62. Sacrificar por você
Jin Long, Cidade Imperial
Os corredores do harém estavam agitados com o parto de uma das concubinas do Imperador, os guardas estavam atentos a todo movimento e as servas corriam para todos os lados, apressadas.
No pátio, entre a cozinha imperial e o pavilhão da concubina, as hortênsias azuis, símbolo da família imperial, estavam sendo pisoteadas devido ao curto caminho que elas proporcionavam entre os dois espaços. Naquele momento, ninguém se importava com elas, as ordens eram para salvar tanto a mãe quanto a criança.
Do quarto da Concubina Xi, gritos vinham um atrás do outro. Fazia seis horas que ela havia entrado em trabalho de parto e já havia perdido qualquer força nas pernas e as jieshengpo[i], que acompanhavam o parto olhavam-se com medo. Se o parto continuasse dessa forma, mãe e filho morreriam. E, com a realeza morrendo, as parteiras também encontrariam seu fim.
No pátio da Concubina Xi, dois homens sentavam-se à mesa de madeira, pintada de vermelho ao lado do portão da lua que separava o pavilhão da escadaria que ligava até outro pátio.
Um desses homens, trajava a vestimenta do dragão, exclusiva somente para os quatro imperadores que reinavam nesse mundo. Huang Longwei, em suas roupas azuis com enormes dragões dourados pintados ao longo das costas do hanfu, pegou a agulha de prata e a girou dentro da xícara de chá. Assim que verificou a ausência de venenos, entregou para a serva que o acompanhava.
— Sua Majestade, não podemos ignorar as baixas no sul. — O Conselheiro Chefe do Imperador, Jiang Chuanli, insistia novamente.
— Chuanli. — Huang Longwei chamou seu nome com firmeza, fechando os olhos.
— Sim, Sua Majestade.
— Chuanli quer dizer que Zhen[ii] não se importa com aqueles abaixo dele? — O imperador levou a xícara novamente à boca, apreciando sabor amargo daquele chá.
O conselheiro chefe ajoelhou-se imediatamente, apenas um dos joelhos no chão, prostrando-se em uma posição de lealdade e submissão. Uma das suas mãos, estava sobre o peito.
— Eu imploro à Sua Majestade. Castigue este servo.
— Chuanli é um amigo honrado de Zhen, não vou castigá-lo por algo tão trivial. — O imperador falou — Levante-se velho amigo. Vamos discutir isso.
O Imperador Huang sorriu, mostrando sua benevolência e bom humor.
— O servo agradece.
— Então, diga-me Chuanli. O que acha que deveríamos fazer? Aquelas pessoas já estão mortas, suas cidades massacradas. As seitas da região já estão fazendo seu trabalho. Zhen patrocina essas seitas por alguma razão. Dê-me uma razão, meu caro conselheiro.
— Sua Majestade, devemos mostrar que a Família Imperial se importa com a população. — O conselheiro insistiu, mas assim que as palavras saíram, percebeu que, novamente questionava a reputação de seu Imperador, mas continuou. — Todos esperam uma ação de Sua Majestade, para acalmar o povo.
Chuanli levantou o olhar rapidamente. Um olho de cada cor. Dourado pela esquerda e o outro tão escuro quanto seu coração. Sua majestade, era naturalmente intimidadora por causa dessa condição. Huang Longwei sorriu, um sorriso amável e estranho.
— Então, faremos como o conselheiro deseja. — Ele se levantou — Partirá amanhã com uma escolta. O terceiro filho o acompanhará. Chuanli está satisfeito?
— Como Sua Majestade ordenar. — O homem mais uma vez baixou a cabeça, trêmulo.
— Se Chuanli está feliz, Zhen também está feliz.
Os gritos vindos do cômodo da Concubina Xi pararam. Um silêncio aterrador se sobressaiu. O Imperador sentiu que algo ruim iria assombrá-lo dali alguns instantes.
— Você pode se retirar. — Ordenou, já caminhando em direção a residência.
