Capítulo 6: Um rasgo no tempo
Havia muitas coisas inimagináveis no mundo; A cidade enterrada de Pompeia em Roma, o Reino de Loulan do deserto de Lop, a invisível e intangível civilização maia que quase se tornou uma lenda… totalmente intacta e verdadeira, o choque, como se o próprio tempo e o espaço estivessem em caos, era indescritível.
Além disso, An Jie já havia experimentado esse choque uma vez antes.
Mo Yannan estava confuso com a areia movediça, então Li San’er e Shen Jiancheng foram cuidar dele. An Jie ficou ao lado de Lao Ma em silêncio e simplesmente olhou para a cidade.
Havia pavilhões e terraços e se não fosse a falta de água no rio, teria quase metade da beleza do sul de Qinhuai [1].
Havia colunas esculpidas e alvenaria de jade, tudo parecendo incrivelmente próspero. Até as plantas murchas nas laterais pareciam prometer uma segunda renovação caso fossem sopradas por uma brisa de primavera.
“Você disse que esta era a cidade de Tianjin?” Lao Ma perguntou suavemente. Os dois não estavam muito à frente de todos os outros e ele não parecia se importar mais com a misteriosa identidade de An Jie. “A cidade de Tianjin que você viu era assim?”
An Jie olhou ao redor. “A que eu vi estava viva, com montanhas, rios, homens, flores da primavera e uma lua do outono. O que isto é, é uma cidade morta – uma casca do que era, como aqueles monstros com cara de homem lá fora; não importa o quão lindos seus rostos fossem, eles eram apenas pele pintada em cima de uma morte dolorosa, sem uma única coisa quente neles.”
Lao Ma inclinou a cabeça e olhou para ele, de alguma forma um pouco apologético. “Vi de longe que você e o professor Mo estavam cercados. Eu ia voltar para ajudar vocês, mas a areia movediça me trouxe aqui antes que eu pudesse fazer qualquer coisa…”
An Jie sorriu com indiferença. “Isso não é problema.”
Lao Ma franziu os lábios e engoliu o que queria dizer, trocando por um tapinha no ombro de An Jie. “Bom homem.”
An Jie balançou a cabeça e não respondeu enquanto olhava atentamente para esta tumba labiríntica.
Ao lado dele, Mo Yannan havia se recuperado e estava olhando, estupefato e atordoado, para a cidade com que eles tinham tropeçado tão facilmente. Li San’er adicionou combustível ao fogo. “Você tem que admitir que o mundo muda rápido; um momento atrás estávamos na Caverna da Teia de Seda, e agora estamos em Womanland [2] – é realmente ótimo aqui… Agora, se apenas um pouco de música começasse a tocar e duas belezas aparecessem…”
“San’er,” Shen Jiancheng olhou. Li San’er riu sem jeito e parou de falar. Shen Jiancheng olhou para Mo Yannan, ainda congelado em um lugar. “Professor, o que você acha?”
As sobrancelhas de Mo Yannan franziram quando ele se levantou, tropeçando. Ele tirou os óculos e os limpou vigorosamente com um canto da roupa, a boca ligeiramente aberta e os olhos sem piscar, como se estivesse tentando imprimir em sua mente tudo o que podia ver.
“De jeito nenhum, de jeito nenhum, de jeito nenhum!” Ele mesmo disse isso três vezes. Ele balançou a cabeça e murmurou sonhadoramente: “De jeito nenhum, isso é muito… incrível.”
Esse nerd perderia a cabeça toda vez que encontrasse algo de sua área de especialização, sem deixar vestígios de sua natureza covarde. Ele caminhou descuidadamente pela cidade misteriosa e antiga, olhando atentamente para tudo que encontrava, murmurando elogios e perguntas, parecendo tão possuído que seu cérebro podia muito bem ter sido comido por aqueles insetos de lantejoulas.
O resto do grupo teve que o seguir. An Jie e Lao Ma ficaram nos fundos, um guardando a retaguarda e o outro apreciando a paisagem. Não sendo especialista, Lao Ma não conseguia ver nada de interessante dentro da cidade, apenas que era extremamente bonita e atraente, embora naquela beleza houvesse algo que o incomodava.
A intuição do velho mercador era incrivelmente precisa e já o havia salvado muitas vezes antes.
An Jie tinha estado em muitos lugares antes e podia mais ou menos sentir algo errado também, como se houvesse uma incongruência dentro da cidade que ele não conseguia identificar. Era diferente das outras cidades antigas que ele havia visitado, com uma pitada de… dissonância entre os prédios. Ele não se arrependia de ter empurrado o velho nerd para longe mais cedo, e estava até um pouco ansioso por sua explicação sempre que ele saía de seu estupor.
