Capítulo 20
Talvez fosse o lugar lhe influenciando a ter tais sentimentos, mas James estava achando muito estranho sua preocupação pelo outro.
Não que ele não se importasse antes, ele se importava com qualquer pessoa que estivesse ao seu lado como Kýrios fazia em todo esse tempo em que se conheceram.
Mas… havia algo em seu peito lhe dando um pequena aflição.
E o ar baixo do outro lhe dava a sensação de querer confortá-lo, não da maneira como se faz com estranhos onde se fala alguma coisa motivadora e fim, queria abraçá-lo, queria tirar aquele semblante cabisbaixo do outro enquanto ele caminhava ao seu lado.
As vezes olhava a linda paisagem do fundo que era basicamente de um infinito gramado, muitas árvores, alguns riachos e outras coisas simples que formavam uma floresta ao longe. Tudo era simplesmente lindo e normal a uma vista humana, tirando o horizonte estranho de saber que não estavam numa superfície redonda, e sim na parte interna de um círculo.
— James, você já parou pra pensar que em algum momento tudo pode acabar? Ou que tudo um dia acaba? Mesmo as coisas boas? Tudo?
James lhe mirou confuso, não entendendo onde o deus queria chegar com aquelas perguntas repentinas.
— Não. Quer dizer… Sei que você nunca vai dessa pra melhor, é imortal. Já eu…
— Não, não. Não é sobre isso… Estou dizendo sobre coisas que estão além de nós. Como por exemplo, sentimentos, coisas que governam isso tudo, ou… desconexão com as pessoas que a gente mais se importa.
O rapaz lhe mirou ainda mais intrigado, ainda tentando compreender ou deduzir algo daquilo que falava.
— Bom, pelo menos conosco, humanos, essas coisas acontecem o tempo todo. Talvez seja pelo pouco tempo em que vivemos. Isso em comparação a vocês divindades. Então, talvez em determinado tempo a gente pensa que “Porque tenho que ficar com essa pessoa se já não sinto mais nada por ela? Preciso viver! Não posso ficar perdendo meu pouco tempo desta vida, não é?”. Mas sei que isso na maioria das vezes é deixado de lado pela conformidade. Ou, ainda pior, pela pressão social. Vejo muito isso para mulheres.
— Bem curioso um rapaz como você falar tão ciente disso.
— Porquê? Só porque sou um homem que gosta de aproveitar a vida? Ah, Kýrios, eu não sou do tipo que deito pro lado depois de ir e voltar do paraíso. Talvez seja por isso que nenhuma reclamou de mim. Elas gostam de conversar depois do… — ia dizer algo vulgar, mas de repente se sentiu tímido — Acho que isso deve ser um dom meu.
— Pela auto descrição, parece que sim. — disse, o encarando com aqueles olhos doces e que sempre quando lhe mirava pareciam estar sonhando.
— Estou falando a verdade. Não é querendo me gabar, mas sou um bom partido.
— É impressão minha ou… Está fazendo uma propaganda de você para mim? Cuidado, posso comprá-lo.
James arqueou uma sobrancelha e balançou a cabeça em negativa, virando seu rosto para frente.
— Você não me dá um descanso, não? Você… — sentindo suas bochechas esquentarem, virou seu rosto pro lado —Insuportável.
— Cá entre nós, confesse, você gosta dessas interações que temos, não gosta?
— Não. O-odeio… Odeio com todas minhas forças. Se pudesse te jogaria dentro de um vulcão ativo para ter certeza de que me livrei de você. — disse, mas seu tom não tinha nada de aborrecimento, e muito menos de convicção.
O loiro ao seu lado riu contido, e colocou as mãos para trás, caminhando tranquilamente, guiando o rapaz até o destino ao qual queria lhe mostrar.
— Você é um bom rapaz, James. E é por isso que gosto de você. A primeira vez que te vi achei que fosse um filhinho de papai arrogante e chato. Mas me surpreendi. Você não é nada disso. Bom, pelo menos nos dois últimos adjetivos.
James sorriu de canto, e colocou as mãos no bolso.
— E para mim, a primeira vez que te vi achei que fosse um rico excêntrico que gostava de aparecer, um cara meio sem noção, um poço de inconveniência, aquela pessoa que a gente quer esganar somente por vê-la nas nossa frente.