Os guardas na porta se curvaram quando ele passou e cumprimentaram a serva atrás dele. Assim que entrou no quarto, percebeu o porquê daquele silêncio. A cama, toda ensanguentada, tinha uma mulher com braços e pernas abertas, não mais respirando. Sua esposa havia morrido durante o parto, entretanto, não era isso que havia sido avisado pelo destino.
Seu olho direito se tornou o céu, estrelas brilharam dentro da negritude e o brilho do sol iluminou o ambiente pelo olho direito. Conseguia sentir a mulher morta no meio daquele sofrimento, urrando de dor pedindo que arrancasse aquela criança, que parasse com seu sofrimento.
Ele fez uma varredura pelo ambiente.
— A criança está viva? — Perguntou, olhando para a mulher mais velha, de cabelos cacheados.
As jieshengpo pareceram parar de respirar por um segundo.
— Sua majestade… — Omédico imperial se apresentou, ele estava tenso e não era pela perda da concubina.
— A criança está viva? — repetiu.
— Sim, Sua Majestade, porém… — a voz do médico imperial tremeu.
A parteira, que segurava o bebê num brocado de seda, se aproximou com cuidado e tirou o tecido do rosto da criança. Uma risada alegre cobriu o quarto, vinha da criança. Da adorável garotinha que não chorou ao nascer, mas que, ao ver o Filho dos Céus, abriu um sorriso. As pequenas mãozinhas balançaram no ar.
Apenas a pobre criança, não sabia qual era o pecado que havia cometido ao nascer. Seus cabelos louros e olhos dourados e brilhantes denunciavam sua origem. Não eram como os de Sua Majestade, escuros e ondulados.
— Luo Ying! — A aura imponente do dragão cobriu todo o pátio.
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Cidade de Wuming
Diferente da maior parte do Continente Sul, Wuming estava completamente cheia e animada. A diversidade de pessoas e gêneros só poderia ser encontrado nesse tipo de cidade, onde pessoas de todas as regiões e até do exterior vinham para o leilão oferecido pela tão conhecida Cidade Celestial.
Por exemplo, era difícil ver cultivadoras do sexo feminino saírem para o mundo. Os templos e seitas não costumavam permitir que elas saíssem livremente, o que era uma pena, segundo Cai Xing, pois a beleza feminina deveria ser admirada e apreciada. Obviamente, desde que seja uma mulher com escrúpulos. Por mais beleza que tivessem, fosse homem ou mulher, sem caráter, a beleza nunca supriria isso. Veja por exemplo, Li Jie. Sua beleza é ofuscada por suas atitudes desenfreadas e mentiras.
Falando nela, não havia notícias de Qiao Qiu e dessa vagabunda há meses. Num palpite ousado, ele diria que haviam fugido para algum lugar, mas pelo que shizun falava desse irmão mais novo isso era impossível de acontecer.
— Shizun, vamos naquela barraca! Quero um espetinho de porco agridoce!
Aquele tom coquete certamente não era algo que Luo Ying esperava ver. Era um tom tão enjoativo que fez o louro fazer uma careta.
— Xiao Liu, não haja de forma tão infantil!
— Tudo bem. — Mestre Shen concordou olhando para a barraca de cenouras bem ao lado — Pegue mais alguns para viagem. O leilão deve demorar.
Luo Ying olhou para seu shidi estupefato. Ele queria dizer algo, mas Shen Zhengyi já estava indo atrás de seu discípulo sem sequer prestar atenção nele.
Cai Xing se apressou. Há quanto tempo não via algo tão apetitoso aos olhos! A carne era regada em vinho espiritual! Pelos deuses!
Luo Ying que foi ignorado: “…”
A atmosfera entre os dois parecia tão rosa que pensou ter visto um casal. Bem, ele desejava ficar, mas precisava fazer alguns ajustes antes de participar do leilão, então acabou se despedindo deles.
O espetinho de porco agridoce fez Cai Xing revirar os olhos. O churrasqueiro estava grelhando os espetinhos numa fogueira enquanto despejava o vinho espiritual na carne. A madeira da fogueira também era raríssima de abeto marrom arroxeado e sua fumaça dava um sabor esplêndido na carne.
