Capítulo 08
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Passos apressados ecoaram na noite, perturbando a paz da Cidade Imperial por alguns instantes, até desaparecerem como um fantasma que não quer ser encontrado.
Fora dos aposentos imperiais, homens e mulheres vestidos de preto reordenavam suas posições ao redor da cidadela, todos com espadas embainhadas na cintura.
Era uma noite sem lua ou estrelas, soturna ao ponto de silenciar todos os animais noturnos que habitavam o bosque ao redor daqueles muros altos. Qualquer pessoa que olhasse de fora não acharia nada de errado naquele cenário, pois era a comum “hora dos demônios”, exatamente trinta minutos após o badalar que marcava a meia-noite. Era esperado o clima tenso no ar, mas não eram as superstições que moviam a guarda real.
Algo estava errado.
Wang Zhiyuan, um dos principais oficiais cultivadores da guarda de contingência, que lidava diretamente com ameaças à família imperial, adentrou o bosque a oeste da cidadela furtivamente. Sua técnica era de elite, seus movimentos não emitiam um som sequer e sua presença estava suprimida para não atrapalhar nas buscas. Rastreava, com pressa, qualquer estranheza nas ondulações de qi.
À meia noite, os guardas noturnos notificaram uma manifestação de poder desconhecido vindo daquela área, então ele e sua equipe se dirigiram ao exterior para fiscalizar todos os arredores. Eram apenas cinco pessoas contando com ele, mas dificilmente havia algo que não podiam desvendar e resolver rapidamente, antes que esses estresses chegassem aos ouvidos do Imperador.
Não exageraram ao notificá-lo de maneira apressada, mesmo antes de possuírem qualquer confirmação da presença hostil, que era o protocolo geral. Ao adentrar o bosque, Zhiyuan identificou a pressão invisível imediatamente, uma espécie de força que fazia seu coração apertar e a pele arrepiar. Isso o fez franzir o cenho, pois em seu estágio de cultivo, apenas cultivadores de alto nível poderiam lhe causar esse tipo de sensação.
Os níveis de poder entre os cultivadores eram bem divididos, em estágios de cultivo e ranks em cada um. Essas divisões eram facilmente identificadas por serem, no que diz respeito ao acúmulo de poder espiritual, muito distantes umas das outras. Um cultivador no estágio do Estabelecimento da Fundação de rank mediano jamais conseguiria se comparar a outro que estivesse no rank tardio do mesmo estágio.
Claro que apenas sentindo a presença espiritual não era possível determinar o nível cultivacional exato da outra pessoa, mas usando a si mesmo como base, poderia supor que seja lá o que ou quem tivesse passado por ali, estava no mínimo dois ranks acima dele.
Adentrando a mata, a energia começou a ficar mais densa perto do riacho que cortava a região, porém não encontrou vestígios de movimento humano em toda a área. O bosque existia ao redor da Cidade Imperial de maneira estratégica, contendo inúmeras armadilhas e arranjos que detectavam a presença de humanos nas proximidades, então era muito difícil que alguém de fora conseguisse atravessá-lo sem deixar vestígios.
Contudo, as armadilhas estavam intactas, não haviam pegadas, marcas ou cheiro, apenas provas residuais do poder do invasor. Isso o deixou ainda mais preocupado com a identidade dessa pessoa.
Wang Zhiyuan parou sua corrida furtiva por alguns instantes, de pé em cima de uma rocha após sentir uma energia familiar se aproximando. Reconhecendo de quem se tratava, esperou por cinco segundos antes de outra pessoa surgir ao seu lado silenciosamente. Não esboçou reação com a aproximação repentina, limitou-se a se comunicar com gestos, na expectativa de que ela pudesse enxergar com a visão melhorada pelo cultivo.
「Encontrou alguma coisa?」
Su Xuelin, um de seus companheiros mais fiéis, respondeu de volta com o mesmo sistema de gestos.
「Não encontrei nada anormal na área próxima aos portões.」
Zhiyuan manteve a expressão impassível, se abaixou para tocar sobre a rocha, então sentiu uma vibração estranha vindo dela. Xuelin pensou mais rápido do que ele.
