Capítulo 0
Volume 1
Prólogo
Era uma noite nevada e silenciosa no vigésimo terceiro aniversário de Shen Shining. Não poderia ser mais perfeito. Como um camundongo de biblioteca que era e, um nerd sem vida social, ele estava envolto numa coberta quente em frente a tela do computador, procurando algum livro interessante na Jinjiang Literature City[1] para que pudesse desfrutar de uma leitura atípica nessa ocasião singular.
Romance quente não era algo que lhe cativava, pois, em seu ponto de vista crítico e venenoso, quase não havia desenvolvimento para os casais literários; eles apaixonavam-se rápido demais, e eram melosos além do necessário, mesmo que não houvesse química entre o protagonista masculino e a coadjuvante feminina. Outros gêneros dos quais passara longe nos últimos quatro anos foram: Mistério, Wuxia[2], Terror, Ficção Adolescente, Ação e Comédia. Contando que a narrativa Danmei[3] não fosse abordada em um livro de Xianxia, ele faria questão de ler.
No hodierno campo literário, Transmigração era o gênero que mais estava fazendo sucesso entre os escritores do noroeste asiático, onde a cada dez livros publicados em Luoyang, nove eram sobre este tema que abordava sobre o teletransporte voluntário e involuntário de almas e o fluxo delas por mundos futuristas ou medievais. Os leitores conseguiam compreender por completo os protagonistas desse gênero específico e de narrativa complexa, onde as figuras principais dos livros foram, outrora simples pessoas modernas, que acabaram por falta de criatividade dos escritores, morrendo de maneira inconveniente e tiveram seus espíritos migrados de forma inexplicável para algum enredo fantasioso antes de perecer de forma vergonhosa. Os protagonistas antes de serem transmigrados, em suma, tinham pensamentos muito confusos sobre tudo, mas uma pequena ideia conseguia ser lúcida em meio ao caos. Ela não vagava de maneira sorrateira, tampouco fazia questão. Na verdade, ela era bastante perceptível para qualquer leitor: a vaga ideia dos protagonistas de querer desaparecer. Não morrer. Desaparecer da sociedade seria a definição mais certeira a se dizer.
Haviam muitas teorias sobre o fluxo de almas para outros mundos, muitos livros sobre o assunto e relatos pessoais na internet. Era bastante comum os relatos pessoais acabarem vindo de pacientes que despertaram do coma. Por isso, os depoimentos eram deixados de lado pelos jovens que tinham interesse de acabar com suas próprias vidas para serem enviados para algum lugar diferente, longe da sociedade civilizada e moderna. Sim, havia muitos jovens buscando por “liberdade” através da morte. Não que eles quisessem morrer e virar adubo para a terra. Muitos queriam ceifar a solidão, a dor, o desejo decifrável de querer se manter longe dos sistemas políticos e sociáveis. Serem enviados para novos mundos, sendo novas pessoas e encontrando utopias arcaicas, poderia ser a resposta para uma vida mais intensa e divertida.
Acreditem, haviam pessoas cansadas da velha trajetória humana: nascer, crescer e morrer. Claro, os ciclos não eram tão lacônicos. Uns iriam nascer, mal iriam começar a andar, e começariam a sofrer. Outros iriam nascer tendo mais sorte, seriam amados pelos pais e familiares, iriam crescer saudáveis e depois trilhariam caminhos sem espinhos. Uns iriam escolher se casar cedo, outros teriam carreiras almejadas e, muitos, seriam fracassados.
A trajetória humana era tão… entediante.
De qualquer maneira, por isso havia muitas pessoas desejando serem teletransportadas para outros lugares. Tudo para que pudessem no final de tudo fugir do sistema, dos padrões que a sociedade impunha sobre os ombros dos seus semelhantes, das leis criadas pelos poderosos que ansiavam cada dia por mais poder, dinheiro e status. Para aqueles que queriam fugir da realidade medíocre em que viviam, a morte não seria a salvação. A transmigração era a melhor chance entre as outras para poderem sentir a intensidade da vida. Ter a oportunidade de escapar do mundo que fora dominado por tantos energúmenos seria uma benção oficial do céu. E para os jovens que queriam fugir da realidade medíocre em que viviam, até mesmo o inferno seria considerado um lugar hospitaleiro.
