Capítulo 76
O som foi desligado, o clima alegre guiado pela diva pop desapareceu e ficaram somente os sons das buzinas e a paisagem cinza urbana.
Sua cabeça estava encostada na porta e seu corpo distante do motorista.
Mohammad continuou o trajeto conforme o pedido, não mudaria e seguiria até a zona sul do mesmo jeito que ia toda madrugada com a mãe.
Apesar da velocidade, o dono conduzia conforme a sinalização proposta pela regra de trânsito brasileira e também queria estocar o máximo de tempo com ela.
Em respeito ao momento que pertence a ela, por dentro estava um caos.
Faria de tudo para retornar àquela alegria.
Poderia conduzir com apenas uma mão e segurar com a outra para resguardar sua presença, mas não fez.
Quando passaram pela Praça da Bandeira, o primeiro ponto onde esperavam na madrugada fria, a próxima condução para chegar ao destino não causou nada.
A rua continuava a mesma, reafirmando que o privado jamais bagunçara a ordem coletiva.
As duas janelas continuavam abertas, deixando o vento correr livremente, balançando suavemente os fios que secavam lentamente.
O véu escuro jogado nos ombros era denso e fino, com o fator encolhimento nítido.
“Como pode ser mais bela do que as rosas que estão em seu colo?”
Queria tocar e sentir o cheiro de sua pele, mesmo nesse espaço e seus cheiros misturados, ainda assim, queria colocar seu nariz em seu ombro e saborear com todos os sentidos, o que é real, como todos fizeram.
“Posso pedir um favor?”
“Fale.”
“Quando concluímos tudo isso, pode passar na estrada Grajaú/Jacarepaguá, na volta?”
“Volta? Não vai querer parar em algum lugar?”
“Não, quero só ver a paisagem.”
“Tudo bem.”
Esse simples pedido, que não custará nada ao seu bolso, foi algo que nunca esperou receber.
Normalmente, são roupas, perfumes, jantares fabulosos, regados a um bom empratamento e bebidas espumosas em um lugar exclusivo.
Esse era seu preconceito, contudo, pediu algo desinteressante, que a paisagem é cercada de várias favelas e os picos da mata fechada.
Não é único, caro ou fabuloso, é simplório que só consome um pouco da gasolina.
Ainda que não seja importante na sua visão, para Bruna é semelhante a tudo que sempre quis sobre os prazeres humanos.
Se um dia fizesse esse mesmo percurso, com certeza não teria planos à noite.
Quando estavam chegando no túnel, pegou seu celular e entrou no YouTube, queria ouvir a canção que representava essa passagem subterrânea.
‘Sou você’, cantada por Toni Garrido, foi tema de um filme baseado na mitologia grega ‘Orfeu’, levando o título do filme.
Relatando sobre o amor do protagonista pela mocinha, que veio ao RJ pela primeira vez e se encantou pelo lugar e o carnaval.
Apesar da melodia romântica, o filme tem um desfecho azul, onde o casal Eurídice e Orfeu morre junto.
Mohammad não sabia nada sobre o filme, pois não agradava nada que viesse desse lugar.
Mas a declaração cantada por esse artista o fez refletir o impacto desse sentimento por essa mulher.
“[…]Minha mulher, meu amor, meu lugar. Antes de você chegar. Era tudo saudade. Meu canto mudo no ar. Faz do seu nome hoje o céu da cidade[…]”
E, durante a etapa, vislumbrou o passado, onde seu corpo pertencia a todas, do universo e da amplidão.
As que tiveram contato passaram como um enorme cometa tenebroso.
Recordando que entrou e saiu de vários buracos, e gozou todas as vezes ininterruptamente até alcançar a amplitude.
E, mesmo que uma não conseguisse saciar sua sede, outra era posta no lugar, para concluir toda essa chama que ainda queimava até sobrar cinzas.
Todas gritaram e gemeram em seu nome, clamavam enquanto imploravam por mais, e bem mais fundo.
Podia ouvir os gemidos, considerados perfeitos à lei da sua escolha, esse mundo foi feito para ele, moldado à sua vontade, então por que existe essa mulher que é fora da curva?
Por que não conseguiu se adequar ao que foi feito para ele?
O túnel escuro emitia um eco alto pela quantidade massiva de carros e transporte público, mas somente ouvia os malditos gemidos.
Até Latifah, com quem teve sexo apenas uma única vez, com camisinha, passou por sua cama, mas ela não.
“Por que não surgiu antes? Onde estava esse tempo todo? Por que não veio até mim quando estava em Londres? Por que somente agora? O que fez durante esses 18 anos que não veio até mim?”
