Capítulo 33
O bruxo ainda estava trêmulo enquanto fazia todo o processo para a retirada de raspas do metal daquela lança. O tempo todo seus olhos iam no rapaz e no deus do amor que ainda lhe acompanhava ali lhe mirando fixo bem ao seu lado.
A magia toda acontecia, a energia era escura com toques avermelhados, suor escorria da testa do bruxo, que usava todo seu poder para macular aquela lança tão poderosa.
Se ele podia ser desonesto novamente e sumir com aquela arma? Ah, ele podia, mas em compensação, iria estar colocando um mundo inteiro indo atrás de si. E em suas análises, não valia a pena ter uma arma daquela se não teria mais sossego para continuar a aproveitar dos seus “prazeres particulares”.
De repente uma grande luminosidade de cor um pouco rosada atingiu todo aquele cômodo, mas não era tão intenso quanto o que tinha sido quando Kýrios tinha feito aquele “despejo” em cima do bruxo.
— Uau. — Murmurou James, ao ver um fragmento que parecia a uma agulha grossa de cor prateada cair no meio do pentagrama em cima da mesa. Havia uma áurea brilhante e dourada que emanava dali. Era parecido até com o pingente de flecha que um dia ele havia dado de presente naquele noivado forçado.
— Um já foi, agora faltam mais quatro. — Avisou o bruxo, olhando de relance para o rapaz, que lhe mirava atento também.
— Só um momento. — disse James, pegando aquele fragmento em suas mãos.
A “raspa da lança” tremeluziu em sua mão, o que o fez temer quebrar se caísse, mas logo isso foi provado quando realmente chegou ao chão, e quicou, como se estivesse vivo.
— Está assim porque está buscando algo para se fundir. Quer ser alimentado. — disse Tânatos, pegando o fragmento, que logo começou a tentar se enterrar em sua pele, mas o deus impediu, tirando-a e colocando sobre a mesa de volta.
— Pode consertar isso? — perguntou James, recebendo um olhar feio e ameaçador do bruxo — Ah, tudo bem, vamos nos virar com isso.
O bruxo então continuou o seu trabalho, retirando um após o outro, sempre perdendo muito de suas energias a cada fragmento. Tanto que quando chegou no quarto e último, não se aguentava em pé, ficando debruçado na ponta da mesa.
— São lindos… — elogiou, pegando os quatro nas mãos.
— Meu pagamento… — Cobrou o bruxo, sem fazer questão de ser agradável.
— Ah sim, é claro. — James ergueu sua mão, e sem hesitar o bruxo fez um corte em seu pulso, já retirando aquela vitalidade de seu corpo.
James franziu o cenho, começando a sentir seu corpo doer e os joelhos fraquejarem, não era intenso quando lhe foi colocada naquele ritual com o deus do amor, mas era tão incômoda quanto.
Aquela nuvem esverdeada e densa saía calma de si, mas James aguentava toda dor, era uma sensação parecida a de estar envolto por pó de mico, não que ele tivesse passado por isso um dia, mas sabia o quanto era ruim.
E no fim, quando tudo do deus do amor se foi de seu corpo, sentiu um vazio imenso, como se tivesse algo oco em seu peito.
— Essa essência divina misturada a sua… Uma iguaria fascinante, não tenho palavras para descrever. — disse o bruxo, limpando o canto de sua boca, que escorria tanto o sangue do rapaz quanto a vitalidade do deus — Agora, minha segunda recompensa do pagamento. — Ergueu a mão, já esperando por um fragmento.
— Ah sim, certo. — James olhou para os pedaços da lança, escolhendo qual deles seria “doado” para aquele bruxo, e quando foi entregar à ele, deixou cair na mesa um, e outro foi para perto de Tânatos — Oh, que falta de jeito… — bufou, parecia nervoso, mas ao mesmo tempo confiante em seguir com seus propósitos — Este aqui é muito bom. Fique com este. — disse, entregando ao bruxo o pedaço, e o mesmo pegou com ganas, sorrindo largamente.
— Foi um prazer fazer negócios com você. Iori, sempre ao seu dispor. — disse o bruxo estendendo a mão para um cumprimento — Não é assim que vocês ocidentais fazem?
— Sim! Exatamente. — James correspondeu ao aperto de mão e sorriu — Qual é o nome de seu irmão mesmo?
O bruxo franziu o cenho, mas resolveu responder.
— Yuto. E espero que não se meta nos meus assuntos. — alertou, por desconfiar do interesse do rapaz.
