63. Você é meu irmão
“Zhengyi, você tem medo de ser feliz?”
O céu, de repente, pareceu perder seu brilho. Shen Zhengyi baixou o olhar, vendo quão insignificante era para questionar se deveria ou não ser feliz. Ele quase riu, riu de sua própria desgraça. Do quão ridícula era sua situação.
“Sim, eu tenho.”
Ele respondeu, sem olhar Cai Xing nos olhos.
“No momento em que eu alcançar a felicidade é quando minha alma irá se desfazer.”
“Sacrificar-se por mim?”
Manter sua compostura era um de seus maiores atos, o cálculo para que sua atuação fosse o melhor possível, ainda que estivesse prestes a perder a razão.
Mas, Shen Zhengyi não suportou ouvir tais palavras. Sentiu-se perturbado a ponto de não querer estar perto de Cai Xing pela primeira vez. Não tinha desejos de ver alguém se machucando por sua causa ou sacrificando-se a ponto de se machucar por isso. Não de novo. E, de repente, a maré calma de seus olhos, tornou-se tempestuosa.
Não sabia o que fazer ou responder. Sentiu-se sufocado. Seu desejo voltava-se a sair dali o mais breve possível. Ele fechou os olhos rapidamente e baixou a cabeça olhando para o armazenamento espacial.
— Tente se recuperar meditando e tome algumas pílulas de cura se necessário. — Ele colocou a pequena sacola bordada com folhas de bambu no peito de Cai Xing — Eu… eu preciso ir. — Soltou o braço de seu discípulo e não olhou para trás.
Mestre Shen bateu o portão e deixou Cai Xing parado, olhando para onde havia saído, sem ação.
— Filho da puta! — Cerrou os dentes e se levantou indo em direção ao portão. — Se comportando como uma criança!
Cai Xing se levantou com pressa e assim que atravessou para a rua, esbarrou em alguém. Isso o fez se desequilibrar momentaneamente e dar um passo para trás.
— Desgraçado, não tem olhos no rosto!? — Xingou antes que pudesse ver quem era.
— Amithaba! Não é o discípulo de Hei Lian!
Cai Xing revirou quando ouviu aquela palavra irritante e viu alguém ainda mais irritante.
“Porra! Não é um cego, mas é um burro careca!”
— Tem olhos, mas não tem cabelo. — Voltou a praguejar — Dê-me licença.
Cai Xing deu um passo para o lado e se apressou pela pequena rua, que mais parecia uma estrada longínqua. Ele quase precisou usar seu poder espiritual para chegar o mais rápido possível à esquina, onde viu Shen Zhengyi entrar num hotel.
Assim que entrou, viu Shen Zhengyi sair pela porta principal, no andar mais abaixo e deu um sorriso nada amistoso.
Colocou uma das mãos no peitoril da sacada no segundo andar e impulsionou seu corpo para o ar. Ele caiu por quase trinta metros e não encostou no chão quando Baobei surgiu abaixo dos seus pés o levando para fora e usou seu poder espiritual para abrir as portas da hotelaria.
Nesse ponto, já não conseguia sentir a presença de Shen Zhengyi. Ele queria gritar, gritar o quão infantil o maior Grão Mestre e mais poderoso homem poderia ser! Sua expressão mostrava o quão impaciente ele estava. Que tipo de atitude era essa? Mas, que merda Shen Zhengyi estava pensando?
— Porra!
Com um movimento ele pousou no chão. Sentia-se frustrado com essa fuga eterna que Zhengyi tinha com ele. Fosse nessa ou noutra vida, ele parecia ter medo de relaxar, medo de estar com ele. Sempre que Cai Xing tentava ir adiante, ele se afastava parecendo sentir repulsa enquanto seus olhos transbordavam o que realmente seu coração escondia.
Shen Zhengyi nunca se atrevia a tocar a erva do sonho que se desfazia em pequenas fagulhas de luz, de amor e de delicadeza.
Era frustrante e muito dolorido para Cai Xing, que sempre precisava de todos os seus sentidos, toda sua atenção e energia para conseguir manter as palavras que desejavam jorrar de sua boca, das ações mais gentis às sem decoro algum, de como se portar diante dele. E, de certa forma, sempre sufocante.
Frequentemente pegava se pensando se Shen Zhengyi simplesmente gostava de brincar com os seus sentimentos. O que, se não o conhecesse muito bem, poderia dizer que era esse o motivo.