Quando degustou o primeiro pedaço do espeto, ele fechou os olhos. O sabor agridoce explodiu em sua língua. O salgado da carne suculenta e gordurosa com a mistura do gengibre e molho de soja com a doçura caramelizada poderia ser considerada a maior iguaria que ele já provou!
E isso não era tudo! A textura da carne era tão macia que parecia derreter na boca. Cai Xing gemeu de satisfação.
— Senhor, prepare dez desses… — apontou para a carne de porco e de soslaio viu Shen Zhengyi com uma sacola de doce de cenoura — E mais dez desses! — Estendeu o pedido para alguns espetinhos vegetarianos — Principalmente esses que tem cenouras.
Um palito de incenso mais tarde, ainda encontrou Shen Zhengyi pegando todo tipo culinária que envolviam entre cenouras, doces e uvas. Ele já tinha guardado um estoque de comida suficiente para dois anos de reclusão quando viu uma barraca especializada de rabanetes.
Cai Xing franziu o cenho.
— Shizun, não podemos ir embora?
Mas, então ele viu o brilho nos olhos de shizun.
“Como ele poderia apreciar algo com gosto tão ruim?”
Mas era seu gege, ele poderia acompanhá-lo, certo?
Cinco minutos depois o arrependimento surgiu como um tsunami. Perto de sua boca, haviam chips de rabanetes caramelizados. Era a combinação mais horrível que existia. Apenas suportava o doce na carne de porco, mas rabanetes? Era nojento!
— A-Hang, prove um. É a especialidade de Wuming! Da outra vez não conseguimos passear. Yan’er adora. Vou levar alguns para ele também.
Cai Xing raramente via esse homem com um humor tão puro e animado, talvez…
Ele deu um sorriso falso e pegou o rabanete com certo receio. Ele encarou o doce quase com medo de senti-lo.
Poderia encarar isso por seu gege.
Cai Xing mordeu o doce de uma só vez. Mastigou sob o olhar de Shen Zhengyi com dificuldade. Estava tão ruim quanto se lembrava. Queria vomitar.
— Está bom? — Mestre Shen perguntou com sinceridade.
Ele engoliu o bolo de comida antes de responder, tentando parecer o máximo agradável.
— Está ótimo, shizun.
Mas, de repente, escutou uma risadinha. Um certo mestre tampava a boca com a mão esculpida em jade. Os ombros tremulavam debaixo do uniforme preto e dourado da seita e ele não podia ver devido ao chapéu de palha, mas tinha certeza que as orelhas de Shen Zhengyi estavam vermelhas.
Zhengyi estava mudado! Ousado!
— Shizun!
Isso era demais! Shen Zhengyi pregando peças em alguém!
— Shizun está me intimidando! — Ele fez beicinho.
O mais velho limpou algumas lágrimas no canto dos olhos enquanto tentava não rir mais.
— Venha, há um lugar que espero que conheça.
Ainda de bom humor, Shen Zhengyi puxou seu discípulo pela mão e desapareceu entre a infinidade de pessoas daquele lugar.
Por meio sichen, caminharam por algumas ruas, indo para a periferia de Wuming. Quanto mais se afastaram, mais raro foi encontrar a presença de um humano.
O lugar era cheio de pequenas casas, numa atmosfera pitoresca de uma vila pequena. A diferença para elas, como a Vila Hong, eram os materiais utilizados nas construções: madeiras raras, jade cristalino e espiritual, as ruas evitavam todo o mal feng shui, árvores coloridas espalhadas por todos os lados.
Cai Xing não esperava por um lugar tão agradável e familiar numa cidade comercial.
— Que lugar é esse? — perguntou curioso.
Shen Zhengyi coçou a garganta antes de responder.
— Esta é uma de minhas residências. — Uma pequena pausa se seguiu, para que pudesse abrir os portões da lua — Além Yan’er e eu, apenas você sabe desse lugar.