– É claro, meus assuntos com você já terminaram por aqui. — disse, se levantando e se virando de costas, e logo em seguida, Tânatos retirou de suas costas a foice, e num movimento rápido, a lâmina foi em direção à cabeça do bruxo, que tentou se defender conjurando um feitiço, mas algo estranho lhe aconteceu.
Sua pele toda tomou uma nuance pálida quando o gume da lâmina encostou na pele de seu pescoço, e toda aquela vitalidade que havia consumido, foi devorada pela foice.
Iori tentou erguer a mão com uma faca para tentar acertar e ferir James pelas costas, mas o mesmo se manteve no mesmo lugar, olhando para a saída da sala, até que o brilho dos olhos do bruxo acabasse.
O tal lhe mirou com ódio, e mesmo assim, James exibia uma postura fria, controlada, erguendo de leve uma sobrancelha com ar de superioridade, mesmo que estivesse tremendo por dentro.
E quando o canibal só estava em pele e osso, o deus ao seu lado girou a foice, e num outro movimento, cortou a cabeça do bruxo, que saiu rolando até parar nos pés do deus do amor, que estava de olhos arregalados, muito espantado por toda aquela ação acontecer tão rápido e de modo que parecia ter sido muito bem calculado entre o deu da morte e o rapaz. E quando aquela cabeça decepada girou um pouco mais até que o rosto do bruxo ficasse virado pra si, se afastou indo só um passo pro lado, olhando enojado para aquilo.
— Funciona bem. — disse Tânatos, olhando para sua mão direita.
E lá estava um fragmento da lança fundida em meio a sua carne…
— Que bom. — disse James, se virando, e fazendo uma careta enojada para a cabeça do bruxo — Uau, você não teve pena ein.
Em seguida, por conta de sua alta tensão pelo momento, desmaiou. Mas não só por causa disso, e sim também por causa da vitalidade que foi retirada de seu corpo.
•
Lhe pareceu que foram somente alguns segundos, mas quando acordou, ao olhar para o céu pela janela, viu que o sol estava quase indo, o que lhe fez dar um pulo, sentando-se com tanta velocidade que acabou ficando tonto.
— Shifu acordou! — disse Li-Hua, muito animada e saindo daquele cômodo para avisar o grupo.
— Li… Onde nós… — quis perguntar, mas a moça tinha saído antes, correndo.
Olhou ao redor, e viu que estava num lugar diferente. Não era na casa de dona Nozomi, e muito menos era na casa daquele bruxo canibal. Era um lugar muito limpo, o ar era leve, e algumas brisas do entardecer entravam pela janela fazendo balançar a cortina de tecido que parecia uma nuvem de tão leve que se movia no ar.
— Nossa, parece que alguém te colocou dentro de um saco e te espancaram. — disse Panoptes ao entrar ali de repente sem fazer barulho e o surpreendendo, sendo o primeiro, seguido de Kýrios, Tânatos e por último, Li-Hua, que estava muito animada.
— O quê aconteceu…?
— Você desmaiou. E hoje faz dois dias desde que desmaiou.
— Dois dias…?!
— Sim. — respondeu Tânatos, e depois olhou para o loiro ao seu lado — E ele te carregou até aqui. Está muito preocupado que não tenha mais a vitalidade dele dentro de você. — Fungou de modo melancólico, e continuou: — Está pensando em lhe dar mais.
— Tân! — advertiu Kýrios, um tanto sem jeito, cruzando os braços e fazendo uma expressão aborrecida.
— Mas você está mesmo preocupado. Ficou esses dois dias zanzando pra lá e pra cá velando o sono dele e trazendo coisas pra deixa-lo o mais confortável possível. — Disse o gigante, se aproximando do futon em que o rapaz estava sentado, e logo começou a analisar seu pulso onde havia um curativo muito bem feito, mas que já estava manchado de sangue de novo — Hm, acho que preciso trocar essa merda de novo. Está vazando muito ainda.
— Ah, não precisa, estou bem… Acho que é só meu corpo não tendo muita facilidade para se curar agora que… deixei de ser um “quase-semideus”. — disse, sorrindo de canto meio sem graça, mas a verdade era que todo seu corpo estava dolorido. Novamente. Principalmente suas costas, naquela cauterização.
— Shifu, os pedaços. Você fazer um mais. Para quê? — perguntou a garota, também se aproximando e se sentando perto do rapaz, e desdobrou um lenço contendo os cinco fragmentos da lança, ainda tremeluziam, fazendo um pequeno som de tilintar agudo uns contra os outros.