「Isso é energia demoníaca.」
Isso é péssimo, Zhiyuan desenhou um selo sobre o local usando seu poder espiritual. O qi que utilizou no selo invisível, que objetivava marcar o caminho dessa energia, foi dispersado por ela com uma fumaça negra que se não fosse por sua visão aprimorada, não teria percebido. Com um olhar sombrio, voltou a ficar de pé e gesticulou:
「Precisamos encontrá-lo depressa.」
「Isso pode ser uma armadilha.」
Xuelin se colocou frente a ele para que seus gestos fossem visíveis, ao notar como o príncipe se afastava sem esperar uma resposta, mas Zhiyuan não perdeu tempo com isso. Girou nos calcanhares e voltou à procura, ignorando o nervosismo da outra pessoa. Não podiam perder tempo e, mesmo que fosse uma armadilha, precisavam atingir o cerne dela e trazer à tona as reais intenções desse inimigo. Esse era o trabalho deles.
Mesmo que suas vidas estivessem em risco, precisavam seguir em frente até a dissolução de qualquer problema que prejudicasse o Filho do Céu e seus interesses. Normalmente, sua equipe era enviada para resolver assuntos externos, mas quando estavam na Cidade Imperial, eram responsáveis por respaldar as ações do pelotão da guarda. Por isso, quando algo do tipo surgia, eles eram os primeiros a assumir a linha de frente.
Alguns de seus colegas podiam encarar isso de maneira positiva, como se eles fossem imprescindíveis para a defesa da família imperial, mas Zhiyuan não podia ser iludido por isso. Ao serem colocados na frente de qualquer conflito, a guarda de contingência serviria como uma barreira humana que receberia a pior parte do dano em um ataque. A única coisa que os mantinha vivos eram suas habilidades, pois se precisassem da misericórdia do Imperador, seus nomes estampariam lápides mortuárias há muito tempo.
Desde que a capital foi atacada por mercenários quatro anos antes, pequenos levantes armados foram direcionados à Cidade Imperial, mas nenhum deles teve sucesso. A raiz da revolta desses grupos era, principalmente, a diferença econômica entre a família do Imperador e o povo comum.
Devido às condições climáticas ruins causadas pelas tempestades intensas que vinham de Da Yüer no inverno, vilarejos localizados às margens de rios eram constantemente atingidos por enchentes. Essas catástrofes causavam perdas enormes para os agricultores, que se recusaram a abandonar suas terras. Os Magistrados responsáveis por essas regiões propuseram um deslocamento dessas famílias para áreas mais altas, no entanto, nunca houve acordo.
Seria difícil para elas abandonarem suas terras dessa maneira, já que muitos as obtiveram por herança e, ao mudarem, precisariam trabalhar em feudos para continuarem produzindo. Não seria tão benéfico quanto ter direito a tudo que produziam, mas os protegeria de perder seus bens conquistados ao longo do ano para a enchente.
Esse era o motivo oficial desses atritos, onde os camponeses reivindicavam o direito a terras doadas pelo Imperador – o que nunca iria acontecer –, mas era de conhecimento interno que outros grupos se aproveitavam dessa revolta popular para atacar o trono e ter seus propósitos verdadeiros ocultados.
Wang Zhiyuan não os discriminava por se revoltarem e desejarem vingança, ele mesmo tinha sua própria parcela de ódio para administrar. No entanto, proteger a família Wang e seus interesses ainda era seu trabalho e ele era exímio em tudo que se propunha. Qualquer pessoa que entrasse no seu caminho enfrentaria as consequências nada agradáveis de desafiar sua espada.
Devido a tentativa de contornar a situação sem causar uma revolta ainda maior, se tornou rotina localizar e dissolver essas organizações de maneira cautelosa e silenciosa. O povo não podia estar ciente da crueldade das artimanhas do Imperador ou se rebelaria, por outro lado, não existia Império sem o povo, precisava haver equilíbrio entre as partes, mesmo que baseado em mentiras.
Zhiyuan só nunca esperou enfrentar um cultivador demoníaco no meio disso.
Não existiam muitas seitas oficiais em MuYin devido ao alto custo de manutenção do estilo de vida dentro delas e a baixa quantidade de cultivadores fiéis a um único líder. Após obter um certo estágio de cultivo, artistas marciais abandonavam suas seitas para se tornarem ladinos, o que gerava um prejuízo enorme por não haver retorno dos gastos com estes discípulos. Por isso, os processos de seleção se tornaram ainda mais rigorosos e inacessíveis para a maioria das pessoas.
Esse contexto fez alguns praticantes procurarem meios alternativos para cultivar, como a cultivação demoníaca, que envolvia métodos cheios de tabus para obtenção de poder. Por ser muito arriscado, grande parte dos cultivadores que se iniciavam nessas práticas acabava morrendo por desvio de qi ou em acidentes durante a cultivação.
