento de executivos apressados, reuniões sussurradas ao telefone, gestos contidos entre colegas que pareciam dançar uma coreografia antiga.

Foi nessa constância que a presença de Lucian se tornou um elemento recorrente. No início, suas aparições eram raras — sempre envoltas em um certo frenesi discreto, como uma mudança de pressão no ar antes da chegada de uma tempestade que não se anuncia, mas é inevitável.

Ele surgia no fim de um corredor, ladeado por dois ou três subordinados, que apressavam o passo para acompanhar sua passada longa e fluida. Sua voz — grave e baixa, mas firme — cortava o silêncio como seda rasgada, ecoando em instruções comedidas que pareciam conter mais do que revelavam.

Lucian nunca se demorava. Seus olhos, quando se detinham em alguém, pareciam pesar, pesar de fato, como se avaliassem camadas inteiras de identidade sob a superfície polida de um terno. Ainda assim, ele cumprimentava com cortesia, um aceno breve ou um “bom trabalho” murmurado com precisão calculada.

Quando cruzava com Nox, fazia o mesmo.

— Veleth. — Dizia às vezes, com um leve inclinar de cabeça. Um gesto que qualquer um poderia confundir com mera formalidade.

Nox retribuía com naturalidade. Não havia, à superfície, nada de notável naquelas interações. Não havia troca de olhares prolongada, nem tons ocultos nas palavras. Lucian era para ele o que era para todos: o vértice invisível de onde irradiava a ordem daquela estrutura.

Mas havia algo.

Algo que Nox, absorvido pelo seu próprio ritmo de trabalho, não percebia — ou, talvez, não queria perceber.

Quando estava imerso em seus relatórios, comparando dados financeiros, avaliando contratos, redigindo análises detalhadas sobre fluxos e riscos, havia momentos em que Lucian parava.

Pequenos momentos — raros, breves — em que ele desviava do rumo de sua comitiva, permanecendo à distância. Observando.

Os olhos do CEO fixavam-se em Nox como quem assiste a um mecanismo que ainda está para revelar sua função verdadeira. Não havia desejo evidente naquele olhar, tampouco julgamento. Era mais como a atenção de um artesão que observa a madeira antes do primeiro corte — avaliando a textura, as possibilidades escondidas na superfície calma.

Lucian jamais deixava que isso fosse notado. Nenhum funcionário ousava interrompê-lo nesses instantes, e sua postura permanecia irretocável. O suficiente para que qualquer observador externo acreditasse que ele simplesmente estava absorvido em pensamentos… ou aguardando algo.

Nox, por sua vez, seguia inconsciente dessa atenção furtiva. Seu foco era quase clínico: ele analisava os dados como se eles próprios tivessem pulsação, e havia algo em seu modo de escrever — uma precisão elegante, uma lógica limpa — que começava a ser comentada, ainda que em tons baixos, entre os gestores intermediários. Alguns diziam que ele pensava “como um Draeven”, o que era, em certos círculos, o maior elogio possível.

Nas horas mais silenciosas do fim da tarde, quando a luz natural começava a ceder à iluminação artificial, Nox costumava ajustar seus materiais com um cuidado quase ritual. Organizava as pastas digitais, revisava suas anotações. Havia uma disciplina implícita em cada movimento — mas também um leve descompasso, uma hesitação imperceptível que surgia apenas nos momentos em que se via sozinho.

Foi em uma dessas tardes que ele olhou pela vidraça e viu Lucian mais uma vez, do outro lado do pátio. O CEO falava com alguém — um homem de aparência estrangeira, roupas mais sóbrias que o habitual — mas, por uma fração de segundo, seus olhos se ergueram, e tocaram os de Nox.

Ou pareceram tocar.

Nox piscou, desviou o olhar, e não pensou mais no assunto.

Mas havia algo… um eco, uma lembrança desbotada, que voltava com mais frequência do que ele gostaria. O rosto de Lucian, sua voz, o modo como se movimentava — algo ali evocava uma familiaridade que Nox não conseguia nomear. Como uma música que se ouve apenas em sonho, e cujo refrão permanece nos lábios muito tempo depois de acordar.

No entanto, ele ainda não compreendia. E talvez, naquele momento, fosse melhor assim.

Porque Lucian — ainda que agisse como qualquer outro executivo de sua posição — começava a traçar uma linha invisível ao redor de Nox. Uma presença que se anunciava não em palavras, mas em ausências sutis de distância. Em silêncios cuidadosamente escolhidos.

E nas sombras projetadas por corredores longos demais, sempre havia alguém observando.

 

—–

 

A noite repousava sobre o campus como um véu translúcido, tingindo os edifícios de pedra com um dourado difuso, quebrado pelas sombras longas das árvores. A brisa era leve, e havia nela um frescor quase indulgente — um tipo de silêncio cúmplice que se encontrava apenas nos recantos mais antigos da universidade, onde as folhas se acumulavam como segredos esquecidos.