James então respirou fundo, aliviado que seu plano tenha dado certo. Pegando o lenço da mão da menina, colocou em seu próprio colo e pegou o primeiro, oferecendo à Panoptes, que franziu o cenho.
— Agora você pode virar gigante ou usar as forças de um em qualquer lugar e a qualquer tempo. — disse, dando o fragmento para o gigante, que lhe mirou confuso — E este, é para você, Li-Hua. Sei que é humana, mas mesmo assim irá lhe servir, pois, já que tem uma mãe que é bruxa, creio que possa ser também. Então vai nos ajudar muito futuramente. — A moça ficou com olhos radiantes e marejados, e quando recebeu o pedaço da lança, elevou ao seu peito com muito orgulho do presente de seu shifu — E por último — inspirou fundo —, para você, Kýrios, para que consiga agora usar seus dons libertinos e despudorados nos futuros pobres coitados que cruzarem nosso caminho. — O deus ergueu uma sobrancelha, dando passos lentos até pegar das mãos do rapaz o fragmento.
James pôde jurar que sentiu um pequeno choque quando seus dedos se tocaram, de pois de ver um leve rubor no rosto do deus, pôde ver que isso não era uma coisa de sua mente.
O que significava aquilo?
— Agradeço. Menos pela parte do “libertino e despudorado”. — disse colocando o fragmento em seu bolso da calça e voltando a ficar perto da janela a uma distância que parecia ser metricamente proposital.
— James. — lhe chamou de repente Tânatos, que sem dizer nada devolveu aquele fragmento à James.
Olhou para o pálido deus, e ficou pensando do porque daquela atitude.
E então logo entendeu o porquê…
— Certo. O acordo. — disse, assentindo em positivo, e dando sinal para o deu prosseguir.
Num movimento de mão, a que antes estava com o pedaço da lâmina, logo uma nuvem cinzenta apareceu, formando um círculo no chão, e dali de dentro, um homem maltrapilho carregando uma garrafa vazia apareceu.
— Yuto. — James disse seu nome, sem se assustar com sua presença, talvez por ter visto coisas piores ali na casa do bruxo, e isso tenha lhe deixado um pouco anestesiado para essas coisas mágicas e estranhas, mas também pensava que estivesse assim por não sentir forças de se assustar ou entusiasmar com algo, seu corpo estava cansado demais ainda, mesmo depois daqueles dois dias inconsciente e sem algum sonho estranho — Aqui está o que prometi. — Erguendo a mão em sua direção, lhe entregou o fragmento, que tremeluziu na mão do fantasma.
— Isso vai me trazer de volta à vida?
— Melhor que isso. Vai te fazer quase imortal.
— Como assim?
— É uma teoria minha baseada numa lança que ganhei. Ela pode comportar almas e absorve tudo que tem uma certa energia para alimentá-la, ela transforma, o que também podemos ver isso como uma forma de cura. Então, baseado nisso, esse fragmento vai te fazer vivo outra vez, já que você é uma alma, e almas são energia. Será uma roda viva particular. Você é um ser morto, a lança vai usar essa sua energia de morto e transformá-la em energia viva, e como é um fragmento para ser usado, você vai invocar esse poder dela, um que veio de você próprio. Me entende? Por isso que eu disse “quase-imortal”, porque se alguém te ferir, não haverá machucados. Também não vai morrer, vai depender de você protegê-lo. Mas se perder…
— Eu sei. Viro um fantasma sem eira nem beira, ou pior. Não é o que eu queria, mas creio que é o que preciso. — disse, fazendo uma reverência em agradecimento — Posso fazer um pedido a mais? Não é nada custoso. Gostaria somente de uma resposta.
James se encolheu um pouco, pois sabia qual era a questão daquele fantasma, mas pensou se podia ou não lhe dar a resposta que o mesmo queria.
— Eu sei o que quer saber, Yuto. E a resposta é… — James engoliu em seco, e esfregou o rosto, decidindo seguir seu coração naquele momento, pois se seguisse a lógica, temia que não daria muitos frutos, e só deixaria aquela alma mais aflita do que já se encontrava, mas que agora poderia ter uma nova vida — Foi seu irmão.
O fantasma franziu o cenho, e depois de alguns segundos, como se um mundo de lembranças tivesse lhe atingido, arregalou os olhos, e começou a chorar.
— Eu… Não entendo…
— Eu gostaria muito de responder isso também, mas creio que não haverá tempo para eu poder investigar isso agora. Mas saiba que a justiça foi feita, em parte. — Lamentou James.