Apesar de nunca ter interagido diretamente com um cultivador demoníaco, Zhiyuan sabia muito sobre eles. Seus mestres insistiam que era imprescindível ter conhecimentos diversos e ele, um cultivador ambivalente, foi severamente cobrado tanto em termos de conhecimento, como de práticas. Estava ciente de que, ao contrário da visão popular, cultivadores demoníacos eram extremamente reservados e cuidadosos, expondo pouco ou quase nada da própria existência para não chamar atenção, uma vez que eram considerados inimigos naturais dos cultivadores do caminho justo.
O cultivo demoníaco era feito em absoluto segredo, utilizando seus métodos profanos em lugares e momentos onde não poderiam ser encontrados ou interrompidos. Eram especialistas em fugir e infiltrar-se nos lugares, o que tornava quase impossível localizá-los. Dificilmente se reuniam em seitas devido a tais características, mas não se excluía a possibilidade de haver associações que agrupavam os praticantes desse caminho.
Devido à natureza do qi cultivado por eles, existiam efeitos colaterais que os tornavam absurdamente perigosos, individualistas, indiferentes à dor humana e inescrupulosos. Nada importava para eles além do próprio poder, o que dificultava a existência harmoniosa desses grupos, mas não os impedia de trabalharem juntos com o mesmo propósito.
Se uma pessoa dessas conseguisse entrar na Cidade Imperial, seria um banho de sangue.
Zhiyuan cerrou os punhos para o pensamento e seguiu diretamente para o local com maior concentração de poder dentro do bosque, a mão esquerda foi mantida firmemente sobre o cabo da espada e os sentidos totalmente atentos aos arredores. Estava tenso e Xuelin, que seguia ao seu lado, percebeu rapidamente.
「Vossa Alteza não pode seguir sozinho. Vossa Alteza precisa esperar reforços.」
Seu companheiro pulou à sua frente e o parou no meio do percurso, gesticulando de forma concisa. Zhiyuan cerrou a mandíbula e respondeu com impaciência e certa acidez:
「Vossa Alteza não segue ordens de seus subordinados.」
O tom imperativo da fala de Xuelin sempre o irritava, fosse em linguagem de sinais ou em voz alta. Apesar de serem próximos o suficiente para se considerarem amigos, a relação se limitava às dependências do Pavilhão do Imortal Santificado, quando suas vidas não estavam envolvidas nos esquemas do Filho do Céu. Fora dele, principalmente durante uma missão, Zhiyuan era o Oficial Wang, líder da equipe de contingência e superior de todos os seus componentes.
Já era irritante o suficiente ser tratado como um príncipe inútil no tom condescendente de seus companheiros, não suportava a ideia de ser visto como incapaz de tomar decisões em momentos de crise. Xuelin estava ciente disso, mas era insistente e, apesar de estar claramente tremendo com medo das represálias, continuou mesmo assim.
「Vossa Alteza está sendo imprudente. É um inimigo desconhecido, mais forte que nós, deveríamos…」
Zhiyuan passou ao lado de Xuelin sem prestar atenção nas mãos dele. Conversariam sobre isso depois, para que ele entendesse de uma vez por todas a hierarquia dentro do exército real. Por enquanto, apenas seguiu o que precisava ser feito, ignorando a expiração de surpresa e indignação do soldado.
Chegou aonde queria não muito depois, na margem do riacho, onde visualizou com clareza um antílope morto, dilacerado. O sangue do animal estava espalhado de maneira perturbadora, manchando boa parte da margem. Não havia uma parte sequer de seu corpo que estivesse inteira e dele vinha uma intensa emanação de poder. Com passos cuidadosos, Zhiyuan desembainhou a espada e se aproximou.
Xuelin estava logo atrás.
— Vossa Alteza, por favor…
Shh…
O soldado parou de sussurrar no mesmo instante em que foi repreendido, sob o olhar frio do Oficial. Apesar do medo que atravessou sua coluna, se apressou para ficar a apenas um passo de distância dele. Não estava confiante, toda a situação era muito estranha, não queria correr o risco de ser pego de surpresa por algum inimigo que não conseguiriam derrotar, então também manteve sua espada desembainhada.
Zhiyuan cutucou o animal e virou alguns de seus pedaços, o barulho de carne, sangue e vísceras sendo revirados era grotesco, porém familiar. Já tinham feito coisas muito piores que aquelas, mas com humanos, então não se sentiu perturbardo pela cena.
Xuelin, no entanto, prendeu a respiração para se livrar do cheiro. A morte sempre cheirava de maneira horrível.