“[…]Lua no mar, estrelas no chão. Aos seus pés, entre as suas mãos. Tudo quer alcançar você. Levanta o sol do meu coração. Já não vivo, nem morro em vão. Sou mais eu, porque sou você[…]”
“Estamos chegando.”
Num tom alegre, como se a tristeza durante quase meia hora de viagem fosse embora, estava pronta para o próximo passo, a despedida.
Mohammad saiu da reflexão e, de vários questionamentos, olhou para essa dádiva especial.
É ela, somente a dona do seu corpo e coração.
“Está animada?”
“Não muito, mas depois que terminar vamos andar pelo Parque Lage?”
“Sim, não disse que sou seu acompanhante de luxo? Realizarei todos os seus sonhos e fantasias daqui para frente.”
“Opa.”
Finalmente, saem dessa escuridão, sendo recepcionados pela zona sul, um ambiente cheio de verde mal organizado.
Sentindo que hoje será algo atípico, que desvendará alguns mistérios que esconde dele.
O Parque Lage, pertencente à Secretaria do Meio Ambiente do RJ, é um espaço público com 52 hectares de biodiversidade.
Além de ser um refúgio natural, abriga a Escola de Artes Visuais (EAV), onde exposições de artistas são realizadas gratuitamente, unindo arte e natureza em um único ponto.
Quando veio pela primeira vez, se encantou, era um mundo novo e dali tirou várias fotos no seu antigo celular da Motorola.
E quer sentir essa mesma energia quando navegar novamente.
Não sabe se seu convidado já veio aqui e acreditava que já colecionou outras recordações.
Porém… é o seu mundo, sua maior conexão com a natureza, muitos ensaios fotográficos são feitos aqui, e um que atraía sua atenção era ligado ao romântico.
Presenciou apenas uma única vez e adorou, desejando reviver a oportunidade.
Contudo, o tempo passou e esse desejo se deteriorou igual a leite.
Principalmente, pelo peso carregado para os que se importam com a história brasileira, de milhares de vidas escravizadas pelo sistema colonial.
É belo, mas nada glamoroso nessa arquitetura banhada a sangue e gritos que insistem em ser calados.
Para os covardes, jamais haverá anistia.
Mesmo perto do final de semana, onde poucos, cansados da rotina profissional, conseguem voltar a sentir o fôlego da vida com a chegada dessa folga.
Perambulavam por aí junto às crianças que curtem o feriado escolar, perturbando seus responsáveis para explorar cada brecha.
Portanto, não é incomum ouvir risos de diversas idades por toda a extensão.
O carro ficou quase perto do casarão.
Antes de sair, esperou sua companheira para dar esse último passo, e o resto será preenchido com bastante diversão.
Quando gritou dentro de si, ‘EU ESTOU PRONTA’, mirou decididamente a primeira página.
Ambos saíram, como um casal, trocaram olhares que refletiam muitas coisas, mas, ao mesmo tempo, sem sair um som de seus lábios.
Ofereceu sua mão para servir de porto, o que foi muito bem-vindo.
Embora dessa aproximação, que aos olhos alheios ditava como um casal um tanto adverso, naquele instante eram apenas conhecidos que estavam estabelecendo um laço de amizade.
Em suas mãos, pousa o buquê de rosas que pertence ao espírito que estava auxiliando a natureza desse enorme parque.
Tiveram que percorrer um longo caminho para chegar até a entrada, onde foram jogadas as cinzas.
A cena bonita fora do padrão atraiu olhares de muitos visitantes que achavam bonito ou intrigante.
Pois a beleza dela atrapalhava o esplendor dele, como peças que não encaixam num quebra-cabeça.
Logo, combinavam, quem disse que o dia e a noite não podem se encontrar?
Nesse momento, forma-se um eclipse solar, um evento raro e bonito de se apreciar, porém, se não tiverem uma boa proteção nos olhos, ficarão cegos.
E é isso que estão causando: cegueira em cada um que observa essa ação.
Viraram para a direita e chegaram a uma pequena área onde foi feito o ritual, que se misturou à natureza.
Bruna encarava esse ponto com bastante cuidado e, o tempo todo, não soltou sua mão para servir de sustentação caso essa pilastra tentasse desabar.
“Estamos mais uma vez aqui, mãe. Venho me despedir da senhora e trouxe um convidado especial que creio que amaria, e tentaria fazer o impossível para ficar com ele.”