— E qual é agora sua impressão de mim?
— Ainda não mudou nada.
— Você é tão mal James… mas vou te contar um segredo… — o deus chegou um pouco mais perto de seu ouvido, e disse: — Eu gosto de rapazes levados.
James sem querer suspirou, e se afastou repentinamente por sentir sua pele arrepiar e aquecer com aquele dizer e aquela voz grave e baixa em seu ouvido.
— Mas que porra foi…
Kýrios exibia um rosto de quem nem tinha se ligado no que havia dito, isso porque ele realmente não tinha dito com maldade.
— James? O que foi? — perguntou o deus, franzindo o cenho.
— Nada. Foi nada. Vamos em frente. — respondeu, desviando o olhar do loiro.
James queria muito lhe dar uma tapa no rosto, mas sentir e perceber aquela inocência lhe fez recuar e fingir que não tinha se remexido todo por dentro com aquele flerte sem querer do outro.
“Ok, ele é um deus do amor, coisas desse tipo saem dele sem que ele mesmo perceba. Que pena, não vai ser agora que lhe darei uns bons tapas de lição.” Pensou, se colocando numa postura despreocupada para não demostrar o que ele chamava como um “desconforto”.
— Sabe, vocês me divertem. — Continuou o deus. — Deve ser porque me identifico. Sabia que esse tipo de personalidade com um leve toque de “irritabilidade com timidez” atrai muitos amantes? Fui eu quem sugeriu isso para Prometeus quando ele e seu irmão Epimeteu estavam criando vocês. Porque, bem, vocês pareciam como bonecos de pano, não tinham aquele calor ou intensidade. E então eu disse “Está faltando algo, aquela chama. Aquela pitada de malícia ardente. Um calor entre humanos. Intensidade. Me entendem?”. Mas quem diria que Prometeus levou essa minha sugestão em nível literal e lhes deu realmente o fogo em si? Deuses… Foi uma confusão terrível… Mas o pior foi Zeus também pegando essa minha sugestão, da parte da malícia, e praticamente jogou uma bomba no meio dos homens. Coitado deles… Aquela sujeitinha da Pandora… Até hoje não vou com a cara dela. Uma peste com saiotes e joias.
James ficou pensando sobre aquela parte da criação, e não conseguia opinar direito sobre, pois em seu domínio, foi lhe ensinado que foi o seu Deus quem criou a tudo e a todos com seus defeitos e qualidades.
Mas um pequeno palpite lhe surgiu a mente, e talvez esse fosse o segredo de tudo, do porque existem tantas pessoas diferentes naquele mundo…
Afinal, cada domínio tinha seus criadores, e poderia ser que eles teriam criado os seus humanos à sua forma, qualidade e individualidades. Por isso essa tamanha diversidade e belezas tão distintas.
— Então é você o culpado por existir valentões, delinquentes e outros criminosos? Pelo que sei, todo mundo tem seus desejos, e muitos buscam realizar custe o que custar. — perguntou James.
— Ei, não exagere. E posso sim ter alguma culpa, mas assumo somente as culpas boas. A partes ruins você pode punir e se queixar para Zeus e aquela pirralha mau caráter. Eles corromperam tudo que eu achava lindo e puro. — Cruzou os braços, franzindo o cenho, indignado pelas lembranças de seu passado.
James balançou a cabeça junto de um micro sorriso, pensando e se dando conta de o quão velho aquele loiro poderia ser, e até ficava receoso de perguntar pois o outro poderia se ofender, já que o mesmo tinha se mostrado que era bastante vaidoso.
— É aqui. — disse, parando em frente ao lago de água cristalina perfeitamente limpo de toda e qualquer forma de vegetação.
Mas havia um ponto muito estranho que escurecia o fundo, como se fossem pedras de decoração.
— O que tem nesse lago? É bonito, mas… Me passa uma sensação estranha… Me dá arrepios…
— É exatamente o que senti quando vim parar aqui. Até ver o que era. Me acompanha? — perguntou, dando os primeiros passos para dentro do lago, a água deixando ficar até os joelhos submerso.
James ainda se lembrava perfeitamente da última vez em que teve que entrar numa água suspeita, e essa memória o fez recuar um pouco.
— Melhor não.
— Não se preocupe, é seguro. Eu mesmo já entrei aqui várias vezes.