Nox estava sentado em um banco de madeira sob um velho carvalho, cujos galhos espessos filtravam a luz com uma solenidade que evocava a sensação de uma capela em ruínas. A caixa de suco entre os dedos — de um vermelho discreto, mas vivo — era pressionada com uma leveza que contrastava com o brilho concentrado em seus olhos. O líquido, mais espesso do que parecia, escorria por sua garganta com a naturalidade de um hábito antigo e necessário. Um hábito que ninguém ali suspeitava.

No colo, o celular exibia uma tela onde pequenos rostos e nomes se sucediam em um desfile melancólico de possibilidades. O aplicativo era discreto, elegante na interface, como se tentasse mascarar a banalidade dos encontros digitais com um verniz de sofisticação. Mas Nox, com seus gestos contidos e seu olhar semi-entediado, não se deixava enganar. Ele conhecia bem o que havia por trás daqueles perfis calculados: promessas ocas, vontades mal formuladas, dominadores frágeis tentando vestir máscaras que mal sustentavam.

Deslizou o dedo por um rosto angular de olhos claros demais. Não. Outro, de barba perfeitamente aparada, pose ensaiada, descrições meticulosamente enigmáticas. Pretensioso. Um terceiro perfil lhe chamou a atenção por alguns instantes — não pela foto, mas pelo modo como descrevia suas preferências com uma franqueza seca, quase clínica. Promissor, talvez. Mas cínico. Marcou como “possível”, apenas para não esquecer.

Os encontros que tivera nas últimas semanas, fruto de outras breves fagulhas de esperança, haviam sido decepcionantes. Um dominador que confundia autoridade com arrogância, outro que parecia encantado demais consigo mesmo para sequer escutar. Um terceiro, o mais polido de todos, havia sido… vazio. Como cristal sem som. Nox suportava muitas coisas, mas o tédio, esse sim, era imperdoável.

Agora, mais do que entretenimento ou distração, ele buscava algo real. Não no sentido romântico — essa era uma ilusão que aprendera a domar — mas em um sentido mais cru: alguém que pudesse reconhecer a linguagem muda que sua pele falava. Alguém que soubesse conduzi-lo sem confundir firmeza com brutalidade, desejo com domínio cego. E era essa ausência que lhe causava a irritação que sentia agora, pequena e persistente como uma farpa invisível.

Fechou o aplicativo com um suspiro discreto, logo que escutou passos conhecidos se aproximando pela trilha de cascalho.

— Sempre escondido nos cantos — disse a voz familiar, com o tom leve de quem conhece os labirintos do outro desde a infância. — Vai acabar criando raízes, irmão.

Nox ergueu os olhos, sem urgência. O irmão mais velho estava ali, encostado a um dos troncos, mãos nos bolsos, um meio sorriso no rosto. Era alto, mais largo de ombros, de uma beleza solar que contrastava com a aparência etérea de Nox — como se a própria genética tivesse brincado com dualidades ao moldá-los.

— Eu prefiro ver as pessoas à distância — respondeu Nox, com um meio sorriso que não chegava aos olhos. — Elas são menos decepcionantes assim.

— Ainda com essa filosofia? — O irmão se aproximou, sentando-se ao seu lado. — E eu achando que a nova rotina tinha te feito mais sociável. Me contaram que você foi contratado por uma das empresas mais seletivas do país. Estou impressionado. E orgulhoso, claro.

Nox deu um gole longo no “suco”, o olhar perdido em algum ponto do jardim à frente.

— É um lugar interessante. Estrutura impecável, gente competente. Rigorosos, como se espera.

— E como são os seus chefes? — perguntou o irmão, com a curiosidade bem disfarçada. — Algum deles é… especialmente exigente?

Por um instante, Nox hesitou. Poderia ter mencionado Lucian — mas o nome, por algum motivo, parecia carregar peso demais para ser deixado ao acaso em uma conversa trivial. Optou por um desvio elegante.

— Ainda não tive contato direto com a alta direção. Só o suficiente para perceber que eles gostam de manter certa… distância cerimonial.

— Hm — respondeu o irmão, arqueando uma sobrancelha. — Isso soa como: “há algo estranho, mas ainda não decidi se é bom ou ruim.”

Nox riu, um som seco, mas não amargo. Gostava do jeito como o irmão o via — com nitidez, mas sem invasão.

