Capítulo 8: Contas Verdes

Mo Yannan ficou enraizado no chão. An Jie amaldiçoou silenciosamente o velho verme de livros que não conseguia nem comer merda enquanto estava quente; mas ainda assim, correndo, algo nele o fez o puxar. Grandes pedaços de rocha e cobras coloridas caíram do palácio em colapso, separando os quatro. An Jie não se atreveu a parar e arrastou Mo Yannan, que parecia ter esquecido como se mover, em direção à porta do palácio. 

Um pilar de pedra gigante desmoronou com um rugido e se esmagou no chão. Mo Yannan tropeçou em alguma coisa e trouxe An Jie com ele enquanto tropeçava. Ele olhou para baixo: a coisa que o fez tropeçar foi o cadáver de Lao Ma! Em um instante, arrepios cobriram sua pele; o cadáver não estava atrás deles? Quando chegou aqui? 

Uma pedra caiu do topo do palácio, mirando diretamente na cabeça de Mo Yannan. Ele queria se esquivar, mas era como se suas pernas estivessem amarradas. Finalmente chegou a hora dele, ele pensou, e fechou os olhos inflexivelmente – mas no suposto momento de dor, ele foi empurrado para o lado.

O velho professor arregalou os olhos quase inúteis: ele estava sendo protegido por An Jie, abraçado entre seus braços, os ombros do homem rasgados pela pedra. Poeira e sangue deslizavam juntos e era impossível dizer a diferença entre a carne boa e as feridas naqueles ombros expostos.

Foi só quando o tremor sob seus pés parou temporariamente que An Jie desabou em cima dele, seu belo rosto pálido e pingando de suor frio. Ele cerrava os dentes com força, mas pequenos grunhidos de dor ainda saíam de sua boca.

“An-An Jie!” Mo Yannan lutou para o segurar e com uma coragem que veio do nada, chutou o cadáver bizarro e obstrutivo para o lado. Ele ajudou An Jie a se sentar ao lado de um pilar caído. “Onde você está ferido? Você está bem?”

An Jie cerrou os dentes e balançou a cabeça em silêncio. Ele sabia que, se abrisse a boca, explodiria em palavrões. Ele não sabia o que havia de errado com sua cabeça hoje, mas quando viu a pedra cair, a primeira coisa que passou pela sua mente foi o velho verme de livros cuidando dele durante a viagem; a maneira como ele entregou a garrafa de água que ele mesmo não podia beber, a maneira como ele enfatizou que o deserto era um lugar perigoso, e que ele certamente o traria, a maneira como ele tão seriamente pediu que ele o deixasse para trás… Quase inconscientemente, ele pulou em socorro do velho. Deve ter sido o pior negócio da história.

An Jie respirou fundo algumas vezes. “Lao Mo, você ainda se lembra do que estava escrito na parede?”

Mo Yannan piscou e assentiu.

An Jie arrancou uma tira de pano com os dentes, mergulhou-a grosseiramente em água salgada e tratou do ferimento. Depois disso, ele soltou um longo suspiro. “Você viu aquela ‘a beleza da geração em sonhos cai de uma torre em ruínas’? No momento em que saímos, este lugar desabou. Você não acha que está tentando nos dizer alguma coisa?”

Mo Yannan franziu a testa. Agora que eles estavam neste tópico, ele parecia ter recuperado a compostura. “Foi escrito no ‘Taiping Guangji [1]’ que sob a Montanha Bobai estava o poço de Luzhu. Havia uma garota de beleza excepcional de lá na seita Liang de Anding [2] cujas sobrancelhas eram verdes em frescor, longas quando relaxadas e redondas como uma conta quando franzidas [3], daí lhe dando o nome de ‘Luzhu’. Ela foi comprada por Shi Cong do país Jin, e de acordo com o livro de Jin, quando o Senhor Zhao, Sima Lun, se rebelou contra a dinastia, seu assessor Sun Xiu foi rejeitado depois de pedir Lu Zhu a Shi Cong. Sun Xiu ficou irritado e enviou ordens para capturar Shi Cong, e para pagar pela vida de Shi Cong, Lu Zhu saltou de uma torre alta. É por isso que a última linha de ‘Contas Verdes’ de Qiao Zhizhi é ‘Cem anos de despedidas e ódio no alto, a beleza de uma geração acabou para você’.”

“Já ouvi falar dessa linha.” Como estava diante de um velho professor, An Jie não se importou em revelar sua falta de conhecimento. Ele pensou um pouco e disse: “‘A beleza de uma geração em sonhos cai de uma torre em ruínas, cem anos de ódio não deixarão vestígios no tempo’. Eles estão todos insinuando essa linha final?”

