Capítulo 14: A Família Mo

Mesmo que ele estivesse aqui para as crianças Mo e até alugasse a unidade em frente a eles em preparação para ficar secretamente de olho neles, An Jie estava acostumado a ficar sozinho e não tinha planos de interferir em suas vidas. Ele não podia prometer muito, mas como um adulto maduro, ele poderia pelo menos ter certeza de que nada de importante aconteceria com essas três crianças.

Era a única coisa que ele podia fazer por Mo Yannan. 

O filho mais velho da família Mo, Mo Cong, era aluno de uma universidade distinta. Ele não se parecia com seu pai; alto com ombros ligeiramente largos, embora fosse mais magro; e se alguém olhasse de perto, poderiam de fato encontrar contornos de músculos lisos sob sua roupa fina. Seu rosto era bonito para dizer o mínimo e quando ele sorria, mostrava até seus dois caninos, uma aura de sol juvenil saindo de seu rosto. A única parte que faltava era o queixo que parecia exatamente com o de sua mãe, possivelmente um pouco afiado demais para um menino; isso junto com um par de lábios finos que pareciam ser um pouco cruéis. Felizmente, o sorriso amigável e entusiasmado que estava sempre em seu rosto encobria mais ou menos.

Esta criança era muito pensativa. Quando ele voltou naquela noite e viu que um novo vizinho havia se mudado, ele imediatamente se aproximou e perguntou se havia algo em que pudesse ajudar. An Jie conversou com ele enquanto observava o menino.

Mo Cong: à primeira vista, ele era o típico bom filho de um pai, e um típico bom jovem do país.

Brilhante, entusiasmado, sempre sabendo o que dizer, atencioso, sabendo tratar bem as pessoas… No dia seguinte à mudança de An Jie, bem a tempo do fim de semana, foi Mo Cong quem abriu as portas para ele e apontou direções para os caras das mudanças quando trouxeram sua nova estante para cima.

Mas, por alguma razão, An Jie sentia que havia algo errado com essa criança. Não era algo que ele pudesse explicar, mas sim um palpite. Depois de todos esses anos observando as pessoas, ele não diria que podia ver através de todos imediatamente, mas algumas experiências o ajudaram a desenvolver um instinto quase subconsciente.

Havia uma sensação oculta de dissonância nesse jovem, Mo Cong.

Depois de um dia inteiro de trabalho atarefado, a casa de An Jie finalmente estava um pouco apresentável, os móveis e eletrodomésticos comuns todos montados. Ele soltou um longo suspiro, suas costas encharcadas de suor.

“Isso não foi fácil,” An Jie sorriu com tristeza enquanto dava um tapinha no ombro de Mo Cong. “Finalmente entendo por que antigamente chamavam a mudança de casa de ‘grande trabalho’. Eu tenho que agradecer por hoje, eu não sei quanto tempo teria me levado de outra forma.”

Mo Cong acenou com a mão de uma maneira familiar. “Somos vizinhos, não precisa ser tão educado. Quem sabe com quantas coisas terei que o incomodar no futuro? Eu não tinha nada para fazer neste fim de semana de qualquer maneira; minha irmã acabou de entrar no ensino médio, então se eu ficar em casa jogando, só a vou perturbar. Eu podia muito bem ajudar você, como exercício.” Ele aceitou o copo que An Jie lhe passou e bebeu tudo de uma vez. Tinha sido um longo dia de trabalho duro e ainda havia gotas de suor nos cantos de sua testa. “Tem um gosto bom. Você mudou a geladeira ontem, certo? Gênio.”

An Jie pegou sua caneca e serviu outra xícara. “Beba o quanto quiser. Chame sua irmã e eu levarei vocês dois para o jantar, como agradecimento.”

“Não.” Mo Cong sorriu estranhamente e apontou para sua porta. “Minha Xiao Yu, se fosse nos velhos tempos, ela definitivamente seria uma jovem virtuosa. Ela passa todos os dias em casa. Eu às vezes me preocupo que ela vai ganhar mofo. Uma vez, pedimos a ela para comprar um pouco de molho de soja quando éramos jovens, heh, e ela passou duas horas sendo teimosa e se recusando a se mexer. Eu vejo que você está morando sozinho também, então seus pais estão em outra cidade? Não gaste seu dinheiro conosco, pense nisso como um favor.”

“Se eu comi bem, minha casa inteira também comeu [1],” An Jie sorriu. Houve tanto barulho do movimento deles, e ainda assim aquela garotinha Mo Yu nem se incomodou em dar uma olhada. Talvez tivesse algo a ver com o desaparecimento de seu pai. De repente, ele se lembrou daqueles convidados indesejados da noite passada e percebeu que havia algo errado. Era lógico que Mo Cong já soubesse que o professor Mo estava desaparecido e tinha poucas chances de estar vivo, mas ele estava agindo como se nada tivesse acontecido, normal ao ponto de anormalidade. Então An Jie perguntou timidamente: “Vocês dois irmãos moram aqui por causa da escola, certo? Alugado também?”

