Capítulo 16 FINAL
Os meses que se seguiram trouxeram a Jun uma calmaria que lhe parecia quase estranha — como se, após tantos anos vivendo na corda bamba, o silêncio tivesse adquirido um peso próprio. Pela primeira vez, podia respirar sem sentir que o mundo desabaria a qualquer instante sobre seus ombros.
As questões legais foram resolvidas com uma fluidez que ele não se atrevera a imaginar. Sua mãe, enfim, teve acesso ao que lhe era de direito, e, com isso, a estabilidade financeira da família foi restaurada. Conseguiram deixar para trás o apartamento apertado e sombrio onde tantos dias difíceis haviam se arrastado, mudando-se para uma casa mais arejada, mais segura — um lugar onde a luz entrava pelas janelas sem receio, onde a esperança parecia caber.
Seu irmão mais novo, antes retraído e quase ausente, começava a dar sinais de recuperação. O processo era lento, mas nítido nos pequenos gestos: nos comentários tímidos durante o jantar, nas perguntas sobre coisas cotidianas, na forma como seus olhos já não evitavam os rostos ao redor. Ainda havia marcas, claro. Mas o peso delas não era mais esmagador.
Assistir sua família reencontrando o próprio eixo era um alívio que se impunha em silêncio, tão profundo que Jun, por vezes, mal sabia como reagir. Contudo, em paralelo a isso, algo mais tomava forma — um movimento discreto, mas constante, que o afastava daquele papel de guardião silencioso e o empurrava, pouco a pouco, para dentro de si mesmo. Seu mundo, antes limitado ao dever de resistir, começava a se expandir.
A presença de Akihiro nesse novo tempo não era uma novidade, mas se tornava cada vez mais constante. Sem alardes, sem pactos firmados — apenas uma presença firme, que se mantinha. Os dois não precisavam conversar sobre o que os unia. Havia um entendimento silencioso entre eles, um tipo de afeto que não exigia nomes ou definições. Jun apenas sabia que gostava de estar com Akihiro, e sabia, com igual clareza, que Akihiro também apreciava tê-lo por perto.
As visitas à casa dele tornaram-se habituais. No início, Jun aparecia esporadicamente, passava algumas horas e se retirava antes que ficasse tarde. Mas logo as noites começaram a se prolongar. Às vezes, adormecia no sofá sem perceber, e Akihiro simplesmente o cobria com uma manta, deixando-o ali, quieto, sem importuná-lo. Em outras ocasiões, Jun ficava por vontade própria, aceitando os convites para dormir com a naturalidade de quem já não precisava de justificativas.
A casa, outrora marcada apenas pela presença de Akihiro, começava a carregar também os traços de Jun. Um livro esquecido sobre a mesa de centro, uma caneca que ele sempre usava, uma camiseta dobrada no encosto do sofá. Pequenos detalhes que, embora discretos, denunciavam uma partilha tácita daquele espaço.
E os dias, assim, se tornavam mais leves. Mesmo quando ambos estavam imersos em suas próprias rotinas, Jun sabia que ao final do dia poderia ir até lá — e ser recebido, não como um hóspede, mas como parte de algo que, embora ainda indefinido, já era seu também. Akihiro, apesar do jeito brusco e da impaciência latente, sempre lhe abria a porta. Nunca havia pressa, nunca havia exigência — apenas acolhimento.
Era diferente de tudo o que Jun conhecera até então. E talvez, por isso mesmo, tão precioso.
—–
A luz do fim de tarde se espalhava em tons dourados sobre o caminho estreito e silencioso que ligava a casa de sua mãe à rua principal. Ainda carregava na memória os sons da vida doméstica: os risos abafados dos irmãos, o tilintar dos talheres contra a louça, a voz suave da mãe — sempre capaz de acolhê-lo com um simples olhar, mesmo depois de tantos anos.
Ao atravessar o portão, Jun sentiu a brisa morna roçar-lhe o rosto, dissolvendo devagar o peso ameno da despedida. Seus passos eram tranquilos, sem urgência. Caminhava com a serenidade de quem se desprende de algo íntimo, não com dor, mas com o respeito discreto de quem sabe partir sem alarde.