A perna de Cai Xing parou no meio do movimento, em cima do tijolo de pedra. A palma da mão sobre a madeira colorida de vermelho da porta.
— Residências? — Franziu a testa. Sua voz saiu distante, como se viesse de um lugar que não conseguia nomear, distante.
Parou de repente, encarando o nada. Cai Xing se perdeu em pensamentos e verificou os arredores, como se procurasse por algo. Ele levou a outra mão ao rosto.
— Algo errado?
— Eu… — Levou a mão à têmpora, com o olhar confuso. — já estive aqui antes?
As costas de Shen Zhengyi ficaram retas.
— Não. — A resposta foi dada mais rápido do que um pensamento, de maneira estranha. — É impossível.
Shen Zhengyi não parecia perceber a estranheza do suas ações. Ele deu um passo à frente, quase tropeçando nos próprios pés. Cai Xing, entretanto, sempre atento à ele, notou. Felizmente, para Shen Zhengyi decidiu deixar isso de lado, por algum tempo. Ele estava radiante ao mostrar a casa, que decidiu esquecer.
No entanto, tal situação não ocorreu. Assim que atravessou o portão da lua, Cai Xing sentiu algo tocar-lhe o ombro. Num movimento inconsciente, ele puxou Chen Xing da bainha, colocando no pescoço de quem quer fosse. A lâmina parou no momento que cortaria o pescoço do intruso.
— Shibo Qiao? — Cai Xing indagou, um tanto surpreso. Ele havia o reconhecido pelo seu poder espiritual.
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— A casa é sua, Zhengyi? — Qiao Qiu questionou, olhando em volta.
A mobília era simples, sem algum luxo, poucos móveis trazendo apenas o necessário. Uma cama de pedra, um biombo com uma banheira atrás dela, uma mesa de chá e uma pequena cozinha com uma despensa. Tudo isso acomodado em apenas um cômodo.
Shen Zhengyi pensou por um momento.
— Aluguei temporariamente. — Tomou um gole de chá logo depois de mentir descaradamente. — Um quarto de hotel aqui em Wuming é muito agitado.
Três homens estavam sentados no salão de chá. Mestre e discípulo de um lado e Qiao Qiu do outro, com uma máscara tampando seu rosto. Cai Xing estava terminando de servir chá para si num conjunto de porcelana pintado de azul. Assim que ele finalizou, Shen Zhengyi não conseguiu esperar para perguntar.
— Shidi Qiao o que aconteceu? Nem Huo Genfoi capaz de achá-lo!
O antigo líder de Xue Hua riu sem humor. Deu um suspiro profundo e depois levou a mão ao rosto retirando a máscara do rosto.
Qiao Qiu não estava em sua condição normal. A parte esquerda de seu rosto estava queimada, os ferimentos ainda não cicatrizados e um corte profundo foi desferido sobre a bochecha. A costura, apesar de bem feita, iria deixar uma cicatriz.
Não parecia ser o homem imponente e poderoso que era. Sua postura etérea, a aura de liderança com um toque arrogância natural havia desaparecido. Ele parecia alguém comum, havia envelhecido vários anos. Os cabelos castanhos perdiam a cor com o passar dos dias. No braço, machucados e queimaduras visíveis estendiam-se das mãos até o ombro.
E, de alguma forma, parecia desesperado, vigilante e perturbado. Como se tivesse fugindo de algo e pudesse ser atacado a qualquer momento.
Shen Zhengyi também notou inúmeros ferimentos internos. Seus meridianos estavam prestes a entrar em colapso, quase completamente destruídos. Qiao Qiu estava mais próximo de um mortal que de um cultivador.
Dentro de seu corpo, vestígios de energia maliciosa infiltravam-se em seus ossos, alcançando alguns órgãos vitais. Isso poderia ocasionar uma situação perigosa não apenas para outras pessoas, mas para a própria pessoa.
— Ge… — Ele se serviu um gole de chá para se acalmar — Fomos atacados não por um grupo de fantasmas, mas pelo culto demoníaco. A seita do Cadáver Yin. Provavelmente toda a elite da seita… — Tomou novamente um gole de chá. — mas alguns deles, estavam estranhos.