Não precisaram procurar muito para encontrar algo diferente, pois um pedaço de pergaminho se destacou facilmente dentro do crânio do antílope, cujos miolos haviam sido retirados e não podiam ser vistos ao redor. Ao vislumbrar essa pista, Zhiyuan iria cutucá-lo com a espada, mas Xuelin o impediu.
O olhar do soldado expressava suas preocupações. E se fosse um selo explosivo? Talvez não se machucassem, mas iria iniciar um incêndio no bosque que seria muito difícil de conter. Então, por precaução, tomou a liberdade de passar na frente do Oficial apesar de saber que seria fortemente repreendido por isso mais tarde.
Respirando fundo para criar coragem, revestiu suas mãos com qi elemental e pegou o papel com seus dedos trêmulos. A energia demoníaca era tão intensa que o fez engolir em seco, mas nada aconteceu de imediato, sequer sentiu qualquer coisa diferente vindo dele. Apesar da quebra de expectativa, enquanto o desdobrava, permaneceu cuidadoso e atento.
— O que está escrito? — Zhiyuan perguntou em voz baixa ao notar a quietude do soldado. A visão aprimorada os permitia enxergar o suficiente para discernir sombras e silhuetas, mas ler seria quase impossível.
— Não sei — Xuelin foi sincero, com o papel bem perto do rosto para tentar enxergar alguma coisa, mas se tratavam de caracteres que ele não conhecia. — Acho que é outro idioma, mas nunca o vi em lugar nenhum.
— Vamos levar para os eruditos verificarem, talvez seja uma língua morta ou algum dialeto local.
Xuelin arregalou os olhos para sua suposição.
— Um cultivador demoníaco que sabe idiomas antigos? Isso não significa que…?
A frase ficou incompleta propositalmente, pois Zhiyuan não fez menção alguma de estender o assunto. Pensativo, Xuelin enrolou a pista em um lenço e o colocou no bolso, lavou as mãos no riacho e se juntou a Zhiyuan para retornarem pelo caminho que vieram.
O silêncio entre eles era significativo, ambos ponderando sobre as possibilidades que não poderiam ser ditas em voz alta antes de um pouco de investigação. Devido a raridade dos livros escritos muitos séculos atrás, onde estava o conteúdo de línguas mortas ou que foram usadas pelos nativos nos primeiros anos da imigração humana, apenas nobres e eruditos tinham acesso a esse tipo de conhecimento. Se um cultivador demoníaco fosse versado em algum desses idiomas, só poderia significar que…
— Finalmente achei vocês! — A pessoa que apareceu diante deles os fez se sobressaltar por um milésimo de segundo antes de perceberem de quem se tratava, o ar ao seu redor agitando-se brevemente após a utilização da técnica de teleporte. Feng Huaijin, outro companheiro e amigo de Zhiyuan, estava de pé sobre o galho da árvore alta por onde os outros dois estavam passando, sua figura trajava um uniforme militar diferente do deles, de um roxo intenso que não o camuflava na escuridão.
Ele fazia parte de outra equipe, mais especificamente da guarda de um dos ministros, então não deveria estar ali.
Zhiyuan e Xuelin pararam no mesmo instante, seus alertas mentais acendendo imediatamente. Feng Huaijin deveria estar nas dependências da Cidade Imperial custodiando os aposentos do Ministro dos Ritos.
— O que aconteceu? — Zhiyuan notou certa urgência na postura tensa do outro e, para não perder tempo, voltou a se deslocar em direção à cidadela, acompanhado dos outros dois.
Huaijin permaneceu em silêncio, acelerando o ritmo para tomar a dianteira. Eles já estavam se movendo em uma velocidade e agilidade sobre-humana, mas até cultivadores tinham limites físicos que os impossibilitaram de ir mais rápido que aquilo.
— Por que não está respondendo? — a voz de Xuelin não estava baixa e controlada como antes. A situação atípica e falta de respostas justificou todo o nervosismo em seu tom. — Fomos atacados?!
Zhiyuan lançou um olhar para o outro e também esperou uma resposta. Houve outro momento de hesitação, como se Huaijin brigasse internamente com as próprias palavras.
— O Príncipe Herdeiro… — ele engoliu em seco e suspirou. Zhiyuan o encarou com expectativa e Xuelin quase pulou sobre ele para sacudi-lo e arrancar as palavras à força. — O Príncipe Herdeiro desapareceu.
Ah…
Os três ficaram em silêncio por alguns instantes, apenas o ruído do vento em seus ouvidos se fez presente e, de certa forma, parecia correto engolir os próprios pensamentos naquele momento.