— Porquê?
— Não sei. Acho que pra pensar na vida. Esse lugar todo é muito estranho e muitas coisas aparecem do nada aqui. Tudo é muito perfeito e esquisito. Não gosto muito disso. Me dá má intuição… Mas agora que estou com uma companhia de muita coragem, me sinto mais seguro. — sorriu de canto e deu de ombros.
— Eu é quem deveria dizer isso. Afinal, sou um humano, e você um deus. — cruzou os braços.
— Isso não quer dizer nada, James. Vamos, não é todo dia e nem para todo mundo que falo que tenho meus medos. Orgulhe-se, e se sinta honrado por esse privilégio em saber que até deuses como eu sentem medo. — Sorriu mais uma vez sem mostrar os dentes, e ergueu uma mão sua para outro lhe acompanhar.
James revirou os olhos, e aceitou sua mão no fim, mas só porque o deus parecia estar indicando algum tipo de orientação através daquele gesto, porque poderia ser que ele como um humano não pudesse entrar ou não aguentaria estar ali sem alguma força divina ao seu lado.
A água era muito gelada, parecia sugar suas forças, mas a mão cálida do loiro não deixava que seu corpo ficasse congelando.
— Kýrios, senti algo me tocar! — disse James um tanto apreensivo, parando bruscamente seu caminhar.
— Não se preocupe. Nada neste lugar nos machuca, mas também não se pode muito facilitar, por exemplo, este lago parece exercer algum tipo de influência… Talvez atice nossa curiosidade. Não sei ao certo. Nem sabia que existia esse tipo de lugar. — disse, recomeçando o trajeto de novo.
— Kýrios… Acho que tem alguma coisa aqui…! Mas não estou conseguindo ver. Você está?
O deus fez que não, lhe deixando ainda mais tenso. Fazendo com que institivamente apertasse a mão do outro e parasse de caminhar outra vez.
Eram toques leves, como se alguma coisa estivesse esbarrando de proposito em suas pernas e pés, mas sempre que olhava para aquela água cristalina, não via nada além de seus pés descalços que tocavam nas pedras brancas do fundo e suas calças molhadas, mesmo que tivesse as enrolados até suas panturrilhas para não se molhar.
Mas essa falta de visão durou pouco, pois logo um corpo afundado e virando para baixo encostou, como se alguém tivesse o empurrado para que chegasse até ele pelas sutis ondas do lago.
James deu um passo brusco de susto para trás, mas Kýrios ainda continuou lhe segurando de maneira firme pela mão.
— Kýrios, de quem é esse corpo?!
— Em minhas suposições, quase certas, creio que seja de suas encarnações passadas. — respondeu, sem fazer mistério.
James franziu o cenho, um tanto surpreso, intrigado e assustado. Uma informação daquela dita assim tão diretamente lhe fez sentir uma pequena e leve tontura para processar.
— Quando vim parar aqui, esse lago parece ter me chamado. Fiquei por uns dois, ou talvez três dias o estudando, analisando se era alguma ameaça ou algum tipo de armadilha e depois eu…
— Espera, três dias? Mas… não faz nem um dia completo que você veio parar aqui!
— Hm, acho então que o tempo passa diferente aqui… Mas, isso não vem ao caso. James, as coisas que for ver aqui, se entender algo, por favor, me fale.
O rapaz lhe mirou em compreensão.
De repente veio outro corpo, este menor, e parecia ser de uma menina.
Seus olhos estavam vidrados, havia um ferimento em sua testa, um pequeno buraco que caberia perfeitamente uma flecha.
James pôs a mão na sua própria testa como se sentisse uma dor fantasma ali no mesmo local.
— Kýrios… Você… a reconhece?
O deus fez que sim.
— Foi a primeira Pista de Parca. Eu… sinto muito… eu — engoliu em seco, e fechou os olhos, respirando fundo — Era uma menina tão alegre, esperta, um pouco irritadinha, assim como você. Eu a achava tão fofa… era como se eu tivesse ganho uma filha… mas eu falhei. Me senti tão desesperado que pensei ter acabado com todas minhas chances de continuar essa busca… Mas aí veio o segundo, aquele que você viu primeiro. Um acidente, estávamos fugindo de três quimeras… E ele se sacrificou para me salvar, mas antes de partir me disse que voltaria uma hora ou outra, que não era para eu me preocupar, mas que eu tinha que ser mais cuidadoso… E então… vieram esses outros.