— Como assim, estranhos? — Shen Zhengyi serviu mais chá para Qiao Qiu.
— Obrigado. — ele tomou o chá todo de uma vez antes que sua mão pudesse tremer e baixou o tom, suas pupilas arregalaram. — Todos eles tinham pupilas duplas! Eles pareciam possuídos! Pareciam fantasmas!
Qiao Qiu de repente, segurou com força seus cabelos puxando-os. A respiração tornou-se mais curta e acelerada.
— Xiao Jie foi sequestrada… — seu olhar, sem rumo, encheu-se de lágrimas — Ge… ela será desonrada!
Felizmente, para Cai Xing, Qiao Qiu não sabia que a pessoa, ou melhor, o corpo que havia desonrado sua nobre ex-noiva estava na sua frente. Se ele soubesse, nem mesmo Shen Zhengyi seria capaz de pará-lo.
— Shibo, tente se acalmar.
— Cale a boca! Você é a última pessoa que deveria falar de Xiao Jie! — Qiao Qiu retrucou no mesmo instante.
Shen Zhengyi não o interrompeu, mas serviu mais chá para ele. Ele estava muito agitado, então colocou um calmante para seu shidi no chá.
— E seu rosto?
Qiao Qiu ergueu sua linha de visão, ainda desnorteado.
— A pessoa responsável por isso… — ele olhou para Cai Xing, meio incerto.
— Não fui eu. — Ele falou e deu uma grande mordida no espetinho de porco, aquele gosto desagradável de peido do rabanete, não havia saído. — Estava no Vale da Fantasia, shizun pode provar.
Qiao Qiu desviou o olhar para o seu irmão mais velho pedindo uma confirmação.
— Sim, estávamos juntos.
Embora desconfiado daquela situação, por instinto, reconhecer a energia do seu discípulo e, ainda que seu irmão mais velho estivesse escondendo algo, não questionou. Depois de uma pausa, um tanto longa e desconcertante, suas palavras estrondaram, acertando Cai Xing diretamente.
— O homem tinha o rosto de seu discípulo.
Finalmente, Cai Xing prestou atenção à conversa. Impassível, tentando manter sua expressão intacta, buscou algum fundo de mentira em tais palavras. Entretanto, não conseguiu manter isso por muito tempo. Seus lábios torceram para o lado depois de levantar uma suspeita.
— Você pode descrever como era essa pessoa? As roupas, cabelo… se tinha uma marca na testa? — Praticamente sussurrou a última parte — Três gotas vermelhas…
Os olhos de Shen Zhengyi arregalaram-se por um instante antes de entender alguma coisa. Viu Cai Xing se agitar por isso.
“O que mais tinha no Vale da Fantasia, Cai Xing?”
Shen Zhengyi comunicou-se diretamente com Cai Xing, usando um método secreto.
“Um palpite ousado, shizun… mas, senti algo familiar e poderoso o suficiente para rivalizar com deuses marciais.”
Shen Zhengyi entrou em um estado contemplativo.
— Como sabia que ele tinha uma marca na testa? — Qiao Qiu se assustou.
— Esse homem vestia uma roupa vermelha com estampa de dragão? — Perguntou novamente, para confirmar suas suspeitas.
A tez de Mestre Shen não estava a melhor.
— Como você sabe?
Cai Xing deu um riso baixo, quase inaudível. Veja bem, às vezes, sonhos e pesadelos podem ser reais.
— Um palpite ousado, shibo.
— Palpite ousado? — Qiao Qiu estreitou os olhos e se levantou da mesa, puxando o seu sobrinho marcial pelo robe — Este sobrinho não está sendo muito específico?
— A visão de um homem não pode estar enganada depois que viu alguém uma vez. — falou com confiança, encarando-o nos olhos. — Uma descoberta recente… Shibo deve saber, estive com memórias faltosas por muitos anos e aos poucos, estou conseguindo recuperá-las.