“Estou bastante surpreso.” Mo Yannan abraçou os joelhos e se sentou ao seu lado, sua fala lenta, como se cada palavra tivesse que ser considerada com cuidado. “Mesmo que Shi Cong fosse conhecido por ser extremamente rico e ele tivesse uma história assim com Lu Zhu, nenhum deles poderia ser considerado uma figura importante na história, Lu Zhu o menos importante de todos. Então, por que esses dois personagens secundários eram o foco principal daquela… ah… música do monstro? E esse poema também.”

“Posso entender a lua de Qinghuai e a neve de Balin; eles provavelmente estão falando sobre o estranho estilo arquitetônico daqui; mas o que se seguiu foi mais como um poema de amor. Além de insinuar a história de Lu Zhu, não consigo ver nada de especial nela.”

“Talvez a resposta esteja na ‘conta verde'”, disse An Jie de repente, e como se lembrasse de algo, franziu a testa e mostrou o pulso para Mo Yannan. Por algum tempo, a metade branca do taiji de jade com a pérola negra incrustada brilhou fracamente, a luz refletindo claramente através das contas verdes de tamanhos diferentes ao seu redor. “Lao Mo, onde você conseguiu essa coisa?”

As contas agora estavam mordendo a carne de An Jie, e até mesmo Mo Yannan podia dizer que era um ajuste extremamente apertado, como se as contas estivessem tentando se enterrar nos ossos de An Jie. Ele ficou atordoado. “Isso… como isso aconteceu? Realmente não era para ser nada estranho – você foi na pequena cidade próxima ao deserto? Era uma espécie de área turística com alguns pequenos mercados que vendiam algumas lembranças artesanais. Eu… comprei a pulseira de lá – era apenas cerca de cem yuans; o material era muito bom então comprei…”

“Você comprou mais alguma coisa?”

“Não, estávamos com uma agenda apertada e eu só tinha meio dia para passear pela cidade. Quando vi a pulseira, por algum motivo, senti que era incrivelmente bonita e que tinha que a comprar. Além disso, o preço era razoável…”

“Você comprou uma para duas filhas?”

“Não.” Mo Yannan estendeu a mão para tocar o pedaço de jade branco entre as contas e franziu a testa. “Achei que viria em par. Taiji é dividido em yin e yang, os dois não podem ser separados. Eu pensei que os itens que eles vendiam nas áreas turísticas eram basicamente os mesmos, então se eu não conseguisse a encontrar nesta barraca, então devia ser na próxima que eu encontraria algo para combinar. Quem saberia que eu nunca conseguiria encontrar sua outra metade.”

An Jie segurou o queixo em silêncio.

Mo Yannan pensou por um momento. “Você; o que você está tentando dizer é que esta pulseira está relacionada a esta cidade? Não é muita coincidência?”

“É muita coincidência”, An Jie estreitou os olhos e respondeu sem realmente responder. “Contas verdes, contas verdes…”

Mo Yannan olhou em volta e viu que eles estavam cercados por pedras e pilares caídos. Ele soltou um suspiro cansado e esticou as pernas, apenas para tocar o cadáver de Lao Ma. Agora, ele parecia finalmente sentir medo; ele estremeceu e fugiu para os lados, tentando ganhar alguma distância do cadáver.

“Professor Mo, não sou dessa área de atuação e tem muita coisa que não entendo. Posso lhe fazer uma pergunta?”

“Hum?”

“A que época você acha que esta cidade pertence? Quem construiu?”

Essa pergunta deixou Mo Yannan perplexo. Sua ética profissional lhe dizia para dizer o que sabia e não discutir o que não sabia. Ele hesitou por um tempo, depois tirou os óculos e os enxugou com cuidado. “Para ser honesto, não tenho certeza.”

Ele apontou para o corredor meio desmoronado que prendia os dois. “Há muitas coisas aqui que têm as características arquitetônicas das dinastias Ming e Qing, mas as ruas foram desenhadas com base na capital da dinastia Zhou. Como Zhixiao disse antes, algumas coisas no palácio externo são obviamente da Dinastia Yin e Shang, mas…” Ele balançou a cabeça e engoliu em seco. “E os pavilhões e terraços têm as características dos jardins de Suzhou. É verdadeiramente a lua de Qinghuai brilhando na neve de Balin. É estranho, não importa como você pense sobre isso.”

“Tempo e espaço”, resumiu An Jie. 

“Tanto o tempo quanto o espaço estão incorretos”, disse Mo Yannan. “Se não fosse por este ser o grande deserto, eu teria pensado que isso tinha sido construído por humanos modernos com referência a estilos de arquitetura antigos.”

Dizendo isso, o velho professor esfregou a testa e suspirou. “Talvez sejam alienígenas, ou como você disse, algo de um universo paralelo… Não é que eu não acredite na ciência, mas há muitas coisas que nem a ciência consegue explicar. Se eu não visse por mim mesmo, eu… eu nunca teria acreditado que poderia haver uma cobra com cabeça humana que pudesse recitar poemas, ou bandos de monstros parecidos com aranhas no deserto.”

An Jie ficou em silêncio.