Quando o deus apontou pro lago, James acompanhou para a direção que ele indicava.
E antes que não havia nada, agora havia vários corpos por ali. Não mais de vinte.
Seu estômago começou a revirar, e seu peito a doer. Era uma imagem muito triste, chocante. Todos tinham algo de diferente: um buraco no peito, outro sem a cabeça, havia também um todo desmembrado tendo somente o torso, uma moça toda contorcida com seus membros e pescoço em direções apavorantes… Era difícil de ver tudo aquilo. Havia tantos em tantas situações horríveis que James não aguentou olhar mais, e fechou os olhos, soluçou, tentando segurar um choro.
— Porquê?
— Porquê o quê?
— Kýrios, todos eles… eu… Porque fui escolhido para isso?! Porque logo eu? Sempre eu! — disse, se referindo a todos aqueles corpos que um dia já foi ele.
— Eu gostaria muito de saber também sobre isso. Mas a única coisa que, o que é mais estranho, é que todos eles tinham o mesmo perfil de vir de um mesmo domínio, o seu. Fico me perguntando que ligação isso tem. Já tentei procurar alguma resposta, mas não consigo nem supor alguma coisa. Por isso que gostaria muito de saber de você quando visse todos esses corpos. Pois pensei que talvez tivesse alguma mensagem oculta neles que só você soubesse.
James abriu os olhos, mas evitou de olhar para aqueles corpos ao seu redor.
E também balançou a cabeça em negativa, afirmando que também não sabia.
— Pode ser que eu pudesse em alguma encarnação minha ter feito parte de seu domínio? — supôs James — Talvez eu pudesse ter sido algum servo dessas Parcas, ou… um adorador seu? E talvez por algum motivo a alma tenha mudado para meu domínio porque seria de mais fácil acesso e uma forma mais segura? Isso considerando a sua situação com Olimpo e tudo mais.
— Hm… É uma teoria interessante. Vou pensar mais sobre isso. Assim que eu sair deste lugar vou fazer pesquisas sobre cada adorador meu que fez no passado oferendas para mim. Talvez eu ache a resposta aí! Muito obrigado James. Você não sabe o quanto isso me conforta! — disse, dando mais uma vez aqueles abraços repentinos que deixava James paralisado sem saber o que fazer.
Mas não daquela vez.
Se sentia muito triste, seu coração ainda doía por ver todas aquelas suas versões passadas mortas, e não conseguiu deixar de imaginar o quanto aquele deus deve ter sofrido em desespero e culpa por tê-los perdido.
E começava um pouco a entender o porquê da determinação do outro em lhe proteger e fazer tudo para que ficasse bem. Não era coisa somente de sua personalidade expansiva e exagerada, era medo, muito medo.
E só por esses motivos, decidiu retribuir o abraço do outro.
— James… — murmurou seu nome, em um tom choroso e muito aliviado.
— Tá, ok… — disse dando tapinhas leves na costa do outro — Vamos sair logo desse lago deprimente?
— Sim! Vamos. Não aguento mais ter que olhar para tudo isso de novo… Isso parece até um tipo de punição… — disse, se afastando um pouco e enxugando os olhos, e mesmo com seus olhos marejados, o sorriso de canto não lhe deixava disfarçar seu contentamento por aquela correspondência do abraço — Obrigado, James.
— Disponha. Quer dizer, vamos parar de sentimentalismos. Temos agora que achar uma maneira de sair daqui.
— Sair? James, esse lugar não tem saída. Quem tá lá fora é quem deve fazer alguma abertura para nós. — disse, já caminhando para fora do lago e guiando o rapaz, ainda segurando sua mão.
— Não está falando sério, não é?
— Não tenho o porquê mentir.
— Mas é claro que tem! Você é cheio de artimanhas! Talvez esteja omitindo algo para me deixar preso aqui por mais tempo com você.
O deus arqueou uma sobrancelha, e o deus deu uma breve risada.
— Até que não seria uma má ideia… Assim poderíamos ter mais tempo para nos conhecer melhor. No bom sentido e mais respeitoso, é claro. — disse, soltando a mão do rapaz assim que conseguiram chegar na margem.