Antes que a conversa seguisse para temas mais íntimos, o celular vibrou em seu bolso. Ele o tirou com um gesto fluido e leu a notificação do grupo de estágio:

“Alguém a fim de beber hoje? Convite estendido aos novatos. Primeiro round por minha conta. — Milo”

Milo era um dos mais antigos na área onde Nox trabalhava. Um tipo extrovertido, de voz alta e sorriso sempre no limite entre o charmoso e o incômodo. O tipo de pessoa que Nox normalmente evitaria. Mas… havia algo reconfortante na ideia de se sentar com desconhecidos, fingir normalidade, deixar-se dissolver brevemente em conversas banais.

— Algo importante? — Perguntou o irmão, inclinando-se levemente.

— Um convite para sair com o pessoal do trabalho — respondeu Nox, fechando o celular. — Estava pensando em recusar. Mas talvez um drink ajude.

— Ou vários — disse o irmão, sorrindo. — Apenas lembra de não virar cinzas ao amanhecer. Mãe ainda acha que você estuda astronomia.

— Uma versão poética da verdade — respondeu Nox, levantando-se com uma leveza quase felina. — Quem somos nós para desfazer ilusões?

E com isso, despediu-se, deixando o banco e a árvore para trás, os passos ecoando baixos sobre a trilha. No horizonte, as luzes da cidade começavam a piscar, como faróis em águas inquietas.

Nox seguiu em direção a elas — sem saber que, naquela mesma noite, os olhos que tantas vezes o haviam observado em silêncio voltariam a encontrá-lo… de muito mais perto do que imaginava.

 

—–

 

A noite pousava sobre a mansão dos Veleth como uma presença respeitosa, deslizando pelas colunas e jardins com a leveza de um visitante bem-educado. No quarto de Nox, o espelho de moldura escura mostrava apenas o vazio diante dele, como sempre — e ainda assim, ele ajustava os punhos da camisa com a precisão de quem sabia de cor cada linha do próprio corpo.

O tecido abraçava seu corpo com discrição, delineando sem exibir, e os cabelos estavam presos de maneira casual, mas claramente calculada — fruto de três tentativas silenciosas. O perfume que aplicara no pescoço era sutil, feito para ser sentido apenas de perto.

Enquanto colocava os anéis — finos, de prata escurecida — um murmúrio provocador ecoou da porta entreaberta.

— Vai assim para onde? A festa é com humanos ou é alguma caçada elegante?

Nox nem se deu o trabalho de olhar. Reconheceu a voz de imediato: Vaelen, aquele que sempre tinha um comentário ácido engatilhado, como um veneno doméstico.

— Estou indo encontrar colegas de trabalho — respondeu, a voz baixa, mas firme.

— Hm. — Vaelen encostou-se ao batente, braços cruzados, avaliando-o com olhos de um azul mais claro. — “Colegas de trabalho”. Sabe que esse tom enigmático só faz parecer que você tá indo encontrar um amante secreto.

— Então é melhor não contar à mamãe. Ela ainda acha que estou celibatário.

O irmão riu, um som grave e despreocupado, antes de desaparecer pelo corredor. Nox terminou de se arrumar em silêncio, pegando o casaco leve e o celular antes de sair.

Cruzou os corredores da casa com passos fluidos, os saltos das botas abafados pelo tapete antigo. Uma carruagem os levaria à cidade — não literalmente, mas a metáfora lhe ocorreu enquanto atravessava os portões e chamava um carro.

 

—–

 

O bar ficava em uma parte da cidade onde as ruas estreitas e a arquitetura mais densa escondiam estabelecimentos discretos, com entradas sombreadas por toldos e música que escapava abafada pelas portas entreabertas. Era um lugar frequentado por jovens profissionais, onde o luxo se expressava por meio de iluminação tênue, madeira escura e copos de cristal pesado — nada gritante, mas inegavelmente selecionado.

Nox chegou no horário exato, entrando com a postura de quem não precisa procurar por ninguém, mesmo que o olhar vasculhasse o ambiente em busca de rostos familiares. Avistou Milo, o colega mais experiente que fizera o convite, cercado por dois outros estagiários e uma mulher de cabelo curto, elegantemente vestida.

Havia algo na postura de Milo — meio debruçado sobre o balcão, drink na mão, rindo alto de algo que ninguém mais parecia achar tão engraçado — que tornava impossível não notá-lo.

— Olha só quem resolveu sair da cripta — disse Milo ao vê-lo se aproximar, os olhos se estreitando num sorriso. — Achei que você fosse um daqueles tipos que desaparecem depois do expediente.

— Eu consideraria isso um elogio — respondeu Nox, acompanhando com um pequeno aceno de cabeça. — Mas você prometeu bebida.

— Sábia decisão — disse Milo, entregando-lhe um copo recém-preparado. O líquido rubro, aromático, borbulhava levemente sob a luz âmbar. — Esse aqui é o especial da casa. Chama-se “Primeira Impressão”. Achei apropriado.