— Por um segundo eu achei que ele estivesse morto… — Xuelin murmurou com um tom ambíguo e Zhiyuan, que pensara o mesmo que ele, notou certo alívio em seu tom, do qual não compartilhava. — Os guardas dele já estão procurando? Precisam de ajuda?
Huaijin soltou um longo suspiro, como se ainda fosse muito difícil falar. Era óbvio que, em um momento como aquele, os guardas delegados a proteger o príncipe herdeiro já deveriam estar trabalhando para localizá-lo e resgatá-lo. Eram soldados de elite que só estavam abaixo dos guardas do Imperador em questão de força e estratégia, então…
Zhiyuan titubeou, franziu o cenho e encarou Huaijin com um olhar pesado. Só existia uma razão para Huaijin ter ido convocá-los pessoalmente para tratar do assunto do desaparecimento do Príncipe Herdeiro.
— Sobre isso… — ele disse com certo pesar enquanto saíam da mata, escalando os muros após atravessarem a barreira protetora da cidadela. Os arredores daquela área estavam silenciosos e vazios, os vigias não podiam ser vistos em lugar nenhum e ao notar os olhares afetados de seus companheiros, Huaijin coçou a nuca antes de completar a frase: — Todos os guardas estão mortos.
𖥟
A notícia do desaparecimento do Príncipe Herdeiro foi suprimida como fogo que se espalha na cortina de um quarto fechado. Com a fumaça isolada em um único local, apenas quem estivesse muito perto ou dentro do incêndio poderia notar o cheiro rançoso de fumaça.
E eventualmente morrer sufocado por ele.
Pelo que restava da madrugada, a movimentação dentro da Cidade Imperial ficou frenética. O Ministro dos Ritos reuniu os sacerdotes internos para realização urgente dos rituais funerários para as dezenas de vítimas feitas nessa invasão, os corpos dos guardas assassinados foram cobertos e levados para o pátio mortuário nos limites do Pavilhão do Imortal Santificado, longe do rio e do centro da cidadela.
Wang Zhiyuan estava ajudando a transportar os corpos após reportar aos seus superiores e perceber que sua participação, naquele momento, não seria muito útil. Ministros e Élderes cultivadores foram chamados para uma reunião com o Imperador à portas fechadas na Alcova do Dragão, o escritório pessoal do soberano. Não foram dadas mais informações acerca do desaparecimento de Wang Yiran e da bagunça deixada atrás dele, então só restava aos remanescentes ajudar os sacerdotes na preparação dos corpos.
Com o último corpo disposto em uma das esteiras de bambu do pátio mortuário, os soldados foram obrigados a contar e verificar o estado de cada um deles. Parecia um castigo levantar os lençois brancos manchados de sangue um por um, vislumbrar se era possível reconhecer o rosto ou alguma caraterística do defunto e identificá-los em pequenas etiquetas de papel. Eram colegas e amigos próximos vendo, pela última vez, aqueles com quem serviram a vida toda.
Além dessa tortura mental, identificar os cadáveres era difícil devido às condições em que maioria deles estava, em estágios variados de brutalidade, destroçados ao ponto de se tornarem basicamente irreconhecíveis. Alguns deles foram reconhecidos apenas porque seus companheiros notificaram seus desaparecimentos e, comparando informações, concluíram suas identidades.
Uma vez que todos foram etiquetados, mensageiros foram enviados para entregar cartas às famílias das vítimas explicando a situação de forma breve. O contexto do ataque foi mantido em sigilo e a explicação dada consistia num suposto ataque de fera mágica. Dificilmente alguma família visitava seu parente morto quando se tratavam de soldados, como se a morte já fosse algo esperado e até ansiado para algumas.
Era um panorama cruel, mas o sofrimento era muito menor quando não se apegava demais.
— Cinquenta e dois — Zhiyuan murmurou as palavras após contar as esteiras ocupadas no pátio, parado em um ponto mais distante para não atrapalhar o trabalho dos sacerdotes. O ar estava cheio do cheiro de sangue misturado com o aroma de calêndula da defumação sendo realizada sobre os corpos. Parecia um ambiente tranquilo observado de longe, se não fosse pelo rastro de morte que deixava o clima tenso.
Cinquenta e dois soldados mortos.
Foi uma baixa terrível e assustadora para todos, até mesmo para ele. Não se sentia triste pelas mortes ou particularmente preocupado com o desaparecimento do Príncipe Herdeiro, mas surpreso pelo nível de devastação que ocorreu em um curto espaço de tempo.