— Não, tudo bem. Sei que tem sua jornada para fazer.
— Eu não sou muito bom em dar conselhos… Mas se eu fosse você seguiria em frente. E viveria o tempo que me resta. Aproveitaria o máximo de vida. Afinal, recebeu uma segunda chance.
— Agradeço. Mais uma vez. James-sama.
Yuto quis sumir como parecia ter se acostumado, mas por conta do fragmento em sua mão, continuou ali materializado, uma prova de que o amuleto estava dando certo já, então fazendo uma reverência em agradecimento, se encaminhou para a porta, e olhou uma última vez para todos antes de sumir da vista de todos.
— Meu Deus… — James se jogou para trás, se deitando novamente.
— Bom, já que tudo agora se resolveu, acho que é melhor todos nós darmos espaço para ele poder descansar mais. — Sugeriu Kýrios, se encaminhando para a porta, mas foi impedido por James que lhe chamou:
— Kýrios, por favor, fique. Aliás, quero que todos fiquem aqui comigo. Eu… Não me sinto muito bem. Ainda me sinto enjoado com tudo isso… E preciso do apoio de todos.
— Diga, o que quer e faremos, desde que não seja nada muito difícil também, porque estou com fome, e quero também descansar. — disse Panoptes, se pondo já em pé.
— Sim, sim, claro. — disse, e logo em seguida se lembrou de algo — Sobre a busca… Algo de interessante aconteceu enquanto eu estava desacordado?
Todos do grupo se entreolharam.
— Vamos dizer que só houve uma pequena suspeita de monstros. Vimos no mapa de meu pai. — respondeu Kýrios, e James arregalou os olhos — Mas já os despistamos. Nada demais.
— Como assim nada demais? Temos que agir já! — quando tentou se mover mais rápido, sentiu uma fisgada nas costas, vindo do ferimento, e logo se sentou de volta no futon.
— Está tudo sob controles, James. — disse Tânatos — Kýrios fala a verdade. Podem estar pela região, mas não são de alta gravidade. Podemos todos agora lidar. — disse, se referindo aos fragmentos.
— Está bem… Sei que antes eu falei para irmos o mais rápido que pudermos, mas… se estão falando que estamos seguros por hora… Certo, confesso que sinto meu corpo muito desgastado. Acho que preciso de mais umas boas noites de sono. Mas quero todos aqui comigo. Por favor. Porque…
— James, o que sente? — perguntou Tânatos, estranhando o jeito do rapaz, e além disso, sentia uma baixa energética, como o de alguém que estava prestes a morrer, mas o estranho era que havia uma linha de vida o mantendo dentro de si, como se sua alma estivesse costurada a aquele corpo.
— Eu não sei. É só que sinto um vazio aqui dentro. E por mais que eu saiba que estou seguro agora, sinto medo. Isso é… muito estranho.
— É claro. Você está sem minha vitalidade. — disse Kýrios de repente, respirando fundo, parecendo conter uma irritação constante.
Panoptes e Tânatos, e agora também Li-Hua, se entreolharam, um trio de cúmplices, como se soubessem o que estava havendo ali.
— Vamos deixar para amanhã para continuarmos os planejamentos e nossos diálogos. — Decretou Tânatos, se encaminhando para a saída.
— Tân? — lhe chamou o deus do amor.
— Kýrios, você e ele precisam descansar. James perdeu a vitalidade divina dentro de si, fazer qualquer esforço ou sair agora deste cômodo e continuar nossa jornada é o mesmo que optar pelo fracasso. — Argumentou Tânatos.
— Então… Podemos fazer novamente aquele ritual de ligação! Estou me sentindo muito bem! Tenho vitalidade de sobra! — disse Kýrios, agora um tanto mais entusiasmado.
— Porra, cara, use seus neurônios! Olhe pra ele! — disse o gigante, apontando para James — Ele não consegue nem ficar sentado direito, acha que vai aguentar a um ritual desses de novo?
— Você viu como ele ficou daquela vez que fizemos. — Apontou o deus da morte.
James queria opinar, dizer que aguentaria, mas tinha que ser consciente e responsável consigo naquela hora e admitir não estar disposto, pois insistir naquele segundo ritual de ligação poderia lhe causar mais danos do que curar e resolver sua situação. Se era só isso mesmo que o aflingia.