“Não, somos três; as duas meninas são gêmeas e a outra se chama Xiao Jin. Ela é um pouco selvagem e raramente volta para casa, não tenho controle sobre ela. Não alugamos esta unidade. Meus pais se divorciaram quando éramos jovens; minha mãe foi para o exterior com um nariz grande [2], e meu pai… Quem sabe onde ele está.” Mo Cong deu de ombros. “Ontem, Xiao Yu me disse que duas pessoas vieram nos dizer que o velho havia desaparecido, então quem sabe se ele ainda está vivo.”

Ao dizer isso, Mo Cong desviou o olhar, olhando indiferente para o chão, sua expressão fria e indiferente como se não ligasse.

An Jie ficou atordoado. “Seu pai… eu sinto muito.”

Seu pedido de desculpas foi sincero, mas Mo Cong não entendeu. “O que isso importa? Você saberá eventualmente, já que mora em frente a nós, mas não faz diferença se meu pai está em casa ou não. Quem sabe o que ele está fazendo, ele raramente volta para casa e, mesmo que o faça, não há muito o que notar. Xiao Jin não se dá bem com ele e foge de casa constantemente.”

“Então financeiramente…”

“Eu digo, irmão, não olhe para mim como se você fosse um voluntário vendo um campo de refugiados,” Mo Cong riu descuidadamente. “Não se preocupe, a velha pode ter fugido com aquele nariz grande, mas ela ainda se lembra de nos enviar dinheiro. O velho economizou algum dinheiro ao longo dos anos também. Além disso, alguns empregos de meio período do meu lado são suficientes para cobrir os custos dessas duas garotas. Não é grande coisa.”

An Jie franziu a testa. Mesmo sabendo que a personalidade rígida de Lao Mo e sua tendência a se concentrar apenas nos estudos significavam que sua relação com os filhos poderia não ser tão harmoniosa, ele não esperava que fosse tão distante. Não é de admirar por que toda vez que ele falava de seu filho, a expressão do velho professor era sempre tão sem graça.

Como se temesse que An Jie se debruçasse sobre esse problema, Mo Cong rapidamente mudou de assunto. “Você ainda está na escola, certo? Ensino médio? Universidade?”

“Um sênior; naquele Colégio X do outro lado da estrada. Acabei de me transferir,” An Jie disse suavemente.

Mo Cong arregalou os olhos. “Sério? Minhas irmãs, ambas, são primeiranistas em sua escola. Isso deve ser o destino! Ahem, mas o último ano deve ser muito estressante. Mesmo que eu, seu irmão [3], tenha conseguido entrar na universidade…” Ele coçou a cabeça e fez uma careta. “Depois de um ano sem estudar esses tópicos, provavelmente devolvi todo o meu conhecimento aos meus professores. Se você não se importa, você ainda pode vir me perguntar se tiver alguma dúvida; não poderei fazer muito, mas ainda posso dar algumas dicas…”

“Ge! Mo Cong, Mo Yu! Abram a porta!”

A porta de sua unidade ainda estava aberta, pois An Jie acabara de terminar seu trabalho. Um uivo soou no corredor e a porta em frente a eles foi fechada com força, interrompendo a tentativa de Mo Cong de se anunciar. 

Mo Cong franziu a testa. “Aqueles que conhecem sabem que ela está voltando para casa, e aqueles que não conhecem vão pensar que ela está aqui por vingança – nossa irmã Xiao Jin está de volta. Vou dar uma olhada.”

Enquanto ele falava, Mo Yu já havia aberto a porta para sua irmã gêmea. As duas garotas sussurraram uma para a outra. Mo Yu apontou para a porta oposta e Mo Jin se virou. Quando ela viu An Jie atrás de seu irmão mais velho, seus olhos se iluminaram.

No momento em que An Jie viu essa garota, ele entendeu por que o velho professor não se dava bem com ela. O físico da garota era bastante semelhante ao de Mo Yu, e se alguém olhasse com cuidado, ela parecia exatamente igual a Mo Yu… mas tinha que ser com cuidado. Esta menina tem uma cabeleira de galinha tingida de inúmeras cores, um tufo comprido ali, uma mecha curta aqui. Duas manchas estavam borradas em seus olhos: maquiagem esfumaçada se ele estivesse sendo gentil, mas na verdade apenas dois olhos de panda. Suas orelhas estavam ainda mais animadas: piercings cobriam toda a sua orelha esquerda como se estivesse correndo para o mercado matinal, e uma argola de metal gigante pendurado em sua orelha direita, quase atingindo seu ombro. An Jie tinha a suspeita de que se ela a usasse por tempo suficiente, seu pescoço ficaria torto por causa daquele brinco. Suas roupas eram ainda mais impressionantes,

Se essa garota fosse sua irmã, ele já a teria matado para a salvar do constrangimento de sair… An Jie sentiu seu coração tremer, pensando que se ele a colocasse em uma casa mal-assombrada em um parque de diversões, ela seria capaz de assustar alguns turistas até a morte sem qualquer maquiagem adicional.