O maior problema nele era que, qualquer mísera fagulha daquela erva do sonho, o deixava em êxtase. Ele desejava que Shen Zhengyi assumisse e se responsabilizasse por seus sentimentos. Não foram apenas trinta dias, mas seis séculos. Seiscentos anos. Ele entendia o passado, entretanto, almejava mais do presente. Um presente que pudesse ter liberdade com ele.
Amava muito esse homem e, ao mesmo tempo, nutria seu amor com o rancor sentido dele. No momento que soube a verde, que Shen Zhengyi era Yu Mei, seu Yu Mei, já estava preparado para abandonar tudo porque não gostaria de sentir aquele desamparo novamente. Às vezes, aquela sensação de querer matá-lo ressurgia em sua mente.
“Eu preciso me acalmar…”
Estava ofegante sem nem ao mesmo ter saído do lugar. O núcleo demoníaco pulsando no peito.
Não era ele.
“Não sou eu.”
Eram seus demônios o perturbando. Aquela voz desgraçada que sempre vinha para atormentar, acompanhada daquela risada grotesca.
Uma mão encostou no seu ombro esquerdo. Num reflexo súbito, e segurou o pulso da pessoa com força e num giro, ela caiu debaixo dele. Cai Xing apoiou seu joelho sobre o peito.
— Xiao Shidi… isso dói. — You Xiaolin resmungou.
O golpe havia doído bastante porque seu shidi decidiu usar praticamente toda sua força. Ainda bem que, no último ano, ele conseguiu finalmente atravessar para o estágio intermediário do estabelecimento da fundação, caso contrário estaria com alguns ossos quebrados.
A borda dos olhos de Cai Xing estava com uma auréola avermelhada e brilhante, ele também emitia uma fraca aura assassina. Foi o mesmo quando no Vale da Fantasia. Ele não sabia como ou quando, mas esse shidi tinha o cultivo demoníaco.
Havia questionado shizun sobre esse assunto, mas ele apenas o olhou e pediu para que questionasse o “xiao shidi” sobre tais assuntos.
— Xiao Ge? O que está fazendo aqui? — Cai Xing abaixou as pálpebras momentaneamente e as levantou de novo, aquele tom avermelhado parecia ter sido uma mera ilusão.
Com um sorriso sem graça, You Xiaolin colocou a mão no ombro do mais novo.
— Luo Shidi, primeiro vamos levantar, estamos chamando muita atenção.
Ele virou a cabeça para os lados. Não havia muitas pessoas, embora fosse dia, logo que a maioria se preocupava com o leilão, mas aquelas que passavam não podiam deixar de olhar dois homens num clima estranho. A audição aguçada desses cultivadores estava direcionada para aquela situação, assim como toda a atenção, mesmo que já estivessem longe. Muitos buscavam algum tipo de diversão naquela cidade quieta.
— Tudo bem. — Cai Xing se afastou e estendeu a mão para o amigo, ajudando-o a se levantar. — Shibo também veio? — Começou a caminhar.
— Não. — Sacudiu a cabeça e deu um suspiro — Estava bêbado demais.
Cai Xing arqueou a sobrancelha. Huo Liangyi bêbado? Era uma visão e tanto!
— Não consigo imaginar aquela galinha bêbada… — resmungou baixinho — Como o pirralho está?
— Xie Yan está bem. Shizun disse que seu corpo estará recuperado dentro de um mês, mas ele teve um choque mental muito grande. Isso, somente o próprio Xie Yan que decidirá quando acordar.
Cai Xing assentiu.
— Atrapalhei Xiao Shidi a ir a algum lugar? Coincidentemente, eu o vi parado no meio da rua, talvez…
— Estava atrás de um pequeno animal fujão. — Sorriu estranho, causando desconfiança ao outro rapaz — Não se preocupe, não é nada de mais.
— Shidi não parece estar falando a verdade.
— Pense o que quiser.
— Está livre?
— Estou.
— Vou levá-lo para uma bebida, então.
— Oh! Você tem dinheiro para me levar?
You Xiaolin deu um sorriso travesso. Cai Xing quase o respondeu da mesma maneira. You Xiaolin era alguém muito especial, para fazê-lo relaxar assim tão fácil.
— Shizun abriu generosamente o saco.
— Ah… você é realmente especial! — Deu uma gargalhada enquanto seguia You Xiaolin para uma taverna.