— Eles têm razão. — Concordou James — Eu não irei aguentar esse ritual nas condições em que me encontro agora. Eu estava cem por cento fisicamente daquela vez e mesmo assim sofri muito. Me perdoem.
O deus do amor, que tinha uma expressão aborrecida pelo argumento de seus companheiros de busca, amoleceu com a confissão de James, e descruzou os braços e apoiou as mãos na cintura, pensando em alguma outra solução.
— Tudo bem. Que passemos mais noites aqui para nos recompormos. Que tal mais três dias? E depois disso quando o sol da última estadia aqui começar a aparecer, saímos para nossa busca novamente. — disse, se dando por vencido.
— Shifu vai melhorar muito, muito. Você ter que ficar aqui então, Kýrios. Alguém pra cuidar, outros descansar, trocar de pessoas em tempo de tempo, pra proteger ele. — Sugeriu Li-Hua, seu semblante parecia a de um menino prestes a aprontar algo.
— Boa, garota! — comemorou Panoptes, adorando a ideia — Então nessa noite, Kýrios é quem vai cuidar primeiro, depois eu, Li-Hua, e por último Tânatos. Pronto, turnos acertados, tudo feito.
— Mas eu ainda não concorde…
Kýrios ia protestar, mas o outro deus lhe interrompeu.
— Boa noite, amigo. — disse Tânatos dando um sutil aceno de cabeça, e abriu a porta dando passagem para a moça e o gigante saírem junto com ele.
A porta então se fechou.
Dois ficaram no quarto.
Se entreolharam.
E desviaram o olhar um do outro.
Silêncio.
Silencio até o deus ficar tão inquieto que não conseguiu se conter de falar.
— Quer comer alguma coisa?
— N-não. Não sinto fome. Quer dizer… sinto sim, mas… me sinto exausto. E não quero dar agora esse trabalho…, mas também… — respirando fundo para disfarçar um certo sentimento de borboletas na barriga por estar sozinho naquele quarto com o deus do amor, resolveu assumir — Ok, creio que se tivesse algo agora eu devoraria.
— Hm, posso pedir neste momento um serviço de quarto então. Vou buscar para você. — disse saindo a passos apressados.
Parecia nervoso também…
James suspirou, e em seguida sorriu por perceber uma coisa. Algo que só notou assim que o deus do amor atravessou a porta e o deixou ali só. Rindo breve por isso enquanto balançava a cabeça em negativa.
— Desculpe decepcioná-los pessoal, mas nada vai acontecer. Isso não é um livro de romance de clichê barato. — Disse para si mesmo, deitando-se de lado, pois suas costas, principalmente o lado que ainda estava com uma ferida cauterizada, doía.
•
Mesmo que tenha passado somente duas horas, quando James acordou, tomou um susto por conta de seu estômago roncar alto, pensando que era algum monstro por perto rugindo.
— Céus… — fungou, passando as mãos no rosto.
— A Fome as vezes é bem desagradável. — comentou Kýrios, assustando um pouco o rapaz, que se virou para ele na hora, lhe dando um olhar de alívio. Estava aquele tempo todo em pé, debruçado na janela vendo o céu estrelado, mas sem lua, enquanto esperava o moreno acordar de novo, assim como tinha feito aqueles dois dias.
A única coisa que iluminava o quarto era a lanterna de papel pendurada no caibro do beiral do telhado, e era assim por todo aquele prédio. A luz suave combinava perfeitamente com a nuance pastel do cômodo, trazendo um ar muito íntimo, como se tudo estivesse preparando algo especial acontecer.
— Você… jantou sozinho? — perguntou, vendo uma bandeja em cima do cômodo, mas não vendo dois recipientes, somente um.
— Não. Decidi esperar por você quando lhe encontrei adormecido. Pensei em fazer-lhe companhia para que eu possa incentivá-lo a comer caso fique de birra. — Argumentou, dando um sorriso sem mostrar os dentes.
James não resistiu a dar um breve e curto sorriso de lado também, como um ato irresistível de correspondência, que logo acabou quando tentou se espreguiçar e todo seu corpo doeu.
— Devo avisar que a comida não está mais quente, James. — informou, indo pegar a bandeja.
— Não, tudo bem, eu como assim mesmo… — disse, enquanto se acomodava melhor para receber a sua refeição.
O deus então se encaminhou até ele, seus passos compassados pareciam dar sinal de algo, mas James entendeu aquilo como uma impertinência de sua cabeça, de que estava enxergando coisa onde não tinha, e por isso, por um breve momento desviou o olhar do deus, olhando para o futon e sua colcha de algodão, impecável de tão creme e limpa que era.