— Vai ter que trabalhar muito para me conhecer. E também ganhar minha confiança. Principalmente depois daquela… Daquela coisa toda lá no castelo de Hades.
Kýrios lhe mirou curioso, e sorriu de canto.
— Eu já tinha me esquecido disso. Pensei que já estávamos quites.
— Quites? Não me lembro de nenhuma compensação pelos seus… Pelas sua…
— Ajuda?
— Desonra à minha pessoa e dignidade!
— Ok —Kýrios respirou fundo, enxugando os resquícios de lágrimas que ainda brilhavam em seus olhos e deu um passo para mais perto do rapaz —, o que você quer que eu faça para pagar este meu “delito” a sua pessoa e honra? Peça o que quiser, qualquer coisa mesmo.
James lhe encarou nos olhos, estavam tão perto um do outro que poderia sentir o perfume de sândalo, ou era de algum doce? Ele não sabia distinguir, só sabia que era muito bom, e que lhe deixava com a boca se enchendo de água e cheio de anseios, como quando se tinha a sensação de querer um pedaço de uma bomba de chocolate.
E por conta desse sentimento, se afastou depressa, engolindo em seco e se virando de costas, com a desculpa de torcer um pouco da água do lago de sua calça.
— Por hora, nada. Temos que nos focar em desvendar esse lugar. Saber mais o que se passa por aqui. Apesar de ser um lugar lindo, sinto que há uma coisa sinistra por trás. Eu não sei dizer o que é.
— Concordo com você. Mas enquanto isso… Que tal relaxarmos um pouco? Se estamos aqui, é porque algo bem sério e cansativo nos aconteceu. E creio que não teremos outra oportunidade para fazer pausas. E então, aceita este convite?
— Estou sentindo que vou me arrepender disso…
— Vou tomar como isso um sim. — disse, começando a caminhar para uma direção.
— Aonde vai?
— Me siga. Confie em mim. Acho que vai gostar disso agora.
Dando uma piscadela com um meio sorriso enigmático, se virou e continuou a andar. Sem opções, respirou fundo, e seguiu o deus, muito curioso.
E também um tanto sem jeito por conta de sentir suas mãos suando junto de um certo friozinho ligeiro na barriga…
•
Havia horas ali, mas se passavam muito rápido. Quando James percebeu já estava para anoitecer, e havia lua cheia, que ficava orbitando o halo onde estavam, dando a impressão de que iria se chocar com o satélite em breve.
Mas o melhor de tudo era a comida. Mesmo que fosse somente frutas, lhe satisfaziam como um jantar completo.
Estavam agora numa cabana de madeira, sua arquitetura antiga e muito rústica indicava que o último morador dali tinha vivido numa época medieval. Talvez algum camponês tinha parado naquele lugar do mesmo jeito que eles. Mas o mistério estava em saber onde ele tinha ido parar, já que as coisas que estavam ali pareciam ter sido deixadas não menos que poucas horas.
— Isso tudo é incrível. — admirou James, pegando um livro velho com capa vermelha, ao qual estava escrito “Meu Diário Com Um Só Destino”.
— Tem mais desses, mas a maioria está um pouco apagada. Como se uma inundação tivesse acontecido aqui. Mas o mais interessante foi este. — disse o deus, entregando ao moreno um livro com capa azul escuro.
James deixou o livro que estava em suas mãos e pegou o outro, abrindo-o exatamente onde o marca páginas estava.
Na folha anterior havia uma ilustração de algo muito estranho, um bebê nos braços de uma mulher. Logo abaixo, um raio lhe atingindo, e a mesma protegendo sua criança, mas ambos estavam caídos no chão, desacordados. O bebê desapareceu na figura seguinte, e a mulher já tinha acordado, mas estava chorando sem ele nos braços. Mas, seu desamparo logo teve fim quando uma pessoa alada chegou, se aproximou e abraçou aquela mulher, mas a mesma não sorriu, suas lágrimas ainda continuavam descendo.
James nem olhou para o deus para saber do que e de quem aquilo se tratava.
— Você e Psiquê.
— Sim. E parece que… Eu tive um filho, ou filha. Era nosso quarto bebê. — Sorriu, triste — Eu juro, James, que vou vingá-la. E depois de encontrá-la, vou atrás de nosso filho. Eu já até sei por onde começar. — disse, sua voz saindo com uma raiva contida da qual James ficou surpreso de ver, já que o mesmo também nunca mostrou nenhum sentimento parecido assim para ele.