A Casa de Álcool Imperador se tratava de uma rede de tavernas especializadas em vinhos espirituais. E também, devido à sua especialidade, também era restrita e somente poderia ser usada pelos sócios. Huo Liangyi, como um alquimista renomado, tinha passe livre. You Xiaolin tinha um token que apresentou ao recepcionista.
— Senhor You, venha por aqui. — Como o único discípulo de Liangyi, o nome de You Xiaolin era muito conhecido também.
Eles foram direcionados a um quarto privado.
— Devo trazer acompanhantes?
O mais velho sorriu gentilmente e levantou a mão.
— Não há necessidade, traga uma jarra de vinho de arroz e outra de vinho de pêssego, também traga alguns petiscos.
Enquanto You Xiaolin fazia o pedido, Cai Xing se sentou no assento mais próximo à janela e escorou-se na soleira, olhando a paisagem urbana da cidade.
— Você se acostumou muito com a vida no mundo marcial, Xiao Ge. — Cai Xing comentou casualmente.
A maioria dos cultivadores não usava a espada para se locomover em Wuming, preferiam caminhar e apreciar a paisagem ou usar balões para apreciar a vista.
— Quando se há uma oportunidade para agarrar a riqueza e o poder, não é melhor aproveitar? — Os punhos fecharam-se. — Eu gostaria que meus irmãos pudessem aproveitar todo o luxo.
A luz dourada do sol brilhava dia e noite, por meses seguidos. Dificilmente havia um cenário noturno, era uma sorte divina apreciá-lo. Cai Xing estava ansioso para a noite cair. Ele encarou o irmão mais velho primeiro e deu um longo suspiro, e assim que o atendente saiu, seu olhar se iluminou ao ver a mesa cheia daquilo de que mais gostava: álcool.
— Ele acha que sou seu gigolô. — Zombou — Se ele soubesse que Xiao Ge é impotente…
— Pare de falar besteiras. Eu só não tenho interesse nesse tipo de coisa.
— Bem, isso não importa.
You Xiaolin sentou-se do outro lado da mesa. Ele sentiu o cheiro do álcool em Cai Xing.
— Shidi estava bebendo?
— Só algumas xícaras por cortesia, encontramos um conhecido… — ele tirou um espetinho de porco agridoce e jogou para Xiaolin — Shibo Qiao. Ele está lastimável.
— Não deveria tê-lo trazido… Shibo Shen vai ficar furioso comigo.
Cai Xing soltou um riso anasalado e sentou-se à mesa, com as pernas cruzadas.
— Filhote de fênix, nunca vi shizun bravo, mas Mestre Huo… tenha certeza de nunca o deixar bravo!
Cai Xing recordava-se de uma situação específica que o deixou com uma marca sombria em sua vida. Óbvio, nunca admitiria tais fatos em voz alta, muito menos para a “galinha careca”. Huo LiangYi havia acabado de assinar um contrato de vida e morte com Shen Zhengyi. Certamente, havia algum ciúme de sua parte, logo, esse tipo de contrato era mais íntimo que estar com seu amante.
— Por que Shidi sempre se encontra com essa vadia demoníaca? — O homem ruivo arqueou a sobrancelha.
— Não sei porque gege tem alguém tão lastimável e infeliz ao seu lado. Por que este mestre não esboça alguma outra reação a não ser raiva? Vai ficar careca se continuar dessa maneira. — falou eloquente — Oh, imagine esse infeliz careca. Vai se parecer como um ovo!
Huo Liangyi abriu um sorriso de raiva.
— Vou lhe matar da pior forma possível, você sabe que sim.
Com seus braços cruzados, Huo LiangYi olhou-o arrogantemente. Cai Xing, por outro lado, se manteve em sua posição, com aquele sorrisinho irritante.
— Huo Ge, por favor, mantenha suas palavras hostis. Dessa vez, fui eu que convidei Lorde Cai.
— Sim, ouça gege.
Huo Liangyi revirou os olhos com raiva enquanto Zhengyi só podia balançar a cabeça, não sabendo como manejar a situação. Ele colocou uma peça de xadrez sobre a mesa, um peão, tentando desviar a atenção de Cai Xing.
— Há muitos de seus homens em nosso território. — Colocou outro peão ao lado — Temos um acordo, mas ambos os lados devem respeitar.
Cai Xing deu uma risada.