Mo Yannan também parou de falar, silenciosamente analisando seus pensamentos. Ele sabia que não tinha físico e que não podia fazer nada além de ser um fardo. Sua única vantagem era que ele era um pouco culto e conhecedor, e que ele podia falar sobre coisas que havia lido sem precisar de qualquer documentação; poderia se revelar útil neste lugar caótico.

Um grito ensurdecedor interrompeu o raro momento de tranquilidade. As pupilas de Mo Yannan se contraíram bruscamente quando ele agarrou o braço de An Jie. “É- é Zhixiao! Li Zhixiao!”

An Jie identificou cuidadosamente a fonte do som e se levantou com as costas curvadas, empurrando uma laje de pedra gigante acima de suas cabeças. “Lao Mo, dê uma mão!”

Mo Yannan esfregou as mãos e usou toda a força de seu corpo para ajudar An Jie a empurrar a laje. Suas palmas foram cortadas e a dor se acendeu como uma chama. Depois de um longo tempo, a laje afrouxou um pouco e An Jie disse em voz baixa: “Saia do caminho!”

Assim que Mo Yannan se afastou, a laje de pedra foi empurrada com um estrondo. Pedras soltas caíram ao redor deles enquanto grandes quantidades de ar entravam. Mo Yannan notou que havia um leve cheiro de sangue no ar.

An Jie se ergueu, pendurou a metralhadora leve nas costas e estendeu o braço não ferido. “Apresse-se, eu vou você tirar daqui.”

Mo Yannan era um tonto em todas as coisas relacionadas a esportes. Se não fosse por seu corpo esquelético, An Jie teria pensado que ele era um urso tentando subir em uma árvore e murmurou silenciosamente que até um inseto escalaria uma parede com mais agilidade. Levou toda a sua força para superar a gravidade e puxar o velho verme de livros para cima.

Mo Yannan viu que ele estava suando pela dor na ferida e pelo esforço e quis se desculpar de vergonha.

An Jie não lhe deu a chance. Ele jogou a arma pendurada em seu peito para ele e acenou: “Siga-me.”

Mo Yannan segurou a ‘Desert Eagle’ com cuidado como uma batata quente para o caso de ela explodir acidentalmente e tropeçar atrás de An Jie.

Os dois procuraram por Li San’er entre os escombros. O coração de Mo Yannan estava cheio de ansiedade, mas ele tinha medo de atrair outras coisas gritando e só podia seguir An Jie em sua busca cuidadosa e completa. Depois de um tempo, An Jie se ajoelhou em um canto, sua expressão séria.

“Lao Mo…”

Mo Yannan sentiu que a voz de An Jie estava um pouco sombria e olhou por cima do ombro. Aquele olhar quase o fez chorar.

Li San’er se encostava a uma pilha de cascalho, o sangue encharcando seu corpo inteiro. Seu pescoço foi aberto por pedras afiadas, exatamente onde estava a artéria.

An Jie silenciosamente balançou a cabeça

Ao longo de toda a jornada, esse jovem barulhento foi mais animado que todos, mais enérgico que todos e mais bondoso que todos… Ele era alguém que podia fazer piadas na cara de monstros, e ainda assim era uma pessoa assim que agora estava desmoronada neste lugar misterioso como um trapo rasgado, a metade inferior de seu corpo esmagada sob uma pedra.

“Zhixiao… Zhixiao! Zhixiao!” Mo Yannan avançou, sua voz falhando quando ele o sacudiu violentamente. “Zhixiao! Você não pode! Você não pode!”

Mas não havia nada neste mundo que não pudesse acontecer. Vida, morte, doença, morte; isso era o destino.

Li San’er parecia estar lutando com suas últimas forças, abrindo os olhos o máximo que podia, como se estivesse tentando dar uma boa olhada nesse velho professor choroso. Ele não conseguia mais falar, mas ainda tentou abrir os lábios. Mo Yannan o parou. “Você, o que você quer dizer?”

Com força do nada, Li San’er agarrou as roupas de Mo Yannan.

An Jie o viu dizer: “Tenha cuidado… tenha cuidado… com… cuidado…”

Então seu pescoço rolou para um lado e ele ficou completamente imóvel. Ele nunca conseguiu dizer com o que ter cuidado e mesmo na morte, ele ainda não estava em paz.

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O autor tem algo a dizer:

Dê um tapinha nos que ficaram com medo; não somos sua história estereotipada de reencarnação, então nossas mortes também precisam ser especiais ^^

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NOTAS:

1 – O ‘Taiping Guangji’, às vezes traduzido como ‘Os Extensos Registros da Era Taiping’, era uma coleção de histórias compiladas no início da dinastia Song sob a direção imperial de Li Fang.

2 – A seita Liang de Anding era uma família que controlava as áreas próximas à atual Ningxia durante a Dinastia Song.

3 – Uma antiga descrição geral de beleza.