Já na calçada, retirou o celular do bolso e digitou uma pergunta breve:
Jun: “Você está em casa?”
A resposta não demorou.
Akihiro: “Ainda no trabalho. Vou demorar um pouco. Pode ir na frente.”
Jun soltou um suspiro leve, quase imperceptível. Não se incomodava em chegar primeiro; estar sozinho naquele espaço já não era problema. Ao contrário, havia conforto em ocupar aquela casa.
Guardou o celular e continuou andando. O vento da tarde brincava em seus cabelos escuros enquanto deixava para trás a casa materna, ainda envolta por vozes e calor familiar. Havia sempre algo de agridoce nas despedidas, mas, dessa vez, a sensação era mais branda. Quase serena.
No ponto onde Akihiro costumava deixá-lo ou buscá-lo, chamou um carro por aplicativo. Poucos minutos depois, o veículo surgiu, desacelerando suavemente. O motorista acenou em silêncio, e Jun retribuiu antes de acomodar-se no banco traseiro.
Chegar ao apartamento de Akihiro era sempre uma experiência silenciosa, marcada por reconhecimentos sutis: a fachada limpa, iluminada por luzes embutidas; o painel metálico do interfone, cujo código já conhecia de memória; o clique preciso da portaria automática. No hall, o piso de pedra polida refletia a claridade quente do entardecer. Jun atravessou o espaço com passos leves, acionou o elevador e esperou. O zumbido constante preencheu o ambiente fechado, misturando-se ao compasso dos próprios pensamentos.
No andar certo, girou a chave na fechadura com familiaridade. Assim que entrou, foi recebido por aquele aroma inconfundível: notas amadeiradas mescladas a um frescor discreto, o cheiro de Akihiro impregnado nas paredes, nos móveis, até nas roupas dobradas com precisão sobre o encosto do sofá.
Jun tirou os sapatos no hall, alinhando-os aos de Akihiro, e avançou em silêncio. A luz natural atravessava as janelas, aquecendo tapetes e objetos dispostos com ordem meticulosa. Havia algo de acolhedor naquela casa, um pertencimento que dispensava palavras.
Não era mais apenas o espaço de Akihiro. Era deles.
Caminhou até o sofá e deixou-se cair sobre ele, soltando um suspiro leve ao recostar a cabeça. No início, quando começara a frequentar o apartamento, sentia-se intruso. Depois, convidado. Mas agora… agora era diferente.
Suas roupas já dividiam espaço no armário, sem que precisasse pedir. Pequenas peças esquecidas no começo acabaram se tornando permanentes. Akihiro nunca reclamou; aceitara aquilo como natural. Na cozinha, Jun havia levado utensílios melhores, panelas novas, ingredientes que antes não estavam na despensa. Não o fizera de propósito — queria apenas facilitar o cotidiano. Mas, quando percebeu, sua presença já estava marcada em cada canto.
Os produtos de limpeza que organizara permaneciam no mesmo lugar. As toalhas do banheiro eram as que ele escolhera. Detalhes sutis, mas que deixavam claro: aquela casa já trazia seu toque.
Foi então que um pensamento surgiu, insistente.
Seria demais pedir para morarem juntos?
Jun fitou o teto, o coração levemente apertado. A relação deles se aprofundava a cada dia. Não era apenas atração, nem conveniência. Algo sólido nascia ali, crescendo entre os dois.
Mas e se Akihiro não quisesse? E se considerasse cedo demais? E se estivesse satisfeito com o que tinham agora, sem desejar mudar nada?
Um suspiro longo escapou de seus lábios. O sofá era confortável, a temperatura agradável, o silêncio envolvente. Seus olhos foram se fechando sem que percebesse, até que o cansaço o levou a um sono leve, tranquilo, protegido pelo espaço que agora também era seu.
O som da fechadura girando foi o primeiro sinal de que Akihiro havia chegado. A porta se abriu sem ruído, revelando a figura alta e robusta do alfa. Carregava o cansaço no corpo, mas mantinha o porte firme. Seus olhos percorreram o ambiente até repousarem sobre Jun, adormecido no sofá.