— Diga isso aos seus homens. — Colocou peão por peão na mesa — Estão interferindo em meus negócios na fronteira. Invadindo vilas e massacrando famílias inteiras. Vocês culpam meu culto, mas são vocês que tomam a iniciativa. O culto ficará quieto enquanto vocês justos estiverem quietos. Consigo controlar os bastardos e gege?
— Farei as devidas correções. — Avançou o bispo — Mas, Lorde Cai sabe que cultivadores não podem ficar parados.
Vendo a movimentação do bispo, Cai Xing pensou em uma jogada e decidiu tentar.
— Gege está sugerindo um torneio?
— Não é impossível considerando a situação atual, mas — suspirou, levantando o cavalo e pegando o peão adversário —, há algum empecilho.
— O que gege precisa?
— Nos últimos anos, nossos recursos estão escassos, mesmo dentro do cofre das seitas. A reclusão de ambos os lados está deixando todos inquietos.
Cai Xing riu e avançou outro peão. Não havia mexido nas suas melhores peças.
— Dinheiro não é problema, posso patrocinar todo o evento. O que precisa?
Huo Liangyi deu uma risada zombeteira.
— Velhote, do que está rindo? Perdeu o pouco cérebro que tem? — Cai Xing não perdeu a oportunidade para provocar e moveu outro peão quando o bispo se aproximou ainda mais — Gege, pense bem antes de fazer uma jogada…
— Da sua arrogância.
— Meu patrimônio não é algo risível. Não pense que apenas você tem dinheiro, galinha careca.
Depois disso, Cai Xing precisou fugir desse homem por quase quinze anos antes que ele cessasse sua fúria.
— Nunca deixe shibo com raiva, Xiaolin. É um conselho como seu amigo. — Repetiu, relembrando todos aqueles momentos.
You Xiaolin forçou um sorriso, claramente desconfortável. Ele despejou o vinho de arroz na xícara.
— O que houve? Falei algo ruim?
— É só que todos parecem esconder algo de mim. Posso não ser tão talentoso ou poderoso quanto vocês, mas… — tomou do vinho, tomando toda a xícara de uma só vez — sempre são meias-verdades ou mentiras mal contadas.
O ar ficou pesado. Cai Xing não teve coragem, por um momento, de encarar You Xiaolin. Em vez disso, despejou o vinho em sua xícara e a esvaziou logo em seguida, sentindo o líquido arder em sua garganta.
— Xiao Ge. — Começou, com a voz rouca — Você acha que a verdade liberta ou machuca?
You Xiaolin o encarou em silêncio. Ele não sabia responder.
— Você acha que sou uma boa pessoa?
Ainda em silêncio, You Xiaolin continuou a encará-lo, estreitando os olhos.
— Um veneno pode ser usado para curar ou matar. Uma espada pode salvar ou matar.
Um sorriso amargo. Cai Xing bateu as pontas dos dedos sobre a mesa, ritmicamente.
— Típico de um alquimista. — Zombou, revirando os olhos. — A cada dia mais você parece com seu mestre. Apenas recolha sua hipocrisia, Xiaolin.
You Xiaolin quase riu, seu humor despencando.
— Você é um pouco travesso, mas tem um bom coração.
Estalo. Cai Xing bateu o indicador com ainda mais força. You Xiaolin, de repente, ficou tenso. Dentro da sala privada, ele notou, através de sua energia espiritual, algo mais denso se acomodar no ambiente.
— Isso é porque Xiao Ge não me conhece o suficiente.
Cai Xing tinha apreço a essa amizade. Sentia-se bem conversando com ele os assuntos mais banais, aspirações futuras e assuntos com algum aprofundamento notório. Era confortável a companhia de You Xiaolin e sua sinceridade para com ele era verdadeira. Por isso, gostaria de manter essa linha entre o passado e o presente.
— Xiao Ge realmente não me conhece… — repetiu.
You Xiaolin engoliu a seco.
— Shidi, por todos esses anos tenho sido seu amigo, ainda que haja rumores e comentários absurdos, continuei a defendê-lo desses insultos. Sei também que shidi tem seus segredos, mas acredito que seja uma boa pessoa!
Ele ficou pensativo por algum tempo antes de tomar alguma ação. Antes que pudesse tomar alguma decisão, a porta se abriu novamente e o atendente trouxe o pedido. Um olhar de cima se abateu sobre o incapaz mortal que, enfraquecido, sentiu as pernas amolecerem.