— Espero que esteja do seu gosto, ajudei um pouco na preparação…
— Então deve estar muito bom, digo, por ser um deus e tudo mais.
— Obrigado pelo elogio mas… Muitos deuses não sabem cozinhar. Não do jeito como vocês, mortais.
— É um fato muito interessante. Eu acho…
Era um dialogo um tanto suspicaz… James sentia isso no seu peito toda vez que cruzava o olhar com aquele loiro e sentia seu coração palpitar. Não, não era somente sua beleza, era também o modo como se portava, ou como o mesmo tentava fazer o certo para ele, assim como fez quando lhe salvou daquele bruxo, ou como agora preparando aquele jantar para ele.
Ele estava tentando fazer as coisas darem, isso era bem claro de ser ver.
“Talvez tenha algum dedo de Tânatos nisso.” Pensou James, gostando daquilo.
— Fica lindo quando fica pensativo… — comentou baixo o deus.
— O quê disse?
— Falei que deve estar faminto, melhor comer logo isso. — disse.
— Ah, s-sim, é, vou logo me apressar então…
E antes que fosse destampar a bandeja que estava coberta com uma toalha de mesa, o deus se aproximou para ajudá-lo, e arrumou o prato, colocando alguns pedaços de pão ao lado num recipiente menor onde tinha um lenço de pano, deixando os ali para que o rapaz não tivesse trabalho de despedaça-lo.
— Obrigado, Kýrios.
— Não tem de quê. — disse o deus, lhe fitando antes de se virar.
Mas quando estava prestes a se afastar para ir até a janela contemplar as estrelas de novo, teve seu pulso agarrado pelo rapaz, virando-se na hora para o mesmo, que engoliu em seco antes de dizer:
— Por favor, fique.
— James… — desviou o olhar, sabendo o qual era o conteúdo daquele pedido.
— Eu só quero conversar com você. Quero esclarecer algumas coisas.
Lhe mirando fixamente, fez que sim, assentindo ao pedido do rapaz e se sentando na sua frente ali em cima do futon.
Tendo a segurança de que o deus não fugiria dali, começou a tomar sua sopa de legumes, molhando os pedaços de pão no caldo, comendo, e em seguida indicando para o deus fazer o mesmo.
E o deus acatou, e pegou uma parte para também começar a sua janta.
A sopa estava deliciosa, mesmo estando fria. Talvez a fome de ambos estivesse ajudando a deixar tudo mais saboroso, ou talvez fosse também a companhia de um e outro, ou aqueles olhares furtivos e cheios de uma certa arteirice de adolescentes que estavam descobrindo algo. Era engraçado ver o deus sorrir de vez em quando enquanto olhava pra janela, e James sentia que o motivo daquele sorriso era ele, mas ao mesmo tempo… tentava não pensar em algo mais profundo sobre aquilo, não podia se deixar ter seu peito levado por aquilo, não podia.
Sim, era estranho admitir, mas ter o loiro próximo de si lhe confortava.
E não só isso… Estar perto dele lhe fazia ter o peito cada vez mais aquecido, e ainda tinha aquela sensação gostosa de estar prestes sempre a algo mais.
— Diga, o que quer conversar, James?
— Sobre o que aconteceu quando estávamos no esconderijo de Ares.
— James… eu não…
— Eu realmente sinto muito. Muito mesmo, Kýrios. Sei que está me evitando, e que tem sido difícil para você e sua… divindade. Saiba que acho totalmente compreensível. Eu lhe entendo. Mas também tenho que dizer que me sinto irritado com isso, porque já estou em uma situação bem caótica, e ter que lidar com seus maus humores ou instabilidades…
— Você está completamente certo, James. — O deus fungou, passando uma mão pelos seus cabelos — Sei que tenho agido de forma equivocada. Mas é preciso! Porque eu…
— Sim, sei, banhos gelados não estão funcionando. Não é?
— James, eu não sei o que está acontecendo comigo. Quando me apaixonei por Psiquê, eu nunca mais tive olhos ou senti qualquer desejo por qualquer outro alguém… — disse, incerto do que dizia — Eu realmente não sentia nada por ninguém! Mas de uns tempos pra cá é como se toda a carga desses cem anos sem ela… que todo esse tempo agora estivesse cobrando sua dívida a qual tentei “pagar sozinho” comigo para quitar, e não adianta… Porque…
— Porque está sentindo tais desejos por mim.
O deus escondeu o rosto entre as mãos, e fez que sim.