Por um instante, apenas ficou ali, observando. O peito do ômega subia e descia em ritmo calmo, e seu rosto, relaxado pelo sono, exibia uma serenidade rara. Um sorriso discreto se desenhou nos lábios de Akihiro.
Aproximou-se sem pressa. Jun dormia em uma posição incômoda — o pescoço inclinado demais, uma perna dobrada de forma estranha. Akihiro franziu levemente o cenho. Então, com a delicadeza possível para alguém de corpo grande e mãos firmes, deslizou um braço sob suas pernas e outro por suas costas, ajustando-o para uma posição melhor.
Mesmo assim, o movimento fez Jun soltar um suspiro e piscar lentamente. Os olhos ainda pesados encontraram os de Akihiro, dourados e atentos.
— Akihiro…? — murmurou, a voz embargada pelo torpor do sono.
— Te acordei? — perguntou Akihiro, a voz grave, mas suavizada, como se quisesse preservar a quietude daquele instante.
Jun espreguiçou-se levemente antes de negar com a cabeça.
— Sim, mas não tem problema. — Seus olhos, agora mais atentos, acompanharam os traços do alfa. O cabelo um pouco bagunçado pelo vento, o perfume misturado ao leve cheiro de cigarro… mas o que o prendeu de fato foi a tranquilidade do olhar dourado.
Akihiro sentou-se no braço do sofá, observando-o com a calma habitual. O silêncio se estendeu entre os dois — confortável para ele, sufocante para Jun.
O peito do ômega se apertava com a hesitação. Precisava falar.
— Akihiro… — começou, a voz baixa, carregada de indecisão.
— Hm? — o alfa respondeu, sem pressa.
— Eu… quero dizer uma coisa. — Jun respirou fundo, procurando firmeza. — Quer dizer… minhas roupas já estão no closet junto com as suas e eu cozinho aqui de manhã, à noite também. Gosto disso. — Desviou o olhar, fixando-se em algum ponto da parede, os lábios pressionados, lutando com as palavras.
Akihiro o observou em silêncio, expressão serena, paciente. Depois murmurou apenas:
— Espera um pouco.
Levantou-se e desapareceu pelo corredor. Jun acompanhou-o com os olhos, inquieto, ouvindo o abrir da porta do quarto, o rangido breve de uma gaveta. O silêncio entre um som e outro parecia arrastar-se, carregado de algo que ele não compreendia.
Quando Akihiro retornou, trazia algo nas mãos, escondido em parte. Parou diante dele, fitando-o com aquela serenidade inquebrantável que o desarmava.
— Pode continuar. — A voz era tranquila, como se nada tivesse acontecido.
Jun franziu o cenho, mas retomou, ainda desajeitado:
— Eu gosto de estar aqui. De dormir ao seu lado, de te ver chegando do trabalho, mesmo cansado. Gosto até das suas roupas largadas pela sala, e do jeito como você reclama do meu café, mas bebe tudo assim mesmo. — Um sorriso nervoso lhe escapou. — Então pensei… talvez eu devesse morar aqui. Oficialmente, quero dizer. Só se você quiser, claro. Não quero parecer que estou me impondo. Só… diz alguma coisa.
Akihiro então ergueu a mão, revelando uma pequena caixa de veludo azul-escuro. Ao abri-la, dois anéis repousavam ali: um círculo de prata polida, simples e elegante; o outro, menor, com pequenas pedras alinhadas como fragmentos de luz.
Jun arregalou os olhos, a respiração suspensa.
— Você… ia me pedir em casamento?
O sorriso de Akihiro foi breve, quase irônico.
— Não exatamente. — Seus dedos tocaram a caixa com leveza. — Comprei faz um tempo. Achei que agora era o momento certo de mostrar. Não é um pedido de casamento. É… um pedido de não casamento.
Jun riu, incrédulo.
— Então que tal um pedido para morarmos juntos?
— Também não. — O sorriso do alfa persistiu. — Não queria te pressionar. Você tem sua família, seus irmãos. Eu sabia que, se esse passo fosse dado, teria que partir de você. E partiu.
Jun piscou algumas vezes, bufando em descrença.
— Você sabia! Sabia o que eu queria dizer e deixou eu me enrolar de propósito!
— Foi adorável. — Os olhos de Akihiro cintilaram com humor contido.