“…”
“Apesar das suas belas palavras, em dizer que conheceria um advogado, infelizmente te trouxe esse playboy que nem sei qual é sua profissão. Falando nisso, qual é sua profissão?”
“Haha.. Sou empresário.”
“É, não foi dessa vez, talvez na próxima surja um advogado então….. Para de apertar minha bochecha….”
“Então, pare de falar besteira.”
Respondeu num tom sério, para não repetir esse incômodo sobre ter outra pessoa em sua vida.
“Não xinguei.”
“Falou algo pior que isso, por favor, pare antes que te jogue no carro e suma para sempre.”
“Haha… que exagerado, mas só to seguindo o protocolo de despedida, minha mãe queria que casasse com um advogado e você não é um…. É um empresário formado em economia…”
Mohammad aperta um pouco mais, destacando a coloração roxa.
“Se a sua mãe pediu um advogado, não me importo em começar outra graduação para ficar igual ao que disse.”
“Não pode fazer isso, tá eliminando a concorrência….. Minha bochecha, seu palhaço.”
“Vou destruir qualquer coisa que pense em ter algo com você, isso inclui esse advogadozinho.”
Bruna achou engraçado essa fala carregada de possessividade, de alguém que pode ter tudo num estalar de dedos, logo, resolveu provocar um pouco mais.
“É só um desejo de uma falecida, que só queria o melhor para uma filha pobre, imagina só, ter um filho desse cara? Ficaria linda e poderia bancar a Taísa Keila caso alguém queira me processar.”
“Não faça isso, senhorita! Tá cutucando onça com vara curta, o presidente não é nada legal quando provocado.”
Alex, que estava por perto, implorava para não atiçar o temperamento curto dele.
A atitude melosa de um casal que brincava de maneira leve faz a lente da câmera focar nos olhos do receptor, descrevendo a vermelhidão quase assassina.
Preparados para cometer atrocidades pela provocação.
Os seguranças até cogitaram armar um plano para qualquer saída com essa mulher travessa.
“Tem esse rosto inocente, mas, na verdade, é uma diabinha. Se tiver um ser dentro dessa barriga que não seja meu, arrancarei.”
A ameaça soou pequena, a ponto de rir mais um cadinho desse bonitão explosivo.
“Aborto é crime, e não pode fazer isso comigo, será neto da minha mãe e a alegria do meu pai.”
Independentemente da fúria, pelo tom de deboche, a sua força não a machucava, pois não queria causar dor, apenas ficou bonito ver essa santa brincar de diabinha com um ser infernal como ele.
A jovem não para de rir, como se toda a situação fosse piada, porém Mohammad queimava por dentro só de imaginar que dentro desse ventre possa abrigar outro que não seja sua semente.
“Não brinque com isso, cordeirinho, não sabe o que posso fazer com você.”
“Tá bom, lobo mau, não vou falar de novo, agora deixa me despedir direito da velha. É um momento especial pra mim.”
“Não fale bobagens de novo.”
“Sim, sim. Sem bobagens.”
A bochecha deixou de sofrer as duras torturas dessa mão forte e conseguiu voltar ao tema, só que estava se controlando para não rir da situação.
E continuou.
“E, como estava dizendo, vim me despedir, mas não é um adeus, nunca me esquecerei do que fez por mim e sou grata por tudo.”
“…”
“Por isso, eu e Mohammad trouxemos um buquê das rosas mais bonitas que a senhora merece.”
Temerosa em pôr esse lindo objeto, pelo fluxo e segurança do parque, seu parceiro incentivou a fazer o gesto.
Assim, com todo cuidado, pôs onde jogou as cinzas, que geraram alimento para a terra e cresceram vários matos ao redor, como um presente da mãe natureza que, até morta, foi útil para ela.
Quando fez esse gesto, pegou o celular da bolsa e tirou uma foto para guardar em sua pasta de outras memórias.
Mohammad fez o mesmo, só que de um ângulo que focasse nela.
A jovem, que não sabia dessa situação, apenas expressou as emoções verdadeiras e, no final, um sorriso de que, finalmente, concluiu o que demorou quase cinco anos para fazer.
Talvez seja o certo, o tempo é o que cura muitas feridas, mas deixa a cicatriz, para no futuro ser visto por outras gerações, o grande papel de superação feito por esse soldado.
“Pronto! Agora vamos nos divertir e andar por tudo isso. Quero tirar muitas fotos, anda, Mohammad!”
Indo à frente, como se tivesse dois turbos nos pés, ligou seu modo espoleta e mostrou seu lado mais divertido para um apaixonado.
Que seguiu, acompanhando por onde queira levar.
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Capítulo 76
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