Uma cidade antiga, sem registro na história… como um viajante que perdeu a direção no tempo e no espaço, aparecendo de repente, e então talvez um dia, desaparecendo de repente.
Pensando assim, era quase como se apenas um olhar valesse tudo.
“Cidade de Tianjin: uma cidade demoníaca que vai devorar a alma das pessoas,” An Jie murmurou baixinho, como se estivesse tentando avisar alguém de algo. Ao ouvir isso, Lao Ma respondeu em voz baixa: “Não sei o que essa equipe de arqueologia está tentando desenterrar, mas este lugar não parece certo. Devemos sair em breve.”
“O que não está certo?”
“Há-” Lao Ma hesitou, então disse as palavras em seu coração. “Uma aura fantasmagórica.”
“É assustador – tem tudo e tudo parece normal, exceto faltarem pessoas”, continuou An Jie. “É uma cidade perfeitamente mantida, mas por que não há… criaturas vivas?”
Ele não disse ‘humanos’, mas sim ‘criaturas vivas’. Lao Ma não pôde deixar de estremecer, um lampejo de preocupação cruzando seu rosto enrugado enquanto olhava para os frenéticos Mo Yannan e Shen Jiancheng na frente dele, e Li San’er que estava constantemente escrevendo algo em um caderno.
À medida que se aventuravam mais fundo na cidade, a sensação de desconforto crescia nele, e nem a expressão de An Jie era mais tão relaxada. Ele reabasteceu os braços de Li San’er, uma metralhadora leve RPK-74 pendurada em seus ombros enquanto carregava silenciosamente uma Desert Eagle em sua mão.
Pode ter sido apenas seus nervos, mas o bracelete que foi colocado tão aleatoriamente nele por aquele velho nerd estava um pouco quente, como se estivesse ressoando com algo dentro da cidade. An Jie o queria tirar, mas por algum motivo, o bracelete que pendia frouxamente de seu pulso fino como osso de repente apertou e até mesmo o mover se tornou quase impossível.
“Isso é inacreditável demais.” Mo Yannan levantou os óculos e olhou para Shen Jiancheng. “Lao Shen, você também vê, certo?”
Shen Jiancheng suspirou. “Sim, esta é uma cidade como algo com múltiplas linhas de tempo sobrepostas – é normal que não haja registro disso. Um registro só tornaria mais estranho.”
“Olhe para esses edifícios – eles usam cascalho e madeira como seus principais materiais e a maioria deles assenta em fundações grossas de taipa. Eles usam uma base de coluna com a estrutura apoiada principalmente por postes de madeira, as paredes construídas com taipa também e o telhado coberto de feno”, explicou Mo Yannan suavemente a Li San’er, apontando para alguns prédios. “O que isso lembra a você?”
“Yinxu [3] ” Li San’er estava animado por algum motivo. “Eu lembro; a arquitetura da Dinastia Shang era assim, mas aqueles pavilhões ali definitivamente não são de lá!”
“Essas coisas não existiam até a Dinastia Han”, disse Shen Jiancheng. “Além disso, Yinxu está em Anyang, então não deve ter o mesmo estilo arquitetônico de Jiangnan [4]. Ter essas coisas juntas em um só lugar; você poderia chamar de pouco ortodoxo, mas por algum motivo, é bastante harmonioso.”
“Não apenas isso.” Mo Yannan acenou com as mãos. “Você notou a estrutura do centro desta cidade? Durante nossa caminhada, dei uma olhada no palácio e nos prédios com aparência de templo e notei que eles eram semelhantes ao estilo da Dinastia Zhou de ‘ancestrais à esquerda, alteres à direita, um tribunal à frente e um mercado atrás’, e lá havia uma série de ideias do Yi Jing [5] escondidas pelas ruas e escadas.”
Li San’er coçou a cabeça com uma caneta. “Professor, professor, estou um pouco confuso. A julgar pelo que você disse, por que parece que esta cidade foi construída por alienígenas depois de passar por toda a história da China?”
Mo Yannan murmurou: “Sim, é realmente muito estranho, como pode existir um lugar assim?”
“Eu ouvi…” An Jie de repente disse vagarosamente, sorrindo um pouco ao ver os olhos de todos se voltarem para ele, “Eu ouvi falar de uma teoria física de que existem muitas dimensões paralelas em nosso mundo. Poderia ser uma fenda no tempo de uma dessas dimensões paralelas, vazando esta cidade para nós?”
Dizendo isso, ele sorriu e acenou com as mãos. “Só estou dizendo alguma bobagem amadora, por favor, tratem isso como uma piada.”
Mo Yannan hesitou, então assentiu com seriedade. “Não é um absurdo completo, mas ainda precisamos ver se há algum texto sobrevivente.”