— Você pode me chamar de libertino ou qualquer outra coisa. Mas uma coisa eu não aceito, é ser chamado de traidor. Entende meu problema? Entende como isso está me deixando transtornado?
James fungou em cansaço, queria dizer que a própria amada dele joga-o para cima de sua pessoa, parecendo esta ser uma missão oculta debaixo da principal que é a busca pelas suas pistas. E isso também o deixa muito afetado e intrigado.
— Sim, eu entendo perfeitamente. E por isso, gostaria de saber o que posso fazer para ajudá-lo. — disse, tentando aparentar estar tranquilo enquanto comia mais um pedaço de pão embebido pelo caldo da sopa.
O deus arregalou os olhos olhando para o rapaz.
— Quando diz em ajudar-me… está dizendo que…
— Kýrios, o mundo é cheio de opções, atalhos e soluções. Então creio que há alguma maneira de resolver essa coisa toda sem quebrar seus princípios, e nem os meus.
— Pensa que não já pensei nisso? Eu vivo pensando nisso! Mas o problema é que… quando começo a pensar nas centenas de milhares de soluções, todas elas acabam em você! E quando me dou conta… — bufou em cansaço — Quando me dou conta já pensei em todas posições em que eu poderia toma-lo…
James se engasgou com a sopa, e o deus lhe deu um tapinha nas costas para ajudá-lo a respirar.
— C-certo, é… — James pigarreou, e pousou a colher dentro do prato — Bom, levando isso tudo de forma bem técnica, isso é normal. Quando se está em uma abstinência por tanto tempo, é um fator lógico que isso possa acontecer. E tem também outro fator, de que qualquer um pode fantasiar o que quer. Mas… Ok… Vamos fazer o seguinte… E se, você se tentasse se aliviar pensando nela? Uma forma bem concentrada na visão da imagem dela! Meditação! Dizem que ajuda.
— Eis aí uma outra questão que vem me afligindo: eu não estou conseguindo pensar nela! O que há de errado em mim? Será que… meu amor por ela está acabando? Isso não pode acontecer! Isso é impossível!
— Kýrios, acalme-se. Olha, é normal que esteja se sentindo assim agora, porque, como eu disse, estar sem fazer aquilo a muito tempo pode ser doloroso mesmo. Isso pode estar mexendo com seu psicológico, e isso quando está instável nos faz começar a pensar em coisas que não têm sentido. Mas tente ver que isso tudo é mais simples do que pensa que é. Talvez… Só esteja sentindo esses impulsos comigo porque eu é que estou no centro de seu objetivo de desejo no momento.
— Como assim?
— Você ama e deseja só Psiquê, certo?
— Certo.
— Mas para achá-la temos que fazer essas buscas para encontrá-la assim como suas pistas, e já que sou uma Pista de Parca, sua mente está vinculando ela e eu num mesmo denominador. Sendo que não é bem assim. Eu sou somente uma ponte, ela é o real desejo. Colocando em analogias, você está se confundindo, se atraindo pelos ingredientes, não pelo prato principal feito. Isso é algo psicológico, porque você está a tanto tempo sem respostas ou algo que pudesse desafogá-lo de tanto sofrimento que, por eu estar te dando resultados, está se apegando à ferramenta, no caso eu, que o leva ao que realmente deseja, no caso ela. Entendeu?
— Entendi. Então… neste caso, eu posso beijá-lo a vontade!
— Não! — James respirou fundo, tentando arranjar uma maneira mais direta de dizer aquilo.
— Eu não o entendo, James. Você me disse que você é o ingrediente, e Psiquê é o prato principal, então porque não posso degustar desses tais ingredientes? Os ingredientes e o prato principal não são a mesma coisa só que em estados diferentes?
— É claro que não! Olha… não é certo! Isso me faria o seu amante! O que seria uma traição! É isso que você quer? — disse, e logo o deus franziu o cenho.
— Não! Eu não quero isso! Nunca, jamais eu a traíria!
— Isso! Agora me entende?
Kýrios de repente abriu um grande sorriso, e depois olhou para baixo, entre suas próprias pernas.
— Por deuses! Obrigado James! Acho que resolveu! Eu não estou mais excitado com você!
— Disponha. — disse, se sentindo estranhamente feliz e tristonho ao mesmo tempo.
— Você realmente é genial! Eu não estava pensando dessa forma… Vire-se de costas James.
— O quê?
— Falei para se virar de costas. — Repetiu o deus, fazendo dessa vez o gesto para se virar.
