Capítulo 12
Os dias seguintes foram como um longo silêncio se arrastando pelas paredes.
Nathan não gritava. Não cobrava. Não jogava palavras afiadas para ferir. Apenas existia na casa como se Cael não estivesse lá — um fantasma educado, mas ausente, que evitava olhares, respondia com monossílabos e passava mais tempo no quarto do que em qualquer outro cômodo.
Era o tipo de punição que Cael nunca aprendera a lidar.
Ele conhecia gritos, ordens, humilhações explícitas. Sabia se mover entre jogos, seduções, negociações sórdidas. Mas aquele tipo de dor… a do silêncio morno e resignado, da ausência de expectativas, da desistência sutil… aquilo o atravessava com mais força do que qualquer corrente que Arael já lhe impusera.
No quarto dia, Nathan saiu cedo e voltou tarde.
No quinto, Cael sequer ouviu a porta.
No sexto, ele acordou sozinho e encontrou um bilhete sobre a bancada da cozinha. O papel estava dobrado com exatidão — não havia raiva na caligrafia, mas uma frieza educada que doía mais do que qualquer acusação.
“Fui para a casa dos meus pais por uns dias. Levei o gato comigo. Ao contrário de você, eu aviso quando sumo. Deixe a casa limpa e tranque a porta ao sair.”
Assinado, como se fosse uma nota comercial. Como se Cael fosse um inquilino temporário. Como se Nathan quisesse deixar claro que não esperava mais nada dele.
Cael leu e releu a mensagem, os olhos fixos em cada linha, como se houvesse algo escondido ali — alguma palavra oculta que ele pudesse agarrar e transformar em redenção. Mas não havia.
Nathan havia ido embora. Não em fúria, mas em desistência.
E aquilo, por alguma razão, o feria mais do que qualquer cena que vivenciara ao lado de Arael.
A ausência do gato, com seus passos suaves e olhos atentos, deixava o apartamento mais quieto do que nunca. O relógio parecia mais alto, os estalos da estrutura do prédio tornaram-se intrusivos, e até o próprio som da respiração de Cael lhe parecia fora de lugar. Sentado no sofá, ele olhava para o vazio da sala como se esperasse que Nathan voltasse a qualquer momento. Mas a espera era estéril. Inútil.
O eco da frase — eu aviso quando sumo — martelava como sentença.
Cael passava as mãos pelo próprio corpo sem sentir nada. Nada além de um peso invisível sob a pele. Aquela fome incômoda que não tinha relação com energia sexual, mas com ausência. Com perda. Com arrependimento.
Ele havia machucado Nathan. E agora Nathan o tratava como algo que se desativa. Como uma presença substituível.
Aquilo era karma. Era o retorno inevitável de tudo o que sempre ignorara, disfarçara, desprezara. Era sentir, pela primeira vez, o que era não ser desejado. Não como objeto. Mas como alguém. E ele… não sabia o que fazer com isso.
Durante aquela noite, Cael não saiu. Não caçou. Não procurou prazer. Ele ficou ali, andando pelo apartamento em círculos silenciosos, deitando na cama apenas para se virar de um lado para o outro, como se o lençol ainda guardasse o cheiro de Nathan. Como se o espaço vago ao lado ainda estivesse aquecido.
Mas estava frio.
Era só um aviso, Cael.
Não confunda. Ele não quer mais que você fique. Só foi gentil o suficiente para não te mandar embora como se faz com um intruso.
Mas ainda assim, Cael não foi embora. Não no primeiro dia. Nem no segundo.
Ele limpou a casa. Cuidou do espaço com uma estranha devoção. Dobrou as roupas de Nathan que estavam largadas. Lavou as canecas de café que ele sempre usava. Reorganizou os livros na estante — sem nenhuma razão, sem sequer saber se estavam em ordem.
Ele só… quis fazer algo. Qualquer coisa que não fosse simplesmente desaparecer.
Afinal, agora ele compreendia.
Sumir era o gesto que machucava.
E Cael, pela primeira vez, não queria mais causar dor.