Líder Qiao o encarou por algum tempo e, de repente, as roupas foram soltas, fazendo que Cai Xing batesse as costas no encosto da cadeira.
— Não seja tão cruel, Shibo Qiao. Sou uma criança frágil ainda.
Um sorriso malicioso fez com que os lábios de Líder Qiao se curvassem para cima. Uma impressão incomum naquele homem, sempre calmo e paciente.
— Na sua idade, eu já era líder de seita, moleque atrevido!
“Bem, não precisava esnobar…”
— Shidi Qiao… — Zhengyi lançou um olhar para acalentá-lo, seguido por um balançar de cabeça.
Sabia que não valia a pena se estressar por alguém como Luo Hang. Sentou-se novamente, deixando que a raiva momentânea diminuísse.
— Perdoe-me, acabei me exaltando. — As desculpas foram dirigidas para Shen Zhengyi. —Estive fugindo nos últimos dias, estou um pouco alterado.
Mestre Shen meneou a cabeça.
— Seguindo? Conseguiu identificar o perseguidor? — perguntou o mais velho.
— Da Shixiong.
— Isso é impossível. Shixiong estava em Chengdu há mais de meio ano. Sem um portal espacial não seria capaz de sair de Cheu até Chengdu num período tão curto!
— Shizun tem razão. — Cai Xing se levantou, indo até a pequena janela, segurando com força o parapeito — A não ser que ele tenha um avatar, o que é muito improvável… Poderia ser um portal ilegal? — Cai Xing se deu mais uma opção — Existem muitos desses pelo mundo.
Em sua vida passada, havia inúmeros desses portais espalhados pelo continente. Usar portais comuns era muito perigoso. Voltou seu corpo para a mesa.
— É impossível.
— Por que Shizun?
— Ao menos, todos os portais ilegais conhecidos foram destruídos. É por isso que o culto se tornou tão quieto durante todo esse período. — ele pegou a xícara de chá e levou a boca e franziu a testa — Isso é vinho espiritual.
— Oh, eu troquei pelo chá. Não importa, é tão bom quanto… continue, continue!
— Não é algo secreto ou que envolva conspirações. Apenas que há registros de um cultivador desgarrado destruir todos eles.
Cai Xing levantou as sobrancelhas.
— Nunca confie nas pessoas. — Encarou Qiao Qiu — Templos podem ser afundados e construídos a qualquer momento. Os segredos do mundo não são conhecidos por todos. Tome minha pessoa… — ele virou a garrafa na boca — Confiei na pessoa que amava, meu núcleo dourado foi destruído, quando descobrem quem sou, elas fogem ou me olham com desgosto…
Nos últimos dez anos, era possível dizer que se lembrava de toda a vida de Luo Hang. Tinha muitas coisas que gostaria de perguntar, principalmente à Shen Zhengyi e também a seu bom amigo, Chen Dewei. Olhou de soslaio para seu shizun.
Qiao Qiu bocejou.
— Shibo está com sono? Porque não aproveita que está aqui e descansa? Podemos acordá-lo…
Qiao Qiu caiu sobre a mesa com um baque.
— Ele demorou a cair.
— Ele tem uma mentalidade forte.
— Uma pessoa de mentalidade forte não cairia tão de repente, shizun. — retrucou inocente.
— Certo, certo…
Depois que levaram Qiao Qiu para a cama, Mestre Shen puxou seu discípulo para fora. No pátio, havia duas cadeiras de balanço debaixo de uma árvore de folhas alaranjadas. Shen Zhengyi recostou-se parecendo cansado. Os dois últimos dias tinham sido longos e a sensação de enjoo não o havia largado desde aquele dia no Vale da Fantasia.
Deveria ser os efeitos que Yan Lin havia falado sobre o uso do ferro negro. Embora tenha propriedades poderosas e ajudem no cultivo, esse tipo de ferro é muito atraído para a energia negativa, pulsando toda vez que estava próximo à energia maligna.
— Gege parece cansado, por que não descansa?
— Você deveria ir também.
— Não consigo.