— Espero que não signifique que vai me esquecer amanhã.

— Só se você se comportar como alguém esquecível — retrucou Milo, e a troca de sorrisos que se seguiu carregava a leveza de um pacto não verbal: naquela noite, ambos fingiriam que eram apenas colegas, e não peças num jogo maior.

A conversa fluía, entre trocas pontuais de ironia e perguntas sobre o trabalho, quando o ambiente pareceu mudar. Não de forma súbita, mas com a mesma sensação que antecede uma mudança de estação — uma oscilação na pressão do ar, um silêncio súbito entre risadas.

A mulher de cabelo curto, que até então se mantinha em silêncio educado, virou-se levemente em direção a Nox quando ele tomou um gole do drink.

— Você é o tal Nox de quem o Milo vive falando? — A voz dela era baixa, articulada com aquele tipo de curiosidade que tentava se esconder sob o verniz da educação.

Nox pousou o copo na mesa com suavidade.

— Isso depende do que ele andou dizendo.

Ela sorriu, inclinando o rosto com interesse.

— Nada comprometedor. Só que você tem… presença. E que sempre some antes da sobremesa nas reuniões.

— É porque eu odeio sobremesa.

— Ninguém odeia sobremesa — respondeu ela, ainda sorrindo. — Só quem tem algo melhor para fazer. Ou alguém.

Milo ergueu as sobrancelhas em aprovação, como se achasse divertida a troca.

— Essa é Elizabeth, do departamento de políticas públicas. Uma mente afiada e um gosto terrível para colegas de bar.

— E uma excelente memória para nomes interessantes — completou ela, voltando o olhar para Nox. — Você estuda à noite, não é? Eu já te vi no prédio B, acho.

— Provavelmente — disse ele, mantendo o tom neutro. Mas havia um leve desconforto em seus olhos.

Não era que ele quisesse interromper a conversa — ele apenas sabia onde aquilo podia terminar.

E então, ele o percebeu.

Não uma chegada, mas, uma presença. Algo sutil, que ele havia ignorado até então — como uma fragrância que se nota apenas depois de se acomodar no ambiente.

Lucian já estava ali. Sentado à penumbra de uma mesa mais afastada, conversando em tom baixo com dois de seus assistentes. Vestia um terno escuro, de corte impecável, mas sem ostentação. Não fazia questão de ser visto, e ainda assim… era impossível ignorá-lo.

Nox sentiu o estômago se contrair com um impulso que não era bem medo, mas algo próximo da vertigem.

Milo, percebendo a mudança súbita em seu olhar, se curvou levemente e murmurou:

— Aposto que você achou que ele não viria.

Nox não respondeu de imediato. Apenas seguiu com os olhos o gesto quase imperceptível de Lucian ao dispensar os dois assistentes. O movimento foi contido, mas preciso — como tudo nele. Então, como se sentisse ser observado, Lucian ergueu o olhar e o prendeu diretamente em Nox.

O olhar não era invasivo — era firme, sereno, como um reconhecimento silencioso. E quando ele se levantou, o fez com a tranquilidade de quem já sabia exatamente para onde ir.

A cada passo, a tensão no corpo de Nox aumentava. Não havia pressa, nem ostentação, apenas aquela presença que pesava mais do que o próprio ar.

— Veleth — disse Lucian, a voz baixa, precisa, quase entalhada. — Fico satisfeito que tenha vindo.

— Senhor Draeven. — Nox se endireitou sem perceber, segurando o copo com mais firmeza. — Confesso que me surpreendeu.

Lucian inclinou levemente a cabeça, como se apreciasse a honestidade.

— Surpreender pode ser útil, às vezes. Em um mundo de previsibilidades, a dissonância é onde as coisas realmente acontecem.

Nox apenas assentiu, a ideia martelando em sua mente: ele não chegou depois. Ele esteve aqui o tempo todo. Observando.

— Aproveite a noite — disse Lucian por fim, e então se afastou, parando para cumprimentar outros funcionários com o mesmo tom polido. Foi recebido com reverência discreta, não bajulação — o tipo de respeito que se constrói por algo mais profundo do que hierarquia.

Nox voltou-se aos colegas, tentando recobrar o fio da conversa. Mas uma parte sua ainda sentia o eco do olhar de Lucian sobre si — algo que não era desejo, nem ameaça, mas a promessa silenciosa de que, eventualmente, haveria algo mais.

 

Continua…

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Nox sempre viveu cercado de privilégios — herdeiro de uma família nobre, bonito, desejado e com o mundo a seus pés. Mas sob a superfície impecável, havia um...

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  • Vol 1
      • Doce Rendição
        Prólogo
      • Doce Rendição
        Capítulo 2 Olhar de Predador
      • Doce Rendição
        Capítulo 1 Desejo Incompleto

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