— Rapaz. — O atendente quase caiu de joelhos quando o imortal de olhar ardente o chamou — Traga alguns espetinhos também.
— Sim, senhor.
Quando o atendente saiu, Cai Xing levantou uma ala em torno da sala, ajustou sua postura e deixou que seu poder demoníaco preenchesse cada canto daquele lugar.
Seu olhar caiu sobre You Xiaolin, que tremia completamente sob a pressão que a alma de Cai Xing exercia sobre ele.
— Eu não sou como você, que enxerga a claridade. — a voz de Cai Xing quebrou, as palavras, então, saindo sem emoção alguma: — Mato sem pensar, rio do sofrimento alheio, gosto do poder que tenho para isso. As conquistas que tive nos últimos dez anos e mesmo antes disso… — Parecia se lembrar do passado, sua voz tomando gravidade. — São todas por uma pessoa. Tudo que fiz de bom foi para provar a ele que não sou o mesmo. No fundo, lá no final… sou tão podre quanto.
You Xiaolin sentia-se sufocado. Podia claramente sentir todos os sentimentos que Cai Xing tinha em sua aura. Uma mistura negativa, obscura e cruel.
— Meu nome não é Luo Hang, isso que você vê é apenas uma casca. Eu sou Cai Xing. — Um trovão estrondou no céu. — Tenho sangue nas mãos, não somente de inimigos, de inocentes, crianças, mortais comuns, como você foi um dia. No massacre, há quase quatrocentos anos, eu era o algoz, a espada afiada e a ferramenta da morte. — Pausou por alguns segundos. — Sou o homem vil e indigno.
Ele não esperava que You Xiaolin acreditasse em suas palavras. Era uma verdade muito incrível para ser real. O Lorde Demoníaco mais poderoso de toda a história reencarnando? Um desgraçado como esse não merecia queimar no submundo eternamente?
Portanto, ele ergueu a mão, colocando-a sobre a testa de You Xiaolin, que mal conseguia se mexer diante daquela pressão. Cai Xing mostrou a ele tudo o que fez, da ascensão à queda.
— Pense com cuidado em sua resposta. — A voz de Cai Xing reverberou por sua mente, enquanto as lembranças vinham, uma após a outra, preenchendo seu mar do conhecimento.
Imagens de dor e sofrimento, felicidade e amor, ódio e vingança, desgraças, conquistas. Era como se visse uma peça de teatro em sua frente, tão detalhada, dramática e carregada de tragédia. You Xiaolin sentiu falta de ar, com todas aquelas lembranças sendo implantadas em sua mente.
De repente, a pessoa em sua frente não era a mesma que conhecia. Alguém desconhecido e superior, capaz de destruir montanhas e rios para alcançar os seus objetivos.
A reputação de Luo Hang no mundo marcial nunca foi a melhor, mas com o passar dos anos, cultivadores e até mesmo a corte imperial tinham que admitir quão pomposo e sua reputação havia melhorado. Destruindo filiais do culto demoníaco, crescendo seu poder de maneira extraordinária, enfrentando oponentes formidáveis e, logo, ele estaria novamente em frente a Sua Majestade Imperial, promovido sob o nome da Aliança do Lótus. Não como o traidor da família imperial, mas como um cultivador promissor da nova geração e discípulo de um dos homens mais poderosos do continente.
Entretanto, tudo isso se partiu como um espelho, formando caco de vidros em sua mente. Teve uma nova visão sobre tudo isso, sobre a pessoa que seu shidi era e muitas coisas foram esclarecidas, principalmente o fato de ter aquela energia maligna em seu corpo e, também, aquela visão que teve no Vale da Fantasia.
Luo Hang, ou melhor, Cai Xing não sabia que, quando You Xiaolin o quis ter como amigo, o próprio entendia sobre o amigo. Sabia que ele não era uma boa pessoa quando quis tê-lo como amigo.
You Xiaolin precisou de toda sua força para falar poucas palavras.
— Shidi pensa muito bem de mim. — respirou fundo.
Cai Xing, ao notar isso, recolheu todo o seu poder.
— Não sou tão inocente quanto pensa. — Puxou um lenço da manga e limpou o suor que escorria da testa. — Quando decidi, naquele dia, me tornar seu amigo, tinha meus próprios pensamentos. Foi o mesmo quando aceitei ser discípulo de Mestre Huo. Fosse um diabo ou não, gostaria de me agarrar a uma chance de me proteger.