A invasão aconteceu silenciosamente, sem gritos ou marcas de batalha, já que só foi percebido por soldados que encontraram um dos defuntos no lugar onde estivera de guarda no momento do ataque. Observando os corpos, Zhiyuan percebeu que quase todos ainda estavam com suas espadas embainhadas, o que poderia indicar que o assassinato foi mais rápido que seu tempo de reação para desembainhar a espada e, em alguns casos, sequer desviar ou tentar fugir.
Não fazia sentido que uma única pessoa tivesse cometido uma chacina dessa proporção sem chamar atenção, por outro lado, um grupo grande de pessoas jamais passaria despercebido por tantos guardas de prontidão. Zhiyuan encarava toda a situação tentando montar o cenário com o que sabia, mas estava claro que algum detalhe estava faltando.
Encarando os corpos pela última vez, pensou que quando a equipe de contingência saiu para patrulhar, esses soldados estavam a postos, armados e em alerta. Naquele momento, não havia um sinal sequer de ataque, apenas suspeitas. Xuelin e ele não ficaram mais de vinte minutos no bosque e, quando voltaram, tudo já tinha acontecido. Essa maestria e essa objetividade lhe deixaram curioso, pois era como se o invasor soubesse exatamente por onde entrar e por onde sair para não gastar um segundo a mais que o necessário para realizar o sequestro.
Isso sugeria que ele conhecia a estrutura interna da Cidade Imperial, mas principalmente, que tinha conhecimento pleno dos protocolos da guarda. Essa sugestão só tornava tudo mais complicado.
Mais cedo, enquanto observava o cenário de morte que ficou para trás, notou como o invasor criou uma espécie de caminho, marcando por onde passou com cadáveres no lugar de migalhas de pão. O último corpo deste caminho era do soldado responsável pela segurança pessoal do Príncipe Herdeiro, cujo tronco e as pernas já não se conectavam, suas vísceras estavam espalhadas no tapete de caxemira que enfeitava o centro do quarto onde Wang Yiran dormia.
O quarto, com exceção dos restos mortais do guarda, estava vazio.
Aquele quarto, outrora o segundo mais luxuoso do país, foi coberto por sangue como se tivesse sido salpicado de propósito, na preocupação de manchar cada superfície de vermelho. Foi tão grotesco que Su Xuelin, que estava ao seu lado no momento, precisou se retirar após uma forte onda de vômito.
A única coisa a qual Zhiyuan se atentou, no entanto, foi ao fato de que nem uma gota sequer daquele sangue pertencia ao Príncipe Herdeiro. Ele saberia se fosse.
Isso o levou a crer que independente de toda a carnificina, Wang Yiran não parecia ter recebido o mesmo fim que seus subordinados. Talvez para solicitar resgate, talvez para torturá-lo ou vendê-lo para algum inimigo, não importava. Ele tinha sido o objetivo principal deste ataque.
Precisavam encontrá-lo o mais rápido possível, mas ninguém parecia saber por onde começar.
Os guardas remanescentes não tiveram contato com o invasor – e apenas por isso permaneciam vivos –, então não haviam pistas sobre quem ou como ele era, também nada sobre para onde ele tinha ido. A única informação relevante estava na forte presença demoníaca deixada no bosque e a nota que encontraram dentro do crânio daquele antílope. Aquele pedaço de pergaminho foi entregue diretamente ao Primeiro Oficial Cultivador, líder do Pavilhão do Imortal Santificado, então Zhiyuan dificilmente teria notícias sobre o conteúdo desse pergaminho no futuro.
Essa nota, bem como a presença deixada propositalmente no bosque, fazia parte desse plano. Su Xuelin estava certo quando disse que aquilo era uma armadilha, porém Zhiyuan interpretou errado. A armadilha não era para eles.
— Isso me faz pensar… — externalizou seu monólogo interno, a voz grave soou baixa e contínua como a melodia de um sheng¹ cerimonial.
— O quê? — Feng Huaijin perguntou um segundo depois, parado ao seu lado. Zhiyuan sequer tinha prestado atenção que ele estava ao redor, mas de alguma maneira sabia que se tivesse algo a dizer, os ouvidos de Huaijin seriam os primeiros a escutá-lo.
Os dois se afastaram do pátio mortuário e se dirigiram pelo caminho que os levariam de volta para o centro do pavilhão. Zhiyuan tinha a postura perfeitamente ereta e o queixo erguido, as mãos para trás fechadas em punho e o olhar frio que o caracterizava.