– Ning, já estou partindo – A voz monótona do único colega de Shen Shining rompeu o silêncio do dormitório. – Não se esqueça do que eu lhe disse hoje cedo. Tenha cuidado.
– Hum. – Ele chegou a murmurar, sem ao menos ter escutado.
Em consideração ao próprio entretenimento, continuara com o dedo indicador sobre o lado esquerdo do mouse, até avistar uma pasta desconhecida da área de trabalho do computador, justo do lado direito, onde era de costume ficar os pacotes office nunca usados. A pasta do arquivo fora nomeada de uma forma peculiar; “Guerrilha de Zhou”. Além do título pouco chamativo, continha dois emojis roxos no final, aquele de chifres na cabeça e olhar maroto. Por fim, isso atraiu o interesse do leitor troll[4]. Que, por vez, acabara clicando com bastante entusiasmo em cima do arquivo que nunca fora visto antes. Sendo invadido por tristeza repentina, vira que o arquivo contava com as informações de um livro, a capa dele, a sinopse e os links que lhe direcionava automaticamente para os capítulos que continham mais de cinco mil ideogramas.
A bela capa era digna de comentários do tipo: “Céus, fiquei cego com tanta beleza”, ou, “Céus, Vincent Van Gogh ainda está vivo e trabalhando com capas de livros?” Todavia, a sinopse não causava nada além de decepção. Em resumo, se tratava de: protagonista com passado triste, harém, embelezamento da violência sexual, um imperador formidável com disposição para o mal e para o bem, um vilão sem carisma, final feliz e muita obscenidade explícita.
– Que porcaria é essa?!
A indignação de Shen Shining era de tamanho tão imensurável, que o mouse estava sendo triturado em sua mão pela sensação de desgosto. O arquivo nem ao menos tratava-se de um vídeo erótico, mas sim de um livro extremamente ruim!
– Até o Império Babilônico é mais desenvolvido que essa sinopse – bradou sem restrições. – Isso é uma afronta para os escritores que estão dando tudo de si para escreverem!
Havia até mesmo um recado do autor no final da sinopse curta e mal escrita: venham embarcar comigo no último volume de Guerrilha de Zhou, e ler a intensa batalha de Yin Chang contra o Imperador Zhou! Onde o harém com duzentas belas mulheres trará muito prazer para o protagonista e para os leitores, haha.
– Me entregue uma caneta e um papel, escreverei algo melhor! A palavra é prata, o silêncio é ouro, seu autor de merda!
Disparando mais algumas palavras grosseiras sobre o livro, estendera o braço para puxar em sua direção, a caixa de papelão aberta pela metade ao lado da escrivaninha.
– Seu estúpido de cérebro pequeno, como você pôde se esquecer de comer a sua pizza? – disse abocanhando a última fatia fina de pizza de quatro queijos, a qual deveria ter sido comida muito antes por seu colega de dormitório.
Li Yan era o nome dele. Qualidades? Nenhuma. Defeitos? Vários. Principalmente a característica absurda de ficar falando sozinho pelos cantos, até mesmo chegando a responder-se com eloquência e educação. Na penumbra da noite, ouvia músicas de meditação na plataforma Bilibili. O toque de um guqin sempre preenchendo a escuridão e a solidão que jazia no dormitório, cujo fora limpo apenas dez ou onze vezes ao longo de três longos anos; aquele quarto até mesmo estava infestado de ratos! A alimentação dos dois inquilinos nunca fora considerada boa. As sopas de lótus eram substituídas por lanches gordurosos e bebidas energéticas em quase todas as ocasiões, e, como se a situação não pudesse piorar, o microondas trabalhava durante o turno da madrugada, chegando a incomodar os roedores que estavam correndo sobre o forro do teto.