— Kýrios, isso é suicídio. Ele é o rei de todos os deuses!
— Mas não para mim! Ele deixou de ser meu rei no dia em que chegou no meu lar e sem quaisquer explicações fundadas, acabou com a paz de toda minha família e amigos. E tirou o amor da minha vida de mim… — sua voz saiu baixa na última parte, com muita tristeza.
James ficou pensativo por um tempo, seu coração voltou a doer pelas imagens e por ver uma versão triste daquele deus que ele não tinha visto ainda.
Será que era o lugar causando tudo isso? Ou era somente toda aquela situação mostrada nos livros sobre ele?
Voltando-se para o livro, James folheou mais algumas páginas, tinham algumas aleatoriedades, mas uma em específico lhe chamou muito a atenção.
— Kýrios, veja isso! — disse, e logo o outro correu até a mesa onde o rapaz estava sentado na beira, e ficou ao seu lado.
Na página havia uma figura segurando uma espécie de círculo em uma mão, e passando para a outra ilustração, lá estava ele enterrando esse mesmo círculo, mas ao seu lado estava um outro alguém, e pelas características, era o mesmo que abraçava aquela mulher de antes. Mas isso não foi o pior, o pior foi conseguir ler o que estava escrito em grego ali na próxima gravura:
“O passado foi enterrado, mas o amor continuou com sua alma. K♡J.”
O deus pôs uma mão na boca, e seu semblante triste passou para uma muito intrigada.
— Isso são… eu você…?! — questionou Kýrios, mesmo sabendo o que estava vendo.
— Quem quer que tenha escrito isso, só pode estar fazendo alguma piada. — James fechou o livro e o jogou para um canto qualquer, e pegou uma maçã do recipiente da mesa, mordendo logo um pedaço para disfarçar seu embaraço.
Mas Kýrios pegou novamente o livro, abriu na mesma página, e ficou olhando com muita atenção para todas aquelas ilustrações, ficando até meio perdido nelas.
— Sinceramente, a pessoa que fez isso desenha muito bem.
— Só isso que te interessou? — James perguntou aborrecido.
— Não, bom, só pensei que pudesse ser alguma coincidência.
— Kýrios, pelo que estou vendo desses diários, nenhum deles foi feito com alguma coincidência! Está óbvio, a pessoa que esteve por aqui deve ter sido alguma vidente! Isso são visões!
— Ou, isso tudo são coisas que queremos ver e o que a gente esconde de todos. Esse lugar todo pelo que já percebi faz isso. Veja, tem essa comida toda cheia de coisas que a gente gosta, tem essa paisagem toda linda, e depois tem aquele lago que parece mostrar todas suas reencarnações… Ah, não me esquecendo dos cheiros e aromas desse lugar. James, isso tudo pode ser uma ilusão!
— Está querendo me dizer que estou querendo ver tudo isso que está nesse livro?
— Bem… Eu realmente estou surpreso com todas essas ilustrações…
James largou a mação e foi até o deus, e pegou o livro da mão do ouro, jogando-o novamente, dessa vez pra mais longe, pela janela.
— Se for assim, então o que você viu antes nesse livro também foi uma coisa que você quer?! Talvez nem tenha sido Zeus que tenha feito aquilo com sua mulher e seu filho!
— James, eu estava nesse momento. Bom, pelo menos estive, pra ser sincero, eu cheguei no momento em que Psiquê estava chorando, suas vestes em algumas partes chamuscando, havia icor escorrendo por entre suas pernas… mas, não havia nenhum bebê por ali. Além disso, havia várias marcas no chão ao redor que denunciavam terem sido feitas por algo elétrico. E o único que tem esse tipo de poder para isso é ele! Zeus!
— Certo, mas isso não quer dizer que sua teoria sobre aquelas últimas gravuras estejam certas! E… nem as minhas.
— Ou é uma coisa, ou é outra. Visões ou desejos? Para mim é a junção dos dois!
— Ou nenhuma! Talvez esse lugar mostre o nosso medo! Ou… E só isso! — disse, se afastando do deus e saindo da cabana.
Quando chegou na varanda, soltou o ar que não percebia estar segurando.