— O invasor queria deixar um recado de qualquer maneira — ele apertou os lábios para prender um suspiro, seus olhos prateados estavam cinzentos como uma manhã nublada de novembro. Parecia atormentado. — A presença no bosque, o animal morto, o pergaminho indecifrável e, por fim, os corpos dos soldados espalhados pelo caminho que ele percorreu aqui dentro. Cada um desses elementos serviu para demonstração de seu poder e para evidenciar o quão despreparados estávamos.
Huaijin manteve o olhar em frente, seus passos compassados acompanhando o Segundo Príncipe no mesmo ritmo.
— Hum… Está sugerindo que essas coisas tem um significado oculto? — franziu o cenho e cruzou os braços, meio reticente em relação a isso. Tensionou os músculos mais do que já estavam a julgar pelas circunstâncias. — Não me parece nada muito profundo, apenas um lunático querendo criar confusão.
— Esse modo de agir não me parece natural — Zhiyuan parecia firme em sua percepção como uma rocha sedimentar à beira mar. Irredutível, continuou a comentar: — Mas como se fosse milimetricamente articulado.
— Como uma performance? — incapaz de levá-lo a sério, Huaijin riu após notar a hesitação escondida atrás da expressão indiferente do outro. Se conheciam há tempo o suficiente para ser capaz de ler cada detalhe de seu comportamento taciturno. O olhar apagado, o rosto vazio, a postura distante… Tudo que o constituía como pessoa. Contudo, o que realmente interessava naquele momento era o caminho dos pensamentos desse príncipe sombrio, caminho este que não devia ser percorrido. — Por acaso está insinuando que tudo isso foi uma brincadeira do invasor?
Zhiyuan não mostrou qualquer alteração anímica ao ter sua teoria escabrosa exposta daquela maneira. Isso só fez o outro rir bem mais alto.
— Você vai começar a seguir a carreira de comediante, A-Yuan? Se for, devo dizer que está indo pelo caminho certo — implicou com a voz cheia de riso, cutucando o outro que, com impaciência, lhe lançou um olhar gelado.
— Não estou fazendo piada, não consegue ver a seriedade das coisas? Certamente o invasor se trata de um cultivador demoníaco com senso de humor macabro.
— E por isso ele está brincando conosco?
— E só há um lado se divertindo — pontuou em voz livre de hesitação, como se não percebesse o absurdo de suas palavras. Ou como se estivesse levando a si mesmo a sério demais.
Huaijin não conseguia parar de rir, enxugando as lágrimas dos cantos dos olhos. Isso fez o príncipe desviar o olhar e ignorá-lo, uma veia de irritação surgindo quase imperceptivelmente em seu pescoço.
— Não é possível que um cultivador demoníaco tenha invadido a Cidade Imperial apenas para brincar de pique esconde — diferente da constante comportamental do outro, Huaijin quase ganiu com a voz quebradiça e afinada pelo riso, apertou a bochecha dele e fez alguns barulhos estranhos que as pessoas fazem ao lidar com bebês.
Zhiyuan o encarou como se ele fosse um inseto extremamente irritante e barulhento.
— Obviamente ele tem outros motivos para adentrar o local mais resguardado do país e roubar um dos maiores tesouros do império. O que estou pontuando não é o porquê, mas o como. Se conseguirmos intuir mais detalhes sobre o modo de agir dessa pessoa, será possível encontrar alguma pista que nos leve ao seu paradeiro.
Huaijin se aproximou um pouco mais de Zhiyuan, curvando-se para alinhar suas alturas. Por ser três anos mais velho, também era mais alto e musculoso. Ele já era um adulto, enquanto o príncipe tinha apenas quinze anos, independente do quanto se comportasse como alguém mais velho que isso. Ele ainda tinha o porte de qualquer jovem da sua idade, mesmo que seu olhar e postura transmitissem o perigo que ele podia representar, todavia, para si, não passava de um garoto alto, magro e desengonçado que calçava sapatos maiores que seus pés.
— Vai fazer bico e bufar por eu discordar de você? Isso é besteira, A-Yuan! Você deveria parar de ler tantos livros, eles estão apodrecendo seus miolos e te fazendo achar que tudo é fantasia — deu batidinhas no topo da cabeça dele e, como o esperado, foi afastado com um tapa e uma pequena contração na mandíbula.
— Humpf… — aparentemente cansado de tentar conversar, Zhiyuan se afastou sem dizer mais nada, fazendo exatamente o que previu um segundo atrás: bufar e fazer bico.
Mesmo tendo sido criado entre soldados, Zhiyuan ainda tinha muito da soberba que qualquer príncipe carregava.