Jun bateu de leve no braço dele, ainda rindo nervoso, mas logo voltou a olhar para os anéis. O riso se desfez em uma serenidade inesperada.
— Eu amo minha família. E, por muito tempo, tudo o que eu fazia era por eles. Mas agora… agora eles estão bem. Não precisam mais que eu me sacrifique. Pela primeira vez, eu percebi que posso pensar no que eu quero. — Respirou fundo, encarando-o com firmeza. — E eu quero isso. Quero estar com você.
A expressão de Akihiro se suavizou, mas havia emoção por trás da calma habitual.
— Você falou com eles?
— Com minha mãe. Ela me disse que eu precisava pensar em mim. Acho que, se ela não tivesse dito, eu não teria percebido sozinho.
Um silêncio profundo os envolveu, carregado de entendimento.
Então, Akihiro pegou o anel menor e tomou a mão de Jun com cuidado, deslizando-o em seu anelar esquerdo. O encaixe foi perfeito. Jun olhou para a própria mão, um sorriso úmido e sereno nos lábios.
Pegou o outro anel e fez o mesmo com Akihiro. O gesto, simples, parecia selar algo maior — uma promessa muda.
— Agora moramos juntos — sussurrou Jun.
Akihiro assentiu.
— Vamos falar com seus irmãos. Do jeito certo.
Jun sorriu, o coração leve como não sentia há anos. Pela primeira vez, não estava apenas sobrevivendo. Estava escolhendo. Estava vivendo.
—–
Dias depois.
A cozinha estava tomada pelo aroma sutil do alho dourando no óleo, misturado ao calor suave que se acumulava no ar. Jun cortava cebolas em pedaços uniformes, o movimento contido das lâminas acompanhando o compasso da respiração. Sua mãe mexia uma panela sobre o fogo com a naturalidade de quem repetira aquele gesto milhares de vezes. O borbulhar do óleo preenchia os intervalos entre eles, uma música discreta de intimidade cotidiana.
Na nova casa da família, ainda carregada daquele ar de recomeço, cada detalhe parecia recente demais, mas a cena tinha algo de familiar — as prateleiras alinhadas de potes etiquetados à mão, as toalhas de linho já gastas pelo uso, a chaleira esmaltada de branco sobre a bancada.
Havia lembranças presas ali — não ditas, mas persistentes, como se cada objeto guardasse um fragmento da vida que se erguera naquele lar.
Jun permanecia em silêncio. Algo lhe pesava na garganta, um assunto que se recusava a ganhar forma em palavras. Mas sua mãe, com aquela sabedoria silenciosa que só as mães conhecem, já pressentia.
— A carne está no ponto — comentou, sem erguer os olhos da panela, como se soubesse que o comentário abriria espaço para o que ele trazia por dentro.
Jun apenas assentiu, deixando de lado a tábua com as cebolas e pegando um prato onde dispôs folhas frescas de shiso. O aroma verde, adocicado e picante espalhou-se pelo ambiente. Ele respirou fundo, ainda de costas para ela.
— Você parece mais quieto hoje. — A voz dela era suave, sem julgamento, apenas constatação. — Aconteceu alguma coisa?
— Não é nada ruim — respondeu, por fim. — Só… estou nervoso.
Ela sorriu de leve, voltando a atenção ao molho. Não insistiu. Sabia que certas verdades só se revelam na hora certa, quando o coração encontra abrigo numa refeição quente.
Enquanto isso…
Na sala, Akihiro estava sentado ao lado de Seojin no sofá. A televisão ligada em volume baixo lançava uma luz tênue sobre os dois, mas parecia existir mais por hábito do que por interesse. Jin segurava o controle no colo, os dedos presos ao plástico, como se não soubesse ao certo o que fazer com as mãos. Olhava-o de relance, os gestos tímidos revelando cautela.
Akihiro não apressava nada. Apenas permanecia ali, paciente, oferecendo uma presença tranquila — como aprendera a ser com Jun.
No chão, à frente da mesa de centro, Taeyu estava inclinado sobre um caderno de folhas brancas. Desenhava com concentração, o rosto quase encostando no papel. O estojo aberto ao lado espalhava uma paleta improvisada de cores: azuis intensos, verdes luminosos, laranjas vivos, entre canetas de ponta fina e uma borracha em formato de bichinho.