A irmã peru ignorou o irmão como se ele fosse um estranho na estrada e piscou os olhos grandes para An Jie. Eles davam uma estranha sensação de peso por causa do rímel e da sombra. Sua atitude original de bater a porta desapareceu imediatamente quando ela falou com um sotaque cantonês ruim, sua voz doentiamente doce: “Uau, você é aquele lindo gege [4] que acabou de ser transferido! Eu sou sua caloura da mesma escola, hehe! Que coincidência, você realmente se mudou diretamente para perto de mim; você não acha que isso é destino? Vamos nos conhecer, sim?”

An Jie sentiu arrepios subirem por sua pele. Antes que ele tivesse tempo de responder, a irmã peru continuou: “Na verdade, você não precisa se apresentar. Um gege tão bonito transferido; até mesmo alguém tão atrasado nas notícias quanto eu saberia, hehe. Gege, você se chama An Jie, certo? Eu sou Mo Jin, gege, mas você pode me chamar de Xiao Jin, está tudo bem…”

Mo Cong finalmente teve o suficiente e arrastou Mo Jin para sua unidade pelo braço, acenando para An Jie com dificuldade. “An Jie, você teve um longo dia, não o vou incomodar mais, descanse logo. Venha pra cá! Se você continuar se envergonhando, eu vou jogar você na Chechênia! Eles podem pensar que você é um terrorista e se livrar de você.”

Mo Jin agiu como se tivesse acabado de ver seu irmão. “Caramba, gege, você também está aqui… Você é tão malvado! Gege, você é tão sorrateiro, você veio aqui para conhecer An Jie-gege e nem me contou! Aww… Um Jie-gege, não esqueça de vir jogar com a gente, ok…”

Com um estrondo, Mo Cong fechou a porta à sua frente. O mundo ficou quieto mais uma vez. An Jie de repente perdeu toda a esperança em sua futura vida escolar de ‘anos de juventude’.

Ele balançou a cabeça, nem mesmo capaz de forçar um sorriso. Não admira que o velho verme de livros tenha dito que era um fracasso como pai. Houve uma vibração repentina em seu bolso. Ele fechou a porta e apertou o botão de atender. “Zui She?”

O número era novo e, agora, o único em sua lista de contatos.

“Como você está? Estabelecido?”

“Sim, basicamente.” An Jie se jogou no sofá e soltou um suspiro. “Sinto que meus ossos estão quebrando. Isso é bom o suficiente, vou me contentar por enquanto.”

Uma risada leve pareceu vir do outro lado. “Você viu os filhos do seu salvador?”

An Jie fez uma pausa. “Eu os vi.”

“Como foi?”

“…Terrível.”

Zui She riu alto. “Uma lacuna geracional! Você sabe o que é uma lacuna geracional, An Yin Hu? Mesmo se você se cobrir com uma camada de tinta fresca, isso não esconderá o fato de que seu interior está todo mofado.”

“…Por quê você ligou? Só para rir de mim?”

A risada de Zui She baixou de repente. Depois de um longo tempo, uma frase hesitante emergiu do outro lado. “Yin Hu, Shui Shi [5] está em Pequim…”

Os dedos de An Jie se apertaram quando ele deu um leve ‘hmm’. “Ouvi. O que dizer disso? Devo lhe fazer uma oferenda?”

“Não foi isso que eu quis dizer…” Zui She hesitou. “Você não contou a Shui Shi quando foi embora. Ele foi o mais desesperado ao procurar você, seus olhos até ficaram vermelhos. Eu sei que ele prejudicou você naquela época, mas…”

“Sabe e você ainda está aqui dançando nos meus pontos doloridos? Você está pedindo para ser espancado?” An Jie interrompeu.

“Você…”

“Eu sei o que fazer.” A expressão de An Jie escureceu. “Zui She, se somos irmãos de verdade, não me traia. Deixe-me dizer isso novamente. Essas pessoas, eu, não, quero, ver, qualquer um deles.”

“Yin Hu…”

“Tudo bem, pare de contribuir para a telefônica da China. Vejo você na próxima vez.” An Jie desligou o telefone sem esperar resposta. O corpo esguio do jovem afundou no sofá, o cabelo caindo na frente de sua testa, lançando uma poça de sombra ao redor de seus olhos.

An Yin Hu agora se tornou completamente An Jie. Então, essas coisas do passado… deixe-as se ferrarem.

❛ ━━━━━━･❪ ❁ ❫ ･━━━━━━ ❜

O autor tem algo a dizer: 

O protagonista masculino está finalmente aqui, mas sua personalidade ainda não foi determinada. 

❛ ━━━━━━･❪ ❁ ❫ ･━━━━━━ ❜

NOTAS:

1- Basicamente dizendo que ele mora sozinho.

2- Um ocidental. 

3- Amigável, não familiar. Uma peculiaridade da língua chinesa: referir-se a amigos próximos como família.

4- Gege, que significa irmão mais velho, mas ainda mais fofo por estar sob um sotaque cantonês. Tem uma entonação ligeiramente diferente, mas exatamente a mesma grafia do gege normal.

5- Sleeping Lion, ou Leão Adormecido, semelhante aos outros codinomes.