Sua respiração estava irregular, suas mãos tinham voltado a suar como horas antes quando estavam lá no lago, e havia um insistente frio na barriga que lhe deixava inquieto.
“Não, porra… Aquelas coisas só podem ser uma ilusão como forma de tortura! Não tem como aquilo ser verdade! Não tem!”
De repente, sentiu uma presença atrás de si.
— Eu quero ficar sozinho. — disse, irritado.
— James… Me desculpe, por favor.
James ficou em silêncio e fechou os olhos, temia que o outro lhe visse daquela maneira, e que “aquela situação” acontecesse novamente.
— Apareceu um copo com creme e suco e limão lá na mesa… Então…
— Estou sem fome.
— James…
— Não quero falar com você agora! — esbravejou, e se sentou nas escadinhas, de costa para o outro, encolhendo-se ao perceber novamente aquele cheiro amadeirado e adocicado vir do outro — E… Vá dormir também!
Kýrios arqueou uma sobrancelha, percebendo algo familiar naquele jeito acanhado que tomou o lugar do aborrecido.
— James, você está novamente… — pigarreou antes de continuar, dando uma breve pausa com um suspirar, talvez percebendo e sentindo algo naquele momento — você está excitado?
Aquilo foi o cúmulo, e James não conseguiu se segurar.
Se levantando com tudo, prensou o loiro contra a parede, segurando sua camisa pela sua gola.
— Escuta aqui, Kýrios, mova um dedo para cima de mim de novo e você morre! De novo! Me ouviu bem?!
O deus prendeu um sorriso, mordendo seus próprios lábios, deixando-os em uma linha fina.
— Então… se eu fizer isso — o deus, de forma ousada como se estivesse pedindo pelo perigo alcançá-lo, ergueu sua mão e somente com um dedo, tocou em um deslize toda a linha da coluna do outro, que fechou os olhos e soltou um suspiro sem querer — vai me matar agora?
— Você…
— James, acho que você se esquece quem eu sou.
— Eu sei que porra você é!
— Então sabe que consigo sentir qualquer sinal de alguma energia de excitação, e por mais que eu sinta uma breve raiva, a maior parte dela está concentrada na primeira.
— Isso é problema meu!
— Porque tem que ser um problema só seu? James, estou aqui para ajudá-lo no que for! Não importa o quê!
— Obrigações! Tudo são obrigações! E isso, eu posso resolver sozinho!
— Por deuses, James, você está de novo com um discurso confuso!
— Será que você não entende? Porra, você estava agora pouco falando dela, de ser o amor da sua vida! E agora está aqui querendo bater uma pra mim?! Você é louco?!
— O amor é uma loucura. É confuso. Leve, e também intenso. Machuca as vezes, mas também pode em outras curar. E além disso, é o meu trabalho protegê-lo, fazer com que você sempre se sinta bem e…
— Foda-se o seu trabalho! — vociferou, largando de mal jeito o deus e saiu correndo da varanda, indo sem rumo a uma direção qualquer.
— James! — o deus chamou — James! — mas foi totalmente ignorado.
•
James estava confuso, e sua cabeça ainda mais.
Porque estava se importando demais com aquela situação? Porque toda vez que aquele deus falava sobre obrigações e trabalho ficava tão incomodado que perdia o controle de suas emoções?
Era tão perceptivo, esperto para analisar coisas subliminares… Mas quando se tratava de coisas assim, principalmente as do seu eu, ficava mais perdido que uma semente de azeitona numa torta de frango.
Talvez seja porque sentimentos nunca mais foram uma opção da qual ele aprimorava, sempre era tudo carnal e banal, tudo era somente prazer momentâneo… Então como ele teria respostas para o que estava sentindo?
Seus pés o levaram a um lugar cinzento, mas ainda assim era bonito.
Era uma ruína de um castelo que já foi um dia, a vegetação já tinha tomado de conta, mas seu verde era apagado, e muitas das flores ali tinham cores pasteis, quase brancas. Suas pétalas enfeitavam o chão, deixando tudo com o ar mais etéreo do que já era.
De repente começou a ouvir uma canção, suave, envolvente, uma voz melodiosa de timbre já bem conhecido…
— Eu também não quero falar com você. — disse, se sentando no chão perto da fonte seca, mas cheia de folhagem ressecada e pétalas pálidas das mais variadas cores pasteis.
