Capítulo 32

Mohammad chegou ao último andar, e nele havia apenas um apartamento que pertencia aos seus avós.

 

Do lado de fora estavam dois seguranças que proibiriam a entrada de suspeitos.

 

A porta é feita de madeira escura, num modelo antigo preservado pela envernização.

 

A chave deu acesso, sendo aberta com dois giros, tocando na maçaneta de ferro, foi recepcionado pelo escuro, poucos feixes de luz que teimosamente insistiam em entrar, davam uma claridade mínima.

 

O cheiro é igual a coisas velhas, os anos sem contato com o exterior fizeram-no tão desagradável quanto morfo.

 

Mohammad mal entrou e já queria sair, quer concluir a tarefa o mais rápido possível.

 

Acionando o interruptor, as lâmpadas amareladas iluminam tudo, os móveis são antigos e bregas, como moda envelhecida igual a leite.

 

E logo à frente, a cozinha americana, com uma mesa redonda de madeira com três cadeiras.

 

A TV de tubo dos anos 90, com o rádio num enorme móvel de PVC, é decorada com muitas fotos e objetos de porcelana e prata.

 

Viu com mais detalhe, neles estava uma menina muito bonita que sorria docemente, desconhecendo essa que o gerou, e nunca presenciou uma expressão positiva como essa imagem.

 

Havia outras também, com seus avós.

 

Aquele momento feliz, eternizado no papel, não incomodava, na verdade, queria jogar os retratos no chão para queimar, como sempre quis fazer com ela.

 

Como um pecador condenado ao inferno.

 

Já o resto não era grande, seguiu um corredor estreito onde ficava o banheiro principal, e depois, os quartos da casa.

 

Victória relatou que os álbuns estavam no quarto dos pais, no armário de roupa.

 

O repouso dos mortos ficava de frente ao da filha, e não foi difícil achar, já que o nome dela estava escrito na outra porta, indicando que ali não era a entrada.

 

As portas de acesso são idênticas às da entrada da casa e, destrancada, com apenas um movimento leve, abriram, dando acesso ao íntimo.

 

Diferente da sala, onde havia vários utensílios decorativos, o quarto é vazio, com apenas uma cama de casal e uma escrivaninha antiga servindo de apoio para um abajur de coloração creme feito de porcelana.

 

E ao lado, o armário grande puramente detalhado.

 

O cheiro é pior, semelhante às flores de um funeral.

 

O ambiente tem uma janela pequena, contudo fechada, e a luz que passa pelos vidros, iluminando o interior, revela várias partículas de poeira que dançam sob o raio de luz.

 

Automaticamente, sua mão foi para o nariz, bloqueando qualquer poeira solta que entrasse em sua cavidade nasal.

 

“Meus olhos também!”

 

Quando ligou a luz, tudo se tornou mais assustador, como se alguma entidade vivesse aqui.

 

Não querendo demorar, pela sujeira e pelo nervosismo de entrar em contato com algum patógeno, foi diretamente ao armário que não é aberto desde 98.

 

No primeiro compartimento, havia várias roupas femininas antigas com o tecido de ótima qualidade e cortes nobres. A silhueta mostrava que a usuária era magra e alta.

 

No cabideiro, não tinha shorts e saias, apenas calças jeans, vestidos, camisas e blusas adaptadas para todas as estações.

 

E embaixo, outros como porta-joias cravejados com cristais verdes e brancos imitando as pedras finas.

 

O modelo é muito bonito e dá pra perceber a velhice.

 

Tirando isso, não havia mais nada; já no outro, não havia roupas, e sim várias caixas organizadoras que guardavam documentos importantes e papéis relacionados à antiga empresa imobiliária.

 

Ao lado, álbuns de fotos empilhados um em cima do outro com cores monocromáticas, de arquitetura dos anos cinquenta e sessenta.

 

Mohammad não tocaria, estavam impregnados de pó, deixando a tarefa para seu secretário, que separaria e depois enviaria para a França.

 

Não entendeu a jogada, ao enviar para um lugar que mexeria completamente com sua fobia, furioso pelo simples fato de ter vindo à toa para algo que nem precisava de sua presença pessoal.

 

“Essa porra de intuição acabou me prejudicando.”

 

Não sabia quanto ficou nesse cubículo sujo, logo saiu imediatamente cruzando a sala com elegância até abrir a porta onde seus guardas o esperavam.

 

Do lado de fora, tirou a mão que bloqueava as narinas e nem se importou em trancar.

 

Desceu as escadas com pisadas fortes, que ressoavam por toda parte, procurando de certa forma o ar puro.

 

Quando sua figura surgiu, todos estavam posicionados.

 

Mohammad, que olhou em seu relógio, pensou que ficou menos de cinco minutos, entretanto, já eram 9h10.

 

Como se o tempo dentro não condiz com a realidade fora dela.

 

Queria fumar um cigarro urgentemente, para diluir o asco sentido por andar em um lugar tão imundo como aquele apartamento.

 

Estendeu a mão para um dos guardas, que entregou um cigarro do maço recém-aberto. Assim que colocou na boca, o mesmo acendeu com seu isqueiro, que expelia as chamas iguais a um maçarico.

 

A fumaça rapidamente vai ao alto e, gradualmente, quando a nicotina entrava em sua corrente sanguínea, indo diretamente para o cérebro, esqueceu lentamente o impulso de querer socar alguém.

 

No entanto, assim que chegasse em sua suíte, tomaria um longo banho para remover qualquer coisa que tenha grudado em sua pele.

 

Pegou o celular e discou na chamada automática.