Huaijin não discordava completamente de seu raciocínio, também achava estranha a forma como as coisas aconteceram, porém sabia que se colocasse lenha na fogueira, Zhiyuan iria se envolver com a resolução da situação mais do que o necessário. Isso era tarefa para outros oficiais e soldados do Imperador, não para peixes tão pequenos e mal quistos como eles.
A despeito de como as coisas aconteceram ao longo dos anos, Huaijin havia sido denominado companheiro do Segundo Príncipe no momento em que este nasceu e seu dever destinado era protegê-lo. Seu pai o havia dado para viver em prol desse garoto e mesmo que o mundo inteiro gritasse que não era necessário, que Wang Zhiyuan podia proteger a si mesmo ou que a vida dele não era importante, nem o próprio Imperador estava acima do destino.
A família Feng devia muito à família Sinkai e à família Wang, seu pai não viveu o bastante para pagar a dívida, mas ele estava ali para garantir que acertaria as contas com os deuses. Acima dessa sensação de dever, estavam outras coisas difíceis de serem nomeadas, algo que apenas Xuelin, que tinha uma dívida muito parecida com a sua, poderia entender.
Quando olhavam para Zhiyuan, viam muito mais do que o rosto frio e indiferente, mas um garoto que, assim como eles, foi obrigado a dar passos mais longos que as próprias pernas. Alguém que poderia morrer a qualquer momento, perdido entre uma falsa sensação de dever e seus verdadeiros sentimentos. Era como se estivesse prestes a explodir após anos guardando, mentindo, fingindo e se forçando a caber em um lugar pequeno demais. Não demoraria muito até que precisassem catar seus pedaços e colá-los novamente, porque mantê-lo vivo era sua prioridade, fosse como fosse.
Novamente, talvez fosse o sangue imperial que corria em suas veias que o compelia a tomar a liderança de tudo, esse era um dos principais dilemas que impediam Zhiyuan de ser um soldado exemplar e viver tranquilamente como eles queriam. Porque o que eles queriam não era o que o Segundo príncipe precisava.
Queriam que ele aprendesse a fazer apenas o que mandavam, sem questionar, sem se impor demais, sem chamar muita atenção. Parecia impossível para ele apenas escutar, absorver e executar; sua cabeça reunia tudo que ele não expressava naquele rosto vazio e isso mais de uma vez o colocou em sérios problemas.
Se preocupava muito com o destino que o Segundo Príncipe estava construindo, a humanidade que foi obrigado a sacrificar sempre voltava para ele como um fantasma, e fantasmas não são nada além de espíritos que precisam ser imediatamente exorcizados. Não podia incentivá-lo a seguir qualquer caminho que fosse mais tortuoso do que aquele em que estavam.
Mas havia essa possibilidade?
Observando o desaparecer da silhueta do príncipe a quem jurou servir até a morte, Feng Huaijin se perguntou quanto tempo duraria suas tentativas toscas de controlá-lo. Sequer era possível fazer isso?
Quanto mais olhava para ele, menos o via como cultivador e mais como uma força da natureza. Não como a rocha que diligentemente aguenta o peso das ondas na maré alta, mas como o oceano profundo, soturno e perigoso que engole cidades inteiras quando furioso. Um rosto tranquilo e um coração atormentado, era inútil ter esperanças?
— Você deveria se preparar para aceitá-lo quando isso acontecer — Su Xuelin havia dito essas palavras uma vez, quando conversaram sobre Zhiyuan e a constante perseguição do Imperador contra ele. — Está demorando bastante, mas não se acostume.
— Não estou preparado para vê-lo mudar…
— Se te consola, Vossa Alteza não irá mudar. Ele só vai passar a mostrar para o mundo quem realmente é.
— Eu prefiro que ele continue fingindo. Prefiro que ele siga desse jeito, mas seguro.
— E quem é você para preferir algo? Ele tem um destino grandioso e nós só temos que ajudá-lo a chegar lá. Se não quiser continuar, você pode desistir agora enquanto há tempo.
Algum tempo se passou após essa discussão e a julgar pela forma como Huaijin seguiu o caminho para onde Zhiyuan foi naquela madrugada, recusando-se a deixá-lo sozinho após um dos príncipes ter desaparecido, ele já tinha tomado sua decisão.
Por qualquer ângulo que olhassem, o resultado era o mesmo. Todos e cada um deles estava enrolado até o pescoço na teia do destino.
[1] “Sheng” — Instrumento musical. É um órgão de boca feito de tubos de bambu conectados a uma caixa de ressonância.
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Capítulo 08
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