— Eu não viria se você não fosse tão dramático.
— Dramático?! Psiquê, você viu o que estava acontecendo?
— Vi. E?
— “E?”? — James esfregou o rosto, jogando sua cabeça para trás, apoiando a mesma na baixa murada da fonte — Você também deve ser uma louca!
— Ah, pare de querer se fazer de mocinho virgem e ingênuo. Quantas e quantas vezes você já não se deleitou com damas compromissadas?
— Isso antes de saber que elas eram compromissadas! Não é minha culpa se elas me procuravam sob o pseudo estado de solteiras e desimpedidas!
— Mas isso não te isenta do ego alimentado depois que sabia disso.
Isso era verdade. James podia até ser inocente quanto ao fato de que essas damas se passavam por jovens filhas de pais ricos que queriam aventuras, quando na verdade eram já casadas, e isso deixava sua autoestima elevada, pois adorava saber do fato de que era desejado até por elas.
— Isso não vem ao caso. O fato é que ele te ama! E o que faz comigo é só obrigação! O que também é uma coisa errada! Nada, em hipótese alguma, pode acontecer! E por milhares de motivos!
— Então está querendo dizer que se ele fizesse tudo com sentimentos, estaria tudo certo?
— Não! Argh! Eu desisto! Você, ele, não dá pra conversar! Impossível!
— Nada é impossível. Aliás, aproveitando que estamos falando sobre possibilidades, ele gosta de sorrisos verdadeiros, principalmente de pessoas que ele se importa muito. Kýrios também gosta de abraços.
— Isso eu já percebi. E pare de ficar dizendo coisas sobre ele!
A deusa riu breve.
— Tem mais, ele gosta quando há uma certa dificuldade da outra parte… Esse é o melhor estilo de sedução para ele. Ele gosta quando há entrelinhas desse tipo. Mas só quando ele sente que há um interesse da outra parte…
— Pare. Já sei o que está querendo fazer de novo. E eu imploro, por favor, não quero saber nada sobre ele!
— James, James… — a deusa que estava em cima de um muro, sentada e com os pés balançando no ar, sumiu em uma fumaça misturada a pétalas e borboletas, e apareceu ao lado do rapaz, se sentando igual a ele ali no chão perto da fonte — Onde está a sua promessa de ficar ao lado dele sempre?
— Estou cumprindo. Mas não dessa forma que está me pedindo pra fazer. Eu me recuso!
— Na verdade… você não está cumprindo. Se estivesse, estaria agora nesse momento lá naquela cabana consolando-o. Ele está triste, viu que você estava ficando também chateado com todo aquele assunto e também tendo esses problemas de “hormônios aflorados”, e a única maneira que ele sabia de poder lhe ajudar era… bem, você sabe. Você poderia lhe ensinar outras maneiras diferentes em vez de gritar com ele. Kýrios é muito sensível com essas coisas, ele deve está nesse momento deitado olhando para o céu e tentando contar as estrelas enquanto pensa numa solução para você. Ou, comendo algum doce sem se importar em se sujar todo. Ele fica assim quando está chateado.
James cobriu o rosto com as mãos, e fungou em cansaço.
— Então eu sou culpado?
— Sim, é culpado.
— Droga. — Murmurou, respirando fundo — Ok, qual é o negócio “diferente do que Kýrios sabe fazer” que eu tenho que fazer?
— Isso você tem que descobrir, faça o que não fui capaz de fazer… Isso é um pedido muito sincero, James. Faça isso por mim.
James franziu o cenho quando a mesma pegou suas mãos e as apertou contra as suas. Seu olhar era o de alguém aflito por algo, mas que não iria falar nenhuma vírgula sequer do porquê estava assim.
— Vou ver o que posso fazer. Mas não prometo nada.
— Já é um começo. E agradeço muito por isso. — Sorriu amigável e então dispersou-se no ar deixando para trás um leve perfume de rosas e as pétalas brancas com algumas borboletas azuis que estavam por ali se movendo junto da brisa noturna.
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Capítulo 20
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Missão Ágape
O Olimpo está em crise, e tudo porque de repente uma profecia disse que um deus iria dizimar o seu sistema e tudo que eles lutaram para conquistar e poderem estar no poder até hoje.
E é...