Os dias passaram como se o tempo tivesse se dissolvido, tornando-se apenas uma sucessão de luzes e sombras que atravessavam a sala. Cael já não sabia ao certo quantos amanheceres tinha visto sentado ali, no mesmo ponto do tapete, com os joelhos dobrados e os olhos fixos na porta da frente como se ela pudesse se abrir a qualquer momento.
Mas não abria.
A casa, embora limpa, estava mergulhada num vazio que beirava o insuportável. Não era o tipo de solidão que provocava medo, mas sim aquele silêncio anestésico que vinha após uma ausência real — não de um mestre, ou de um domador… mas de alguém que se tornara necessário de um jeito que Cael não soubera nomear até perdê-lo.
Ele ainda não havia transado com ninguém desde então. Não era por falta de oportunidades — bastaria sair, fazer o que sempre fizera, deixar que os corpos se aproximassem e que a energia circulasse de volta por sua pele faminta. Mas ele não queria.
Não havia fome suficiente no mundo que compensasse aquele tipo de vazio.
Era um tipo novo de abstinência. Algo que doía num ponto que nunca doera. Algo que não envolvia o corpo, mas o peito — uma compressão surda que lhe tirava o fôlego lentamente, como se o ar da casa estivesse se tornando rarefeito desde que Nathan partira.
Cael passava longos períodos imóvel. Às vezes, deitado no sofá, os olhos perdidos no teto. Às vezes, apenas sentado com o telefone nas mãos, escrevendo e apagando mensagens. Ele mandava algumas — nada íntimo, nada que denunciasse o que sentia. Perguntas banais, triviais. Sobre o gato, sobre o clima, sobre os livros que Nathan levava para ler.
E Nathan… respondia.
Cada resposta era como uma fisgada — não de esperança, mas de dor. Porque ele ainda estava ali, presente em algum lugar, mas longe. Educado. Distante. Como alguém que aprendeu a se proteger.
Era o mesmo Nathan que outrora o olhava com desejo, com ternura, com aquele riso que deixava Cael desconcertado por dentro. Mas agora, cada frase respondida como se estivessem trocando mensagens entre colegas de trabalho só servia para deixar o buraco ainda mais fundo.
Cael nunca implorara por afeto. Sempre o tomara, o manipulava, o dobrava a seu favor. Mas ali, naquela casa, sozinho, percebendo que a ausência de Nathan alterava a gravidade das coisas… ele começou a entender que o amor não se exige. Ele se oferece, ou se vai.
E Nathan havia ido.
— Idiota — murmurou certa manhã, a voz rouca de quem não falava há horas. — Me deixando aqui, sozinho, nessa merda de casa…
Mas nem mesmo a raiva se sustentava por muito tempo. Sua voz morreu no ar, fraca, como o bater de asas de um inseto prestes a sucumbir.
O que doía mais era o fato de que Nathan o deixara em sua própria casa. Como se confiasse que ele fosse cuidar. Como se, mesmo magoado, não quisesse feri-lo de volta. Como se tivesse lhe dado, de forma silenciosa, uma escolha.
E Cael… não sabia o que fazer com ela.
Ele se arrastou até a porta novamente. Sentou-se. E esperou.
Esperou como se aquele gesto, tolo e insistente, fosse um feitiço.
Volta pra mim, pensava, sem escrever.
Me olha de novo daquele jeito.
Fala meu nome como só você falava.
Mas a porta não se abriu.
E, pela primeira vez em muito, muito tempo, Cael soube exatamente o nome do que sentia: saudade.
Saudade de Nathan. Do toque. Do cheiro. Da risada baixa antes de dormir. Dos cafés ruins. Dos silêncios confortáveis.
Ele não queria outro corpo. Queria aquele corpo. Aquela presença. Aquele olhar que o via como ninguém mais via.
Era amor. Ele sabia disso agora.
E o amor, diferente da fome, não podia ser saciado com outros.
—–
Durante dias, a rotina de Cael foi uma repetição silenciosa. Limpava a casa com um zelo obsessivo, dobrando mantas, passando os dedos sobre as superfícies, mantendo tudo em ordem como se a organização externa fosse capaz de abafar a desordem dentro de si. E depois, voltava ao tapete da sala — o mesmo ponto em frente à porta — e ali permanecia. A televisão ficava ligada, mas ele não assistia; era apenas uma presença ruidosa o bastante para silenciar a própria mente.
