Capítulo 63

Percebendo a essência do que é de fato.

 

Essa mulher deve ser protegida de tudo, inclusive dela mesma.

 

Sam, que estava a poucos metros do epicentro, estava descrente dessa atitude.

 

“É feia pra caralho.”

 

Conheceu histórias tenebrosas por parte desse cara ‘gentil’.

 

E acabou prevendo o mau sinal, como se o destino tivesse mudado as peças para que ele sentisse todas as dores, de milhares que pisaram com seu pé forte.

 

Principalmente na parte dos Khalid, o Sr. Fadel não gostará nada de saber que casará novamente e terá herdeiros com uma mulher que nem sobrenome importante tem.

 

Será um pesadelo, essa garota sofrerá na mão desse velho ganancioso.

 

“Esqueci que tem aquela maquiavélica que esse velho chama de filha.”

 

“Você tem uma mão pesada igual à minha mãe, mas assim como ela, é bem delicado na hora de manusear. Sério, tô surpresa, não achei que fosse tão gentil com essa cara de entojado.”

 

“Caramba, sério?”

 

“Sim, já fez isso?”

 

Não precisava buscar longe, nunca aconteceu, o único momento que é delicado é quando estava com uma arma ou seu machado.

 

Fora isso, nunca, nem quando sua esposa se acidentou, deixou ser tratada por terceiros dessa área.

 

“Não, nunca fiz.”

 

“Poxa, talento desperdiçado, tem um grande dom para lidar com isso, melhor que alguns profissionais de saúde.”

 

“Te tratam mal, quando vai se consultar?”

 

“Na clínica não, lá são todos gentis. Mas no UPA… Sabe, entendo a importância e sou grata por essa ideia, contudo, todavia, entretanto… acredito ter pego alguém num mau dia.”

 

“E para onde vai quando acontecem acidentes assim?”

 

“Num hospital federal.”

 

“Hum.”

 

Por isso, queria saber mais, como cuidava da própria doença.

 

“Já fez exame esse ano?”

 

“Não… Não quero fazer.”

 

Mudou o semblante para mais sério, queria entender a razão.

 

Provavelmente, sua teoria de que não se cuidava estava certa.

 

“Por quê?”

 

“Não quero saber o resultado.”

 

“Quanto deu?”

 

“145….”

 

Estava no início, o número é pequeno, considerando quem tem há muito tempo.

 

Mas se continuar nesse ritmo, comendo desenfreadamente qualquer alimento de junk food, esse quadro inicial aumentará cada vez mais a ponto de usar insulina para toda a vida.

 

E o corpo está começando a dar relatos, a perda de peso já demonstra o grau de atenção.

 

E não podia deixar que isso acontecesse, não com ela.

 

“Quantas refeições faz por dia?”

 

“Três: café da manhã, almoço e lanche.”

 

“Não janta?”

 

“Essa é minha janta.”

 

“O que come durante essas refeições?”

 

Quando foi citando, sincero e sem medo do que faz com ela mesma, Mohammad viu que o paladar é igual ao de uma criança de cinco anos.

 

Achocolatado, farinhas com alto índice glicêmico, nada de frutas, legumes ou verduras.

 

Basicamente, deve carecer de nutrientes.

 

Fora que é extremamente sedentária.

 

E isso deve ter piorado depois do quadro depressivo, e como continua em recuperação, velhos hábitos adquiridos ao longo disso custam a morrer.

 

Porém, deve intervir antes que essa bomba relógio exploda e acabe num caixão, sendo enterrada.

 

“Pronto.”

 

O curativo feito com cuidado estava selado e impermeável, ideal para fazer o processo sem uma intervenção externa atrapalhando.

 

A jovem olha contente o curativo perfeito.

 

Mohammad observa a felicidade por algo simples e imaginou essa mesma face sem a expressão, em um caixão, rodeada de flores que não qualificam o que era em vida.

 

Sendo enterrada para debaixo do solo, e sua carne entrando em decomposição, consumida pelos animais que a própria natureza fez, para encerrar seu tempo útil.

 

Qualificando como objeto para servir de produto, para outros animais comerem e se reproduzirem.

 

Não é seu desejo, esse tipo de ‘frio’ rejeitava com todas as forças.

 

Desse modo, tinha que cuidar dela, por ser um perigo para si mesma.

 

“Estou preocupado com você.”

 

“Por quê? Estou bem.”

 

“Por que faz isso consigo mesmo? Qual é o motivo de não cuidar da sua saúde, por tudo que passou?”

 

“Estou feliz, depois de quatro anos, me sinto a pessoa mais feliz do mundo.”

 

“Essa felicidade desenfreada vai acabar te matando.”

 

“Tudo bem, pelo menos quero partir sabendo que estava no maior momento do que nunca tive na vida.”

 

A expressão faz o peito arder, todas as situações presenciadas davam uma sabedoria de cor, o que é o padrão da morte.

 

Não é essa alegria que estampava seus rostos, e sim, uma tristeza colossal beirando o desespero, pois o ato de morrer não é bom para nenhum ser vivo do planeta.

 

Por isso, as presas correm e lutam para sobreviver.

 

E essa fisionomia faz o oposto do que é natural, como se a morte fosse uma doce amiga que livrará de tudo que é ruim e assim poupará seu sofrimento.