— O que você está desenhando, Yuu? — perguntou Seojin, inclinando-se um pouco para espiar.
— Um castelo — respondeu sem hesitar, o traço firme conduzindo o desenho.
— Posso ver?
Yuu virou o caderno, revelando torres altas, bandeiras tremulando, muralhas imponentes. Até um dragão sobrevoava a cena.
— Uau — Akihiro sorriu, genuíno. — Você tem talento. Já pensou em ser artista?
— Quero criar jogos quando crescer — disse o menino, sério. — Mas preciso praticar mais.
Akihiro assentiu com respeito, como se falasse com um futuro colega. O comentário fez Jin rir baixinho, e a tensão pareceu se dissolver.
— Ele passa horas desenhando — comentou Jin, já mais à vontade. — Até fez um personagem meu, outro dia.
— Você também desenha? — perguntou Akihiro, voltando-se para ele.
Jin encolheu os ombros, modesto.
— Só um pouco… nada de especial.
— Jun me disse a mesma coisa quando perguntei se ele sabia cantar — respondeu Akihiro, sincero. — Se você for igual a ele, acho que vai acabar se tornando artista.
Jin desviou o olhar, tocado pelo elogio, e assentiu de leve. A confissão o deixava mais confortável. O silêncio que se seguiu não era constrangido, mas sereno — como se, pouco a pouco, a presença de Akihiro estivesse encontrando espaço dentro daquela casa.
—–
Quando a refeição ficou pronta, todos se reuniram em torno da mesa. O cheiro do molho misturava-se ao vapor do arroz recém-cozido, e as tigelas fumegantes passavam de mão em mão com a cadência de um gesto repetido por anos, quase um rito familiar. As conversas surgiam em murmúrios baixos, entremeados por risos suaves, como se todos soubessem — ainda que inconscientemente — que havia algo de diferente naquela noite.
Jun acomodou-se ao lado de Akihiro, o calor sólido de sua presença funcionando como um apoio silencioso. Yuu, ao seu outro lado, já exibia o rosto manchado de molho, com o entusiasmo típico de quem não se preocupa em esconder nada. Jin, em contraste, mantinha-se mais contido: o silêncio habitual acompanhava-lhe os traços, mas havia um sorriso discreto, quase imperceptível, que revelava o quanto se sentia menos desconfortável diante de Akihiro.
Havia harmonia naquela mesa. Uma harmonia delicada, frágil, que Jun queria guardar para si, mesmo sabendo que a mudança se insinuava no horizonte.
Durante alguns minutos, o jantar correu em torno de temas banais: Yuu falava sobre um desenho que queria transformar em história; Jin mencionava, em voz baixa, uma série que assistia escondido; a mãe comentava as compras da semana. Pequenas coisas, mas carregadas de afeto doméstico — aquela espécie de intimidade que não precisa ser nomeada.
Jun demorou a se pronunciar. Tentava prolongar aquele instante como se fosse possível. Até que, enfim, pousou os hashis sobre a tigela e pigarreou de leve.
— Yuu… vem cá. — puxou o irmãozinho para o colo, ajeitando-o contra si. — Quero conversar com você e com Jin sobre uma coisa.
O silêncio se instalou de imediato. Os olhos da mãe se ergueram primeiro, atentos. Jin o encarava em expectativa, e Yuu, ainda mastigando devagar, parecia sentir o peso do que estava por vir sem compreender inteiramente.
Jun buscou, por um instante, a tranquilidade no semblante de Akihiro antes de falar.
— Eu… vou me mudar daqui. Vou morar com Akihiro. — a voz saiu baixa, mas firme.
Yuu congelou.
— Você vai embora pra sempre? — perguntou com os olhos arregalados, como se a ideia fosse uma violência repentina.
Jun sorriu, mas havia um tom melancólico em sua expressão, como vento frio que invade por uma fresta.
— Não, Yuu. Não é para sempre, nem é longe. Vou visitar vocês sempre que puder.
— Eu posso ir também?