 

[Presidente.]

 

“Venha para o antigo apartamento de Victória e separe todos os itens que listei, prepare todos os procedimentos para o envio na França.”

 

[Sim, presidente. O antigo apartamento da Srta. Bourbon já está à venda, com previsão de compra até a primeira semana de fevereiro. Deseja separar além do ordenado?]

 

“Não, e incinere todos os outros.”

 

[Sim, presidente.]

 

O acordo não era esse, queria todas as fotos e vendesse o espaço, mas as mobílias e documentos iriam para um enorme depósito comprado, para resguardar a memória de seus pais e não serem apagados.

 

Esse era o plano negociado.

 

Entretanto, a brincadeira para alfinetar e irritá-lo saiu pela culatra, visto que desconhece o péssimo humor dele para qualquer tipo de brincadeira.

 

Por conseguinte, como vingança por enviar a uma ratoeira imunda, resolveu queimar tudo que não foi selecionado.

 

Incluindo os documentos importantes de posse de vários terrenos pertencentes ao pai dela, devolvidos em 1998.

 

Depois da decisão sobre a devolução dessas terras que foram perdidas após declarar falência, as roupas da mãe, que são algo valioso para a mulher, iam pro saco.

 

Enquanto esperava o cigarro terminar, guardou o celular e esperou a sensação fluir de si para retornar ao hotel.

 

Como planejado, voltaria para casa no dia seguinte, na parte da tarde, e nunca mais por os pés nesse lugar.

 

“Que sensação prazerosa de sair desse inferno.”

 

Os homens ao seu redor, numa distância permitida, esperavam terminar seu monólogo.

 

Aproveitava o deleite do clima tropical, vendo a fumaça expelida de sua boca desaparecer a poucos centímetros, formando o cheiro característico ruim e danoso.

 

Fumar nessas ocasiões é relaxante por impedir de ter um surto.

 

Momentaneamente, supôs acabar com a vida dela, assim como fez com o pai, porém, seria extremamente desnecessário matar um pobre.

 

Victória não é rica e não possuía nada de valor ou qualquer herança na sua conta bancária, tudo foi dado pelo seu falecido pai no acordo para o gerar.

 

Com isso, a ideia sumiu como a fumaça do cigarro.

 

Jogando a guimba no chão e pisando com o tênis, todos estavam preparados para sair e voltar para o Belmopan, só que o inesperado aconteceu.

 

Na hora em que pisava, uma jovem de pele negra clara, cabelos escuros presos num coque alto malfeito, passou em frente à entrada do prédio, usando uma camisa larga preta com o logotipo de uma banda popular no início da década de 90.

 

Não importava, o caso é que nesse frame, os olhos vazios e sem vida dele miraram a face da jovem que passava naquele instante, por algum motivo não seguiu um caminho reto, virou o rosto e fitou bem nos olhos dourados.

 

Foi algo súbito, em instantes não estava mais ali e sim a poucos metros à frente da entrada do prédio, se distanciando mais com suas pernas curtas.

 

O conto de Perséfone e Hades surgiu de uma brincadeira da deusa Afrodite para irritar Deméter.

 

A princípio, Hades veio até o monte Olimpo para saber o que aconteceu depois da intensa batalha contra os gigantes.

 

Irado, porque a criação de Gaia saiu do Tártaro, abrindo uma enorme cratera no submundo, deixando criaturas medonhas sair e a luz solar entrar, o que não podia acontecer.

 

Inclusive, por descobrir que a mãe terra criava outro titã debaixo do seu nariz sem ter noção de nada.

 

Querendo satisfação do seu irmão.

 

Após a conversa, retornou para o submundo para consertar o estrago feito, mas antes passou pelas proximidades do monte Etna, em uma pradaria com enorme tapete de belas flores diversificadas.

 

Foi aí que a deusa iniciou seu plano, pedindo a Eros, deus da paixão, para atirar sua flecha no peito desse deus para que se apaixonasse perdidamente.

 

E, como não gostava da Deméter, pela superproteção com sua filha, fez questão de que ficasse rendido pela deusa que vivia naquele meio, colhendo flores.

 

Naquele ponto, a flecha foi lançada e a deusa da agricultura e vegetação foi avistada por ele, que se apaixonou imediatamente.

 

Uma fúria louca e obsessiva para tê-la incendiou-o de dentro para fora, fazendo-o cometer uma loucura.

 

O conto do rapto de Perséfone é apenas uma fantasia criada para desvendar o mistério das quatro estações.

 

De fato, é para ser uma mentira, mas não foi isso que aconteceu.

 

Eros, além de ser o deus da paixão, também é travesso e gostava de lançar suas flechas por puro entretenimento para causar o caos, era seu divertimento por ter tal poder.

 

Todavia, dessa vez, esse pequeno arteiro de asas aladas atirou em quem não devia.

 

Provavelmente, querendo descobrir qual seria a reação de seu alvo ao se apaixonar, prejudicando quem nada tinha a ver com sua curiosidade.

 

E quando a flecha atingiu, automaticamente, o objeto de desejo foi direcionado para a jovem de 31 anos que apenas queria seguir sua vida, buscando a melhora de tudo que lhe foi tirado.

 

Foi nesse momento que se tornou Perséfone e o belo homem de alma sanguinária, seu Hades.

 

E um impulso, novo e desconhecido, o conduziu a sair dali para segui-la; os seguranças ficaram confusos com a atitude estranha de seu chefe.

 

Semelhante aos sintomas de um hospedeiro parasitado pelo fungo cordyceps.