 

[Quando percebi que ela morreria por uma doença que não tinha controle, o mundo que conhecia, o qual aprendi a conhecer, já não existia. Pois ela já não existiria mais. Alá não me permitiu salvar o meu grande amor.]

 

“Por que estou lembrando desse diário?”

 

Algo que seu pai não conseguiu remover, manteve escondido por esse garoto que lia memórias de um avô que jamais conheceu.

 

E compreendeu a razão de suas palavras, caso Bruna fosse, o seu mundo já não existiria mais.

 

Não é isso que deseja, quer dar outra nuance, a não tóxica, mas que dure.

 

E experimentar todos os doces momentos que não foram oferecidos.

 

A sua felicidade é vê-la viver, onde lá possam morrer juntos, como duas almas que se amaram e não suportaram a ida de um.

 

O que essa jovem estava fazendo é nada mais que o papel invertido, onde a presa se entregava de bom grado para ser devorada pelo predador.

 

Um suicídio assistido.

 

E isso é errado, não faz parte do ciclo e nem da cadeia alimentar.

 

Toda presa tem que lutar constantemente e se proteger de todas as maneiras para não sucumbir.

 

E, como tal, ajudará a usar as defesas certas para experimentar esse mundo como deve ser vivido e não desperdiçado.

 

“Gosta de saladas ou legumes?”

 

***

 

“Só um segundo.”

 

A vontade transcendeu a razão antes de aceitar a maleta de primeiros socorros.

 

Estava perto demais, o cheiro suave da pele era melhor que o perfume de maracujá.

 

Deixando-o inebriado.

 

A mãozinha, tão macia, foi direto em sua bochecha esquerda, logo ao lado que pertence ao coração, que bombava uma quantidade massiva de sangue.

 

E nisso, um aperto em sua bochecha magra.

 

“??”

 

Um ato corajoso para quem não tolerava nenhum tipo de invasão.

 

“Tão bonitinho.”

 

Bruna não sabe como, contudo, seus relacionamentos sempre foram cercados por homens passivos demais, quase domesticados.

 

Sempre sonhou com aqueles altivos e corajosos iguais a príncipes salvando princesas. No entanto, apesar do espaço em cada relacionamento, o que vinha era o mais doce possível.

 

Se questionando se era ‘bruta’ demais para o destino, só enviar no intuito de gerar equilíbrio.

 

E não é diferente desse ‘Enzo’.

 

Apesar do seu jeito truco, perto dela vira um cão disciplinado a ponto de ser o oposto de seu biotipo.

 

“Tchau, amanhã não virei.”

 

“Ahn… quê?”

 

O calor foi interrompido, deixando-o desnorteado.

 

“Tenho consulta no grupo de mulheres. Então…”

 

“Tudo bem, só não esqueça de se alimentar nos horários certos.”

 

“Ok.”

 

Antes de colocar o pé na frente, houve outro aviso tão importante quanto.

 

“Não se esqueça, hoje, às 11h30, o entregador estará com suas coisas, seria bom pedir ajuda.”

 

“Não, peço ajuda para minha irmã… Falando no entregador, vou ter que descer a Borda ou vai ser na Toca?”

 

“Qual é o melhor pra você?”

 

“Na Toca, pode subir até a padaria?”

 

“Padaria?”

 

“Sim, a cor tá meio acabada, mas dá pra localizar, não é difícil, claro, se puder. Se não, desço até lá.”

 

“Tudo bem, não precisa se preocupar, estará lá no horário que estou dizendo, se for um pouco pesado, levará até sua casa.”

 

“Mas pode? Nenhum entregador ajuda nas entregas, principalmente em comunidades.”

 

“Não se preocupe.”

 

“Sim, mas tome cuidado, tá?”

 

“Ok, farei como pedir. Não esqueça, caso chegue lá e não estiver no horário relatado, pode me contatar por esse telefone.”

 

Entregou um pequeno papel retangular branco, de espessura grossa, como um cartão de visita.

 

Esse é o telefone de contato, não o comercial.

 

O número, escrito à mão, tem uma caligrafia perfeita.

 

Por amar tudo que envolva escrita e papelaria, queria correr para casa e imitar, deixando os resumos os mais bonitos possíveis.

 

Confirmando com a cabeça, fez o mesmo com o celular e colocou no lado esquerdo do peito, onde ficava a chave de casa.

 

Pelo simples gesto, deixou quente como a bochecha.

 

Queimando e borbulhando, similar à água em plena ebulição, pincelou suas duas mãos envolvendo esses dois melões macios.

 

“Se controla.”

 

Antigamente achava que tinha controle, no entanto, assim que pôs os olhos nessa criatura, o poder passou para o outro controle, que move ao seu bel-prazer.

 

“Tá bom.”

 

Enquanto andava, como se carregasse uma bola de aço, ficou se torturando até o caminho de casa.

 

E como abordará algo que queria manter em segredo até esse cara ir embora, e esquecer que um dia foi cortejada por alguém bonito.

 

Nisso, os que vigiavam o perímetro voltaram para perto de sua estrela-mãe e esperavam alguma ordem.

 

Mohammad retornou ao ser velho, em uma feição hostil e perigosa.