— O que você quer fazer?
— Quero recompensá-lo.
— O que exatamente que você vai fazer?
— Confie em mim.
James ficou por curtos segundos receoso, mas se rendeu, sob o motivo de que o deus não estava mais “interessado” nele, então não havia perigo.
Ficando de costas para o outro, ouviu o loiro colocar a bandeja em outro lugar, e sentiu o outro se aproximar. Ficou um pouco tenso quando sentiu o farfalhar do deus se acomodando mais no futon e ficando bem próximo.
— Kýrios? — chamou-o, ao sentir duas mãos em seus ombros.
— Relaxe, James. Sei que não posso passar minha vitalidade agora, mas pelo menos posso amenizar suas dores e essa ferida. — disse, massageando os ombros do rapaz.
James pensou em recusar e se afastar, mas as mãos quentes do deus eram tão ágeis e certeiras que não conseguiu resistir a massagem que ia exatamente aonde ele queria.
— Está sentindo algo agora? — perguntou ao deus só para ter certeza.
— Nada! Você não sabe o quanto estou feliz com isso!
— Que bom que pude lhe ajudar.
Sim, estava contente em ter ajudado, mas também um pouco infeliz, mas também se sentia ficar nervoso por causa de algo que crescia em seu peito, e que ia descendo para baixo de seu umbigo…
— Kýrios, acho que já está bom.
— É claro que não. Você está com os músculos muito rígidos ainda.
“Se não tirar essas mãos de mim logo será um outro músculo rígido!” Esbravejou mentalmente, tentando não pensar muito no assunto.
As mãos do deus começaram a apertar seus ombros com mais força, descendo para os braços, e depois para a cintura, onde James não conseguiu segurar um suspiro um tanto suspeito, em seguida mordendo os lábios por isso.
— James?
— Acho que já estou bem relaxado! E-e acho que tenho que ir ao banheiro…!
Quando se levantou para poder se afastar logo das mãos do loiro, seu pé se enroscou no lençol do futon, e tentando segurar o rapaz, Kýrios acabou indo com seu rosto de encontro a virilha do moreno, que para não cair para a frente, se segurou com as duas mãos em sua cabeça.
E foi bem nesse momento, que a porta foi aberta e alguém os pegou naquela posição.
— Ho ho… Bom… Voltarei mais tarde.
Era Panoptes.
— Não! Espera, n-não é o que está pensando! — se justificou James, Kýrios parecia não estar preocupado, seu semblante era o de alguém que parecia estar se divertindo com aquela situação agora.
— Fiquem à vontade! Quando terminarem, me avisem, estarei na recepção. — disse o gigante, e fechou a porta em seguida sem esperar por mais explicações do rapaz.
James ficou estático no lugar, e quando ouviu pequenas gargalhadas iniciais atrás de si, se virou imediatamente para o deus.
— Isso não tem graça!
— É claro que tem. — Riu, se jogando no futon, se deitando de lado enquanto ainda ria.
— Meu Deus… Meu Deus… Ele deve estar pensando que eu… que você estava me… Eu tenho que explicar isso logo!
— Se acalme, James. Afinal, pela dureza que ele deve ter visto e que está bem estampado entre suas pernas, acho que não tem como não pensar.
James olhou para baixo, e viu que realmente estava como o loiro disse.
— James, eu ainda não acabei de te recompensar. E você está todo tenso, então que tal se…
— Não ouse terminar sua proposta! Ou eu arranco em socos esses dentes que parece estar orgulhoso de exibi-los para mim!
— Ah, confesso, estou mesmo muito feliz. E isso tudo graças a você. — disse se levantando do futon, e indo até o moreno, lhe abraçando de surpresa — Obrigado, James, por me trazer conforto e alivio pro meu coração. — Se afastou o suficiente para lhe beijar na testa, deixando o rapaz com os olhos arregalados, desconcertado — Vou mandar que encham uma tina de água bem fria para você. — Deu uma piscadela, e saiu.
James ficou novamente estático, seu coração palpitando junto de um latejar constante no meio de suas pernas.
— Porra! — xingou.
É, agora era ele quem estava com dificuldades…
Comentários no capítulo "Capítulo 33"
COMENTÁRIOS
Capítulo 33
Fonts
Text size
Background
Missão Ágape
O Olimpo está em crise, e tudo porque de repente uma profecia disse que um deus iria dizimar o seu sistema e tudo que eles lutaram para conquistar e poderem estar no poder até hoje.
E é...