— Não — Jun sacudiu a cabeça, mas acariciou-lhe os cabelos. — Mas você pode nos visitar sempre que quiser.
As bochechas de Yuu inflaram num gesto de raiva infantil. Virou-se para Akihiro, o olhar faiscando.
— Achei que você fosse amigo… Por que está levando meu irmão embora, niisan?
A mãe interveio antes que a mágoa se tornasse maior.
— Jun não está nos abandonando, querido. Só vai morar em outro lugar, mas continuará vindo nos ver.
— Mas você vai morar com ele? — insistiu Yuu, apontando para Akihiro. — Para sempre?
A confusão deu lugar a uma tristeza súbita. Em um ímpeto, Yuu escorregou da cadeira e se lançou contra Jun, abraçando-o com força, o rosto escondido em seu peito.
— Eu não quero que você vá embora… — murmurou, a voz embargada, soluçando baixinho.
O silêncio que caiu sobre a mesa foi denso, mas não exigia explicações. A mãe de Jun observava com ternura carregada de melancolia; Jin desviava o olhar, tentando disfarçar a comoção. Akihiro, por sua vez, mantinha a calma habitual, mas a solidariedade transparecia no modo sereno como acompanhava a cena.
Jun apertou o irmãozinho nos braços, deslizando a mão pelos fios escuros com infinita delicadeza. Aquele toque pequeno e dependente o atravessava com doçura dolorida.
— Ei, Yuu… escuta. — murmurou contra os cabelos do menino. — Eu não estou indo embora de verdade. Só mudando de casa. Vamos continuar nos vendo.
— Mas vai ser diferente! — choramingou Yuu. — Você não vai mais estar aqui quando eu acordar… quando eu quiser te mostrar um desenho… e se eu tiver pesadelos?
Jun respirou fundo, firme apesar das lágrimas que ardiam nos olhos.
— Você pode me ligar sempre que quiser.
— Já estamos pensando em deixar um quarto só para você. — disse Akihiro, simples, direto. — E pode dormir lá quando quiser.
Yuu ergueu o rosto molhado, os olhos brilhando, tentando acreditar. A mãe os observava com ternura.
Então Jin quebrou o peso do momento com ironia leve:
— Vocês estão muito dramáticos… É só uma mudança de endereço, não uma viagem para o outro lado do mundo.
Jun riu entre lágrimas, balançando a cabeça.
— Vai ser estranho não ter vocês perto o tempo todo… — murmurou, olhando para Jin. — Vou sentir falta.
Aos poucos, a mesa retomou o ritmo. As conversas voltaram a orbitar o banal, mas cada um ali sabia: algo mudara. Não de forma abrupta, mas como uma maré que, silenciosamente, avança e remodela a praia. Era o começo de um novo ciclo — doloroso em sua transição, mas belo em sua promessa.
—–
O quarto estava tomado por caixas abertas, roupas dobradas às pressas e pequenos objetos espalhados pelo tapete, como se cada um deles guardasse fragmentos da vida de Jun, prontos para serem rearrumados em um novo lugar.
Yuu parecia ser o único que transformava a mudança em brincadeira. Desde que começaram a retirar as coisas da antiga casa, ele não desgrudava do irmão, seguindo-o a cada passo como se temesse perdê-lo de vista. Agora, entre uma pilha de camisetas e uma caixa de livros, agarrou uma blusa clara que quase o cobria por inteiro e saiu correndo pela sala com uma gargalhada estourada.
— Yuu! — Jun chamou, a voz oscilando entre o riso e o cansaço. — Isso não é brinquedo!
O menino, porém, não se deteve. A blusa arrastava-se pelo chão como uma capa improvisada, e ele corria em círculos pelo apartamento, desviando das caixas e dos móveis com a destreza de quem já conhecia aquele espaço como seu.
Jun suspirou, rendido, levantando-se apenas para persegui-lo com passos preguiçosos. O jogo era evidente: Yuu fingia fugir de um inimigo invisível, e Jun estendia os braços como se fosse alcançá-lo, mas nunca chegava a tocá-lo. Era uma peça silenciosa de afeto, um modo envergonhado e alegre de o menino lidar com a iminência da mudança.