Shen Shining finalizara a fatia de pizza em mordidas rápidas por temer que Li Yan retornasse triunfante, a fim de buscar por pertences pessoais esquecidos no dormitório. Passaram-se alguns poucos minutos, mas ele ainda sim continuava lançando palavras de baixo-calão ao livro, pois, fora possível encontrar o fórum dele no Baidu[4]. E então ele, um leitor troll que gostava de insultar livros que nem lera por simplesmente ter o direito disso, descobriu que o número de visualizações daquela obra libertinosa achada em sua área de trabalho era exorbitantemente alto!
Procurar na Jinjiang Literature City fora a chave para abrir a porta da insatisfação e da indignação, porque assim pôde-se descobrir que Guerrilha de Zhou possuía mais fãs que o livro de Sun Tzu, A Arte da Guerra. E o pior estava por vir — fora possível descobrir a rede social de quem havia escrito o livro! Shen Shining entrou em sua conta na Weibo e descobriu que o autor que usava o pseudônimo de “Camundongo Rosa” tinha quinhentos mil seguidores!
– Porra! – exclamou, sem conseguir evitar.
Sendo um leitor de histórico renomado, é claro que havia indignação em sua alma transcendente. A mente dele armazenava títulos respeitáveis, escritas dignas de palmas e nomes de autores invejáveis. Diante daquela obra de nível baixo, o poder de julgamento pode-se libertar!
“Então é aqui que eu posso fazer um comentário?” pensara com graça, já pressionando as teclas do teclado.
“Como a porcaria da sua obra pode ter tantos fãs? As pessoas estão tão enjoadas da realidade que se escondem na sombra de algo tão imoral e sem escrúpulos? Estou muito indignado; um protagonista com duzentas mulheres em seu harém. Ele é pior que os lordes da Dinastia Ming, aqueles patifes de gola alta! Camundongo Rosa, você não tem vergonha de ter escrito algo assim? Eu com toda certeza teria. Rosinha, lhe falta talento e sal. Por mim, esse livro não teria nenhuma leitura. Parabéns, nota dó.”
– Esse comentário foi apenas um pequeno aquecimento.
O leitor troll, enegrecido pela indignação, sorriu perverso e clicou sobre o lado esquerdo do mouse para que o comentário escrito fosse publicado na última foto postada pelo autor, cuja qual nem ao menos mostrava o rosto dele, mas sim apenas a sua lateral, onde o homem ou a mulher queria mostrar a orelha infestada dos mais belos brincos já banhados em ouro.
– Estou com dor de barriga. Mas espere um momento, autor de merda, eu já retorno! – disse enfatizando cada sílaba, para deixar claro que não encerraria suas críticas quase criminosas. – Preciso de comprimidos para azia.
Ele levantou-se solene e escutou um estalo baixo logo em seguida; sua coluna deixando claro que fora posicionada de forma errada no encosto da cadeira, a qual ficava diante da escrivaninha. Quando se pusera de pé, sentiu-se tonto sem motivos, como se tivesse ingerido alguma substância ilícita, e as vistas turvas escureceram, perdurando até ele conseguir pegar os comprimidos para azia e engoli-los. No decorrer do processo, ingeriu mililitros de água, facilitando a passagem deles pela garganta até o estômago inchado, que se encontrava nesse estado por estar armazenando muita massa, chegando a causar dores abdominais.
– Puxa – De súbito, não pôde evitar exclamar ofegante. – O que diabos está acontecendo com o meu corpo?