— Pela descrição de Shidi Qiao, realmente parecia você.
Cai Xing suspirou, sentando-se na cadeira ao lado, com as mãos na nuca. Seu rosto mostrava certa preocupação.
— Tenho algumas ideias sobre isso, mas não é algo que eu possa investigar atualmente.
Eles se entreolharam e Shen Zhengyi acenou suavemente.
A sombra da árvore se movimentou, deixando que alguns raios atravessassem, alcançando o corpo do mais velho. Levou a mão até o rosto, tampando o feixe de luz indo direto para seu rosto.
— Cai Xing, podemos conversar? — Mudou de assunto drasticamente.
Cai Xing estreitou levemente os olhos e acenou em positivo. Ele puxou uma garrafa de vinho espiritual junto a uma xícara e apreciou o aroma delicado ao tirar a tampa.
— Pergunte-me o que você deseja saber. — Fechou os olhos, acalmando sua respiração.
O mais novo despejou o vinho na xícara e o levou próximo ao nariz, sentindo o aroma.
— O que você quiser me dizer. Dewei, o cetro, o que raios esteve fazendo nos últimos anos e porque seu corpo não se cura completamente… — virou a xícara. O sabor do vinho espiritual, levemente adocicado com um breve amargor e a acidez do álcool e do pêssego. Com certeza, era seu vinho preferido — Tanto faz, vou acreditar em tudo que me disser, mesmo se for uma mentira.
— Não estou mentindo.
— Está me tomando como um idiota? — Riu irônico — Eu o conheço suficiente, mais do que qualquer pessoa. Não nos conhecemos há alguns dias Shen Zhengyi.
Seu nome saindo da boca de Cai Xing foi como uma confirmação de quantas coisas escondia de seu amado. Por um instante, Shen Zhengyi sentiu arrependimento, olhou para o lado e encarou os olhos negros e profundos de Cai Xing. Ele respirou fundo antes de começar a falar.
— Quando minha mãe foi assassinada, não tive alguém comigo por algum tempo. Passei alguns meses vivendo na rua como um pedinte.
Assim como sua voz, sua mão permaneceu firme — fria como a lâmina que carregava ao entrar numa disputa, como se aquelas lembranças tivessem sido cortadas a força, ao se relembrar da época mais obscura de sua vida.
Mas, Cai Xing, percebeu o que poucas pessoas poderiam notar. Aquele silêncio nos dedos, a firmeza ilusória, o vazio que existe depois que a dor é tão profunda que já não existem mais lágrimas para isso.
E, antes que isso envolvesse Shen Zhengyi por completo, Cai Xing envolveu sua mão com a própria, apertando com força suficiente para confortá-lo. Assim que o fez, pôde senti-lo estremecer.
— Então, eu conheci um adolescente. Ele estava acompanhado de um oficial da corte, estava bem vestido… pensei que iriam me fazer mal.
As extremidades da boca de Zhengyi curvaram-se para cima amargamente.
— Wei Ge se apresentou como subordinado de meu pai e me levou para a corte. Foi então que descobri que minha mãe havia usado o sobrenome de meu pai e ele era quem se chamava Shen, Shen Yuan. Ele era comandante sob a guarda imperial. Wei Ge ficou algum tempo como criado pessoal, ajudando-me a acostumar com essa nova vida…
Shen Zhengyi fez uma pausa. Cai Xing o ouvia com atenção, ora ou outra, carinhosamente, fazia círculos com seus dedos sobre a palma da mão de seu mestre.
— Mas, Wei Ge era um cultivador demoníaco e num deslize num de seus treinamentos, ele me atacou e meu pai o mandou de volta para o Culto. — Respirou fundo — E, logo em seguida, Shen Yuan me vendeu para meu antigo mestre.
Shen Zhengyi podia enxergar aquele dia tão facilmente quanto olhava para a luz do dia. Não ficou tão desapontado com o pai quanto esperou, pelo contrário, sentiu um vazio estranho e incomum.