“Onde?” perguntou Li San.
“Obviamente, naquele prédio parecido com um palácio no centro.” An Jie deu um tapinha na nuca de Li San’er e seguiu Mo Yannan, aproximando-se um pouco mais dele como um bom aluno pedindo humildemente para ser ensinado, mas a mão em sua arma ainda estava exatamente onde estava antes.
Em frente ao salão principal do palácio havia oitenta e um degraus que pareciam ser feitos de jade branco. Era um número para o supremo, mas quanto ao que o material realmente era, Shen Jiancheng e Mo Yannan não conseguiram chegar a uma conclusão, apesar de se agacharem e discutirem furiosamente. An Jie olhou para os pilares do salão com nove dragões enrolados em volta deles e achou o caos. Era um verdadeiro caos!
Era como a imaginação de um péssimo estudante de artes; um mundo inventado com uma mistura caótica de dinastias, cheio de materiais desconhecidos e edifícios que não tinham relação entre si.
“As lendas dizem que o filho do céu [6] é feito de nove dragões; se não estou errado, este deveria ser o palácio.” Shen Jiancheng suspirou e tocou levemente o pilar de pedra através de suas luvas. O salão estava vazio. Talvez tenha havido uma vez um grupo de pessoas que se ajoelharam aqui e gritaram louvores enquanto o que estava sentado no alto do trono do dragão lançava seu olhar solitário sobre seus rios e montanhas…
“Mas…” An Jie protestou baixinho, antes de decidir que não era um profissional e engolir suas palavras de volta. Mo Yannan olhou para ele com um sorriso como se estivesse olhando para um aluno, perguntando: ‘Será que Xiao An tem alguma pergunta?’.
“Isto não é o deserto?” An Jie ergueu as sobrancelhas. “Eu pensei que iria ver a cultura de uma nação tribal… Essas coisas definitivamente vieram do meio da China – ‘aqueles que se sentam na carruagem de ouro [7] sentam no mundo inteiro’ – então por que elas existem no meio de um deserto? E como é que este território fosse constituído apenas por uma única cidade? Onde está o ‘mundo’ deste imperador? Ou o dono deste palácio era apenas um sonhador ambicioso? Ele sonhou com seu poder elevado e assim construiu este palácio exagerado?”
Mo Yannan ficou quieto por um tempo antes de também estender a mão para tocar o pilar. “Isso é impossível. De jeito nenhum isso foi alguma glória imaginada de alguma nação tribal… esse artesanato, essa arquitetura, esse escopo é tão bom quanto a capital de qualquer dinastia antiga. Mas…”
A pergunta de An Jie estava certa: não fazia o menor sentido.
Não, devia ter sido naquele momento em que pisaram nesta cidade antiga, todo o sentido foi perdido; era como ‘ uma outra dimensão. An Jie estava prestes a perguntar mais alguma coisa quando, de repente, uma risada leve penetrou em seus ouvidos; uma gargalhada prateada, parecida com um sino, de garotinha. Arrepios rapidamente subiram por sua pele – nesta cidade, não deveria haver uma mulher viva que pudesse rir.
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O autor tem algo a dizer:
Ok, vou postar até aqui por enquanto, até amanhã ^^
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NOTAS:
1 – Um famoso ponto turístico conhecido pelo rio que o atravessa, o rio Qinhuai. O rio Qinhuai é um afluente do Yangtze, o sul aqui se referindo ao sul dele. Qinhuai é um ponto turístico famoso, e o rio corria pela capital da China, por isso é ladeado por um grande número de edifícios chineses antigos.
2 – Referências a lugares em ‘Journey to the West‘ (Jornada para o Oeste), o primeiro conhecido por seus demônios aranhas e o segundo conhecido por ter apenas mulheres como cidadãs.
3 – Yinxu é o local de uma das antigas e importantes capitais históricas da China. Aqui está dizendo que o estilo arquitetônico desses edifícios específicos é semelhante ao estilo daqueles em Yinxu.
4 – Anyang está situada ao norte de Hebei, enquanto Jiangnan é um termo para tudo ao sul do rio Yangtze.
5 – O Yi Jing é um antigo texto chinês sobre adivinhação. Pode ser aplicado à arquitetura semelhante ao Feng Shui, pois o uso de certos materiais melhorará a sorte, etc.
6 – Filho de deus/céu. Os imperadores chineses acreditavam que eram filhos de deus e, portanto, tinham o direito celestial de governar. Tenha em mente que este não é o Deus cristão, nem o céu cristão, daí o uso de letras minúsculas.
7- 金銮 na verdade se referem aos pássaros dourados que decoram a carruagem do imperador.
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Capítulo 6: Um rasgo no tempo
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