Os dedos de Cai Xing pararam sobre a mesa, o ritmo foi quebrado. A sala voltou a ficar em silêncio.
“Ah…”
Cai Xing conhecia muito bem essa sensação. Sobreviver a qualquer custo, desejar se proteger.
— Também não sou uma boa pessoa. — You Xiaolin continuou. — Há sangue que lava minhas mãos.
— Você ousa comparar ao que fiz no passado? Não seja estúpido num momento como esse. — Brincou com seu qi, transformando-o num redemoinho nas palmas das mãos.
— Uma morte é uma morte, não importa a quantidade. O pecado é cometido, seja um, seja mil. — Ele desviou sua atenção para o vinho de arroz e se serviu — Não importa o seu passado Xiao Shidi.
— Importa. Ele torna o que sou hoje.
— E o que shidi é hoje?
“Era o que eu gostaria de saber.”
— Não sei.
A sala privada ficou em completo silêncio. Depois de um tempo, You Xiaolin decidiu questioná-lo novamente.
— Shibo Shen sabe?
— Sim.
— E o que ele diz sobre isso?
— Ele aceita. — “Sempre aceitou, mesmo eu sendo a pior escória.”
— E shizun?
— Não sei o que se passa na cabeça de Huo Liangyi. — Abandonou a maneira respeitosa ao que se dirigia ao alquimista. — Ele é uma incógnita para mim.
You Xiaolin concordava com esse pensamento, seu shizun, por maior fosse o tempo que passou com ele, não o conhecia muito bem. Um suspiro, como se tivesse arrancado um peso de seus ombros.
— Se eles aceitam, por que eu não aceitaria? Você é meu irmão! O único que tenho. — Tirou o óculos do rosto, colocando-o sobre a mesa e massageou a ponte do nariz.
“Irmão?” [i]
Era a primeira vez que palavras tão gentis vinham de uma pessoa para ele. As mãos tremeram e a respiração quase falhou. Cai Xing desviou o olhar. Era impossível não se sentir emocional, mas também não sabia como respondê-lo.
— Por todos esses anos, temos cuidado um do outro, se Xiao Shidi quisesse me fazer mal, nunca teria me dado conselhos sobre cultivo ou tentado salvar a mim e aos meus irmãos. — bebeu um gole do vinho de arroz. — Sei que shidi também queima papel todos os anos para Li’er e Lian Lian. Não importa quem você seja, shidi será meu bom irmão mais novo.
Somente alguns momentos em silêncio foram suficientes para Cai Xing digerir todas essas palavras.
— É melhor se responsabilize por essas palavras no futuro. — sorriu e retirou toda sua essência demoníaca, de alguma forma, estava mais fácil controlar o núcleo demoníaco em seu corpo. — Tenho a sensação de que não terá boas energias. Não se arrependa, Xiao Ge.
— Já estou envolvido o suficiente para não poder voltar. — Ele também deu um sorriso pequeno.
-ˋˏ ༻✿༺ ˎˊ-
A tarde passou com um estalar de dedos, o sol baixou, levando também o humor de Cai Xing para baixo. Não conseguia sentir a energia de Shen Zhengyi por perto e ele resmungava a cada cinco minutos, bêbado, como seu gege o havia abandonado.
Nesse ponto You Xiaolin já sabia de coisas que ele não precisava saber e o quão indecente seu irmão marcial poderia ser. E também, conhecia sobre o verdadeiro relacionamento entre mestre e discípulo.
Obviamente, não havia surpresa em tais fatos, considerando que esse irmão marcial nunca foi discreto quanto ao seu olhar para Shen Zhengyi, queimando ardente. Outrora, quando tal discípulo desviava sua atenção, Mestre Shen deixava um olhar demorado, uma ação contida, a princípio, indiferente e transformava-se num olhar preenchido pela culpa.
You Xiaolin precisou conversar com Mestre Huo para entender alguns pontos. Em questão sobre sentimentos amorosos, realmente não conseguia entender. Era indiferente quanto a isso. Seu coração nunca pendeu a este ponto, apesar de ter vivenciado, com pessoas ao seu redor e, também, nunca foi algo de seu interesse.
Não buscava alguém para amar, gostava dessa sensação de liberdade condicionada e solitude. Pelo contrário, no futuro, desejava se dedicar aos mortais, assim como aprendeu com aquele monge uma vez. Queria retribuir e ensinar as pessoas para que progredissem a uma vida decente.