A cada fim de tarde, digitava alguma coisa no celular. Uma frase. Um pedido. Às vezes, só um sinto sua falta. Mas nunca enviava. Apagava. Sempre. Como se dar forma ao que sentia fosse mais aterrador do que suportar o silêncio.
E então, naquela manhã em que o céu parecia pesar sobre os telhados, Cael recebeu a mensagem:
— Volto hoje. Por volta das cinco.
Aquela frase simples fez seu estômago se contrair. Ele a leu dezenas de vezes, como se pudesse encontrar nas entrelinhas algo mais — uma intenção, um tom, qualquer coisa que dissesse quero ver você. Mas Nathan não acrescentou mais nada.
Cael não esperou. Não hesitou. Pegou o casaco e saiu. O relógio mal marcava onze da manhã.
A cidade parecia vibrar em outra frequência.
As pessoas passavam apressadas, com seus destinos bem traçados, suas vidas seguindo adiante.
Cael, em contraste, parecia um espectro — deslocado, guiado apenas por um único impulso: vê-lo chegar.
Poucos minutos antes, ainda vagando pelas ruas sem direção, ele havia enviado uma mensagem perguntando por onde Nathan viria.
A resposta chegou breve, quase seca:
Nathan: “Estação central. Plataforma sete.”
A estação de trem era ampla demais. Fria demais.
Um lugar feito para a passagem, nunca para a espera.
Cael escolheu um banco perto das plataformas e afundou ali, as pernas cruzadas, o casaco apertado contra o peito como uma contenção frágil. O tempo parecia dobrar sobre si mesmo. Cada minuto se estendia com a lentidão insuportável de uma febre baixa.
Ele já sabia que esperar em casa não ajudaria. As paredes de lá só fariam o tempo ecoar mais alto.
Na estação, ao menos, ele tinha o ruído dos trilhos, os anúncios mecânicos, o movimento de outros corpos que não carregavam o mesmo peso — tudo isso o ajudava a não pensar. Ou fingir que não pensava.
Ficou ali por horas, imóvel, como parte da paisagem.
O trem chegou antes do previsto — um rugido metálico rasgando o silêncio anestesiado da espera.
Cael se levantou de imediato, instintivamente, antes mesmo de reconhecer qualquer rosto.
E então o viu.
Nathan vinha pela plataforma, mala numa mão, a caixa do gato na outra. Estava visivelmente exausto — as olheiras cavadas, o rosto impassível, como se ainda estivesse em outro lugar. Olhava em volta com a naturalidade de quem não procura nada. Até que seus olhos cruzaram com os de Cael.
Foi como se o tempo tivesse prendido a respiração.
Cael permaneceu parado, as mãos agarradas à barra do suéter, os olhos úmidos demais para disfarçar. Havia algo de frágil naquela rigidez, como uma estátua prestes a se quebrar.
E então as lágrimas vieram. Sem som, sem alarde. Apenas vieram — como uma rendição inevitável.
Antes que Nathan dissesse qualquer coisa, Cael atravessou o espaço entre eles e o abraçou.
Sem aviso. Sem permissão.
A mala caiu no chão com um baque seco. Nathan hesitou por um segundo… e então retribuiu o gesto. Os braços ao redor de Cael não foram imediatos — eles se construíram com o silêncio, com o peso do que não havia sido dito.
Era um abraço estranho.
Não se parecia com nenhum dos que já haviam compartilhado.
Não havia desejo.
Não havia desculpas.
Era um gesto cru, urgente. Um abrigo silencioso, como quem pede para não ser deixado sozinho.
Cael se encolheu contra o peito dele, inalando aquele cheiro familiar de sabão barato misturado à poeira da viagem. Seus dedos se agarraram ao casaco de Nathan como se aquilo fosse tudo o que ainda o mantinha em pé.
— Eu não achei que você realmente viria — a voz de Nathan soou baixa, sem ironia, apenas cansada.