Depois de algumas voltas, Jun desistiu. Deixou-se cair no tapete com um suspiro longo, os braços abertos, o cabelo bagunçado caindo pela testa. Ali deitado, sentia o corpo finalmente relaxar contra a textura macia.
Yuu, vitorioso, ergueu os braços para o alto, a blusa balançando como troféu.
Foi nesse instante que Akihiro entrou. Não precisava de esforço para parecer imponente, mas ainda assim assumiu um ar teatral, como se encenasse a chegada de um vilão.
— Muito bem… — sua voz grave ecoou pela sala, carregada de falsa ameaça. — Então é você o responsável pelo caos?
Os olhos de Yuu se arregalaram antes que um sorriso cúmplice lhe escapasse. Apertou a blusa contra o peito como se fosse um escudo.
— Não vai me pegar! — gritou, disparando em nova corrida.
Akihiro avançou devagar, passos pesados que ecoavam de propósito, criando a aura de um caçador à espreita.
— Não tem como escapar — murmurou, curvando-se levemente, as mãos prontas para capturá-lo. — Renda-se e talvez eu seja misericordioso.
Yuu respondeu com um grito agudo de riso, correndo em direção ao sofá. Jun, ainda estirado no tapete, observava a cena com os olhos semicerrados, cansados, mas iluminados pelo sorriso inevitável.
— Akihiro… — chamou, divertido. — Vingue-me.
— Pode deixar, amor. — O alfa desviou no último instante, agarrando o garoto pela cintura.
Yuu se debatia entre risos e protestos, os pés chutando o ar sem força. Akihiro o ergueu como quem captura um inimigo, examinando-o com expressão severa apenas de fachada.
— Então foi você quem ousou atacar o Jun… — disse, grave. — O que será que devo fazer com um prisioneiro tão rebelde?
— Me solta! — Yuu gritava, rindo tanto que mal conseguia respirar. — Hyung! Me ajuda!
Jun cobriu os olhos com o antebraço, sorrindo contra a pele.
— Não posso fazer nada. Você provocou o vilão. Agora aguenta.
As risadas do menino encheram o apartamento até que Akihiro, fingindo rendição, o colocou gentilmente no chão. Yuu tombou de costas sobre o tapete, ainda ofegante. Jun arrastou-se alguns centímetros e deitou-se ao lado dele, entregando-se ao cansaço acumulado.
Por um instante, a sala pareceu suspensa. As caixas abertas, a bagunça, as roupas espalhadas — tudo se dissolvia diante daquela imagem simples: três corpos deitados lado a lado no tapete, dividindo a mesma respiração tranquila de um lar em construção.
Yuu, ainda agarrado à blusa amassada, fechava os olhos devagar, vencido pelo sono. Jun virou a cabeça, encontrando o olhar de Akihiro. Não precisaram de palavras. Havia, no silêncio, uma promessa tácita: por mais improvável que tivesse sido o caminho até ali, estavam tecendo algo novo, entre risadas e confusão.
E, mesmo com as caixas ainda por abrir e os espaços por organizar, naquele dia, o apartamento de Akihiro já não era apenas dele. Era deles.
Fim…
Nota da Autora
Com este capítulo, encerro a narrativa principal de Laços em Carmesim/Crimson Ties
A jornada de Akihiro e Jun chegou ao fim, mas isso não significa que suas histórias tenham terminado. Ainda há momentos não contados, detalhes ocultos e cenas que perduram nas entrelinhas. Por esse motivo, compartilharei capítulos extras que se aprofundam no relacionamento deles, em suas lutas e no desenrolar de tudo o que os aguarda.
Há uma história só sobre a irmã de Akihiro, Himeko, e seu parceiro Rurihito. Caso tenha interesse de uma olhada no meu perfil.
Se você quiser descobrir mais sobre o meu trabalho, tenho outras histórias disponíveis no meu perfil — cada uma com seu próprio mundo, personagens e emoções esperando por você.
Obrigada por ler até aqui. Espero que você continue comigo nos próximos capítulos especiais.
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Laços em Carmesim
Akihiro Hanamura sempre acreditou que laços afetivos não passavam de ilusões passageiras – convenções sociais frágeis que encobriam a inevitável falência das relações humanas. Como...