A princípio, Mestre Huo foi contra essa ideia, mas percebeu que seu discípulo era apenas um idiota com um coração tolo. Achava um desperdício de habilidades, mas ele criava um discípulo, não um escravo.
You Xiaolin praticamente arrastou Cai Xing para fora do quarto privado.
— Shidi, precisamos ir.
— Deixe-me beber mais uma! — Cai Xing resmungou, como uma criança.
— Não. — You Xiaolin tomou a garrafa de vinho de sua mão.
— Então quero ópio…
— Se perca, seu desgraçado!
O jovem alquimista bateu em sua mão e arrancou o cachimbo à força, que caiu no chão, derramando todo o conteúdo no canudo.
Sem que Cai Xing esperasse, You Xiaolin enfiou uma pílula em sua boca. Era tão amarga que quase o deixou sóbrio num instante.
— Que gosto de merda, Xiaolin!
— Engula ou vou lhe dar uma pior!
— Desgraçado! Que tipo de pílula é essa?
Provavelmente, em toda sua vida, Cai Xing não havia colocado algo na boca que era tão ruim. Tinha gosto de cadáver!
— Pílula de ressaca. Shizun me ensinou na semana passada. Ele disse que isso poderia ser útil se eu continuasse a ser seu amigo.
Cai Xing se conteve e apenas cerrou os dentes, mas a quantidade de nomes e insultos direcionados à Huo Liangyi eram tão grandes que ele teve uma crise de espirros tão grande a ponto de precisar se isolar durante algumas horas.
— Agora vamos, você precisa encontrar seu gege, não é mesmo? — You Xiaolin o incitou.
Cai Xing travou. Ele se endireitou e encarou You Xiaolin, fingindo sobriedade. Percebeu o quanto havia falado e exposto mais que o necessário e, o pior: não se lembrava do que dissera. Cai Xing deslizou as mãos pelas madeiras escuras e deu um sorriso desconfortável.
— Falei o que não devia, certo?
You Xiaolin pensou em várias coisas, mas não teve coragem de dizê-las. Seu melhor amigo sempre falava o que não devia, sem pensar duas vezes.
— Xiao Ge, veja bem…
— Não ouso saber detalhes. — Cortou rápido, antes que a situação se tornasse incômoda — Se Shidi está bem com isso, é o mais importante.
Genuinamente, Cai Xing queria agradecer, mas as palavras morreram na sua garganta, enquanto um enjoo subia do estômago até a boca. Ele limitou-se a acenar com a cabeça, mudo, e começou a andar, já mudando de assunto.
— A galinha… digo, — tossiu falsamente — shibo Qiao… para ele estar bêbado, o quão ruim está?
— Shizun está muito preocupado com Mestre Shen. Sinto que há algo de errado.
Sim, era verdade.
Algo estava errado com Shen Zhengyi e não parecia um assunto simples. Porém, nada adiantaria pressioná-lo por uma resposta, pois Shen Zhengyi, se assim desejasse manter o segredo, não revelaria sob a pior tortura.
Cai Xing suspirou.
— Xiaolin, não queira se apaixonar! Amar também é sofrer, sofrer em ver sua pessoa amada em agonia. E saber que só poderá apoiar como um espectador, isso é ainda mais doloroso.
Ele colocou a mão no ombro de You Xiaolin e deu leves batidinhas enquanto saíam da sala privada, como se fosse um ancião aconselhando a criança que acabou de se deparar com o primeiro amor.
Foi nesse momento, que Cai Xing teve uma ideia. Seu olhar se iluminou e ele deu mais alguns passos, contemplando tal ideia torpe e indecente. E quanto mais pensava nisso, maior seu sorriso se tornava.
Entretanto, de repente, uma xícara se lançou em sua direção, acertando a parede ao seu lado. Por pouco, não acertava sua agraciada e nobre pessoa.
— Seu desgraçado! Yong She, espero que teu instrumento não suba mais nessa vida! — O grito veio da sala privada ao qual passavam à frente.
A porta estava aberta. Um homem vestido de amarelo estava na porta, atordoado com a reação de sua companheira.
— Pequena Ruoying, por favor deixe-me explicar.
— Seu maldito dândi! — Outra xícara voou na direção de Yong She, que desviou mais uma vez, deixando que ela voasse na mesma trajetória que a anterior. — Não quero mais me casar com alguém como você! Yong She, se perca! Se perca, vagabundo!