Era como se o seu interior estivesse em festa, preparando zelosamente um festival primaveril japonês com direito a fogos de artifício e quilos de picanha na tábua de bambu, causando-lhe náusea e provocando os poros da pele para transbordar em sudorese. Apenas respirar se tornara uma missão insuportável para Shen Shining, que empalidecera a olhos vistos. O seu corpo magro de estatura comum fora perdendo o equilíbrio aos poucos e desabara sobre o piso de porcelanato em um baque surdo. Os membros ficaram rígidos nas extremidades geladas e o ritmo dos batimentos cardíacos era anormal, sendo acima de cem batimentos por minuto. A salivação espumante da boca transbordou para fora, semelhante a quando comportas hidráulicas são abertas para o vertimento. Conforme a miríade de lágrimas quentes deslizasse uma atrás da outra pela face pálida dele, num fluxo interminável, o aviso alarmante de Li Yan vagou pela sua mente desconexa da realidade:
“Ning, o quarto está infestado de ratos. Colocarei veneno nos restos de comida e deixarei a ratoeira adesiva no chão. Tome cuidado com ela, e não coma a última fatia de pizza.”
Quando o escutara dizer isso, não fizera questão de tomar cuidado, porque jamais passara por sua cabeça oca como coco que ele seria tão descuidado ao ponto de pisar na ratoeira adesiva, que demonstrou ser eficiente na captura de sujeitos indesejáveis. Demasiadas tentativas sem êxito foram feitas para descolar o pé do centro dela, mas só se obteve sucesso com o auxílio de Li Yan e o manejo de um canivete do exército. Quanto ao veneno vindo do distrito de Tangshan, ele era eficaz até mesmo nos ratos-toupeiras[5], e nos humanos, podendo levá-los a óbito numa questão de minutos. Por ser potencializado com chumbinho e outros componentes tóxicos, a venda era clandestina e o nome Aldicarb[6] nem estava registrado na Anvisa.
– Patético…
Os lábios do imóvel Shen Shining já estavam roxos quando suas últimas palavras soaram numa referência irrelevante. Os olhos marejados de lágrima se fecharam para o mundo e para a vida, para nunca serem erguidos outra vez.
Assim que muitas batidas soaram estridentes no lado de fora do corredor, e a porta do dormitório fora escancarada num impulso violento, a tela do computador começara a ligar e desligar várias vezes consecutivas. A capa daquele livro de sinopse decepcionante aparecera de relance na tela. Os ideogramas dourados nela se locomoveram como se fossem cartas de baralho na mãos de um mágico hiperativo, até a junção formar um novo título:
Seja bem-vindo à Guerrilha de Zhou.
«nível: figurante»
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Jinjiang Literature City: também conhecido como jjwxc , é um importante site de língua chinesa para publicação e serialização de romances online. É o lar de uma ampla variedade de gêneros de ficção online, incluindo romance, ficção histórica, wuxia, fantasia e danmei . O site também é usado para hospedar fanfiction em chinês e traduções de fanfiction de outros idiomas para o chinês. Fonte
Wuxia: é um gênero de ficção tipicamente chinês, que envolve o mundo das artes marciais. Esse estilo literário geralmente apresenta lutas de espadas e técnicas de kung-fu. A palavra wuxia é a junção de dois termos. Wu (武), que significa “militar” ou “armado”, e xia (俠), que remete à “honrado” ou “herói”. fonte
Leitor Troll: um leitor que carrega a concepção de: eu estou lendo este livro e investindo o meu tempo nele, posso criticá-lo à vontade, posso insultar o autor e quero chamar a atenção dele, devo encontrar falhas nos enredos e expô-las aos outros leitores que leem.
Baidu: espécie de Google na China.
Ratos Toupeiras: espécie de rato imune à velhice e ao câncer.
Aldicarb: Um único grama do veneno pode matar uma pessoa de até 60 quilos em meia hora. Se inalado, o produto percorre a corrente sanguínea e também pode levar rapidamente à morte. Toxicologistas dizem que o veneno não tem cheiro nem gosto, e lesa o sistema n
ervoso central, causando transtorno neurológico, parada cardíaca e paralisia dos pulmões.
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