— A primeira pessoa que morreu em minhas mãos, foi Shen Yuan. — a sobrancelha se franziu — Ele era uma pessoa péssima, mas…
— Um laço de sangue não define nada. — Cai Xing parecia se lembrar de algo e sua tez não estava agradável, mas logo retornou ao seu habitual.
— Sim, você tem razão… mas não deixa de ser um sentimento agourento com a morte de alguém que deveria ser sua família.
Cai Xing ficou durante algum tempo, pensativo. O silêncio ao redor deles era diferente do habitual, não era tenso ou constrangedor, era apenas silêncio. As respirações um pouco inquietas gravavam a única sensação de vida naquele pátio. Mesmo com toda sua eloquência e persuasão, não sabia confortá-lo. Somente o silêncio bastava? Zhengyi precisava de mais alguma coisa?
Mestre Shen enfim abriu os olhos. Os olhos azuis cristalinos brilharam contra a luz, Cai Xing conseguia ver uma auréola brilhando nas bordas no final do azulado perfeito. Uma maré calma sem ondulações.
— Wei Ge nunca largou esse hábito estúpido. Nunca fui um jovem mestre.
Novamente caíram em silêncio. Um silêncio confortável e aconchegante, como se, por um momento, estivessem realmente sozinhos.
— Também tenho algo a perguntar.
— Apenas pergunte. Nunca escondi algo de você.
Fosse ou não uma indireta, as palavras de Cai Xing o afetaram, sem contar a confusão que estava em sua mente, não conseguiu se manter calmo.
— Por que se arriscou tanto? — Não era apenas sua expressão, até a maneira de se dirigir à ele, estava mais rígida — Se esqueceu do que lhe ensinei? Do quanto repeti sobre sua incapacidade de se defender? Acha mesmo que não sou capaz de, no mínimo protegê-lo por uma vez, Cai Xing?
Shen Zhengyi havia liberado seu poder inconsciente e estava o direcionando praticamente em sua direção. Era a primeira vez que Cai Xing ouvia seu nome sair tão severamente da boca de Mestre Shen.
— Não seja tão hipócrita quando seus ferimentos internos não puderam ser curados mesmo após sua reclusão. Gege diz que seus olhos são bons, mas porque não enxerga a si mesmo? Seu fluxo de qi está em completa desordem desde aquele dia! Desvio de qi? — Ele se soltou suas mãos, puxando seu pulso com força — Não sei como ainda consegue usar uma habilidade ou a porra desse cetro.
Shen Zhengyi o encarou, analisando-o. Ambos mantiveram suas posições, como se fossem inimigos mais uma vez. A tensão que estavam enraizadas nas suas auras não era pouca e, provavelmente, se Qiao Qiu estivesse acordado, estaria sufocado com esse choque entre a força de suas almas.
Inesperadamente, Shen Zhengyi riu. Mas, não era uma risada comum. Aos olhos de Cai Xing, parecia vicioso, carregado por malícia. Por um instante, conseguiu se ver naquela cena.
— Cai Xing… — o sussurro de Shen Zhengyi o fez sentir um arrepio subir por suas costas e alcançar sua nuca — apenas você é capaz de me deixar assim…
Não foi apenas um arrepio. Sentiu medo?
Observou o outro se acalmar aos poucos enquanto esfregava as têmporas. Sua cabeça estava baixa, mas levantou sua linha de visão quando perguntou.
— O que te deixa tão impaciente a ponto de tentar sacrificar sua vida?
Sem hesitar, Cai Xing respondeu:
— Hei Lian se sacrifica pelas pessoas, então é preciso alguém para se sacrificar por Shen Zhengyi.
[i]接生婆 (jiēshēngpó) significa literalmente “mulher que ajuda no parto”, ou seja, uma parteira que não possui necessariamente formação médica formal, mas tem experiência prática em auxiliar mulheres durante o parto.
[ii] Na China imperial, o termo usado para se referir ao imperador era “朕” (zhèn). Essa era a forma como o próprio imperador se denominava quando falava de si mesmo (equivalente ao “Nós” real em português antigo ou ao “Eu” majestático).
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