Cai Xing: “…”
Dessa vez, tendo mais atenção, ele agarrou o objeto em suas mãos. Estalou a língua, irritado com aquilo. O homem deveria estar louco para implorar tão publicamente assim. A xícara que estava em suas mãos voltou quase na mesma trajetória, a porcelana sendo destruída acima da cabeça da bela dama.
— Insolente! — gritou mais uma vez, porém dessa vez, não direcionado ao seu noivo, mas a pessoa atrás dele. — Cachorro! Não se intrometa nos assuntos de laozi!
Cai Xing apenas sorriu, um sorriso tão amigável que causou um arrepio de mau pressentimento em You Xiaolin. Ele deu um passo para frente, meio desengonçado. Na bainha, Cheng Xing tremeu ansiosa, percebendo o estado de espírito de seu dono maldito.
“Se o nome de Shizun não se tornasse sujo na boca dessas pessoas, eu poderia simplesmente esmagar o crânio dessa vadia.”
— Vadia, se você gritar mais alto, talvez o Imperador possa lhe escutar. O que acha?
Cai Xing cuspiu as palavras com rispidez e ia se retirando, quando seu braço foi agarrado. Certamente, não era um dia de sorte, ele revirou os olhos. Precisava ir ao templo queimar alguns incensos para boa sorte.
Desviou sua atenção para aquela mão imunda, seguindo para encontrar o rosto dessa pessoa infeliz. O sorriso diminuiu quando olhou para Yong She, o reconhecendo. Decidiu distorcer sua expressão para a iluminação.
— Shixiong.
You Xiaolin, que estava atento a conversa, já identificou uma confusão prestes a eclodir e estava um pouco ansioso por isso. O humor de Yong She despencou até quase congelar. A aura em torno dessas duas pessoas estava extremamente tensa.
— Não possuo alguém tão medíocre quanto você. Deve estar me confundindo com outra pessoa.
— Shixiong, eu o reconheceria mesmo que restassem apenas suas cinzas. Afinal, shixiong foi a pessoa que mais ajudou enquanto estive sob a tutela de Mestre Li.
O mais velho deu um sorriso irônico, mas foi interrompido antes de responder.
— Bastardo, não se intrometa em assuntos que não são seus.
— Só estava tentando devolver. — O tom de divertimento começou a irritar Yong She, entretanto, logo em seguida, suas palavras estavam ficando mais tensas. — Sua amada Ruoying quase destruiu esse belo rosto. Tenho os mesmos direitos.
— Irmão Yong! Tire esse homem feio daqui!
A mão de Yong She agarrou o punho de sua espada, mas Cai Xing evitou o golpe com uma leve inclinação do corpo, como se esperasse aquilo. Seus olhos, antes embriagados, agora brilhavam com certa frieza e malícia.
— Shixiong é ainda tão previsível… — Cai Xing sorriu, tão relaxado parecendo estar numa fonte termal. — Sua Ruoying ainda grita como uma cadela no cio e você, ainda um cão obediente!
Yong She tentou atacá-lo pela segunda vez, agora lançando um corte na horizontal, o que normalmente arrancaria a cabeça de um cultivador comum. Cai Xing, porém, nem precisou desembainhar sua espada. Um homem cego pela raiva não era um adversário. Com um movimento simples, desviou e deu um tapa no pulso de Yong Shen, fazendo-o derrubar a própria espada.
You Xiaolin decidiu, finalmente, intervir, dando um passo à frente, mas ficou surpreso com a atitude que Cai Xing tomou. Como se fosse espantar um inseto irritante, ele se afastou.
— Estou com pressa, agora. — Respirou fundo, o tédio expressivo em seus olhos — Cães vadios não valem o esforço do imperador, nem do meu.
Ele deu um último olhar para Ruoying e a mulher sentiu um arrepio. Cai Xing virou-se e caminhou para fora da taverna. Sendo seguido por um You Xiaolin confuso, ele só parou quando teve seu ombro puxado para trás.
— O que aconteceu?
— Eles não estavam sozinhos. — Cai Xing cerrou os dentes. — Um cão estava sendo protegido por um burro careca.
Cai Xing soltou um riso anasalado. Era a segunda vez naquele dia. Não existia coincidências nesse mundo.
[i] Aqui, You Xiaolin refere-se à Cai Xing não como um irmão marcial, mas como se fosse seu irmão de sangue.
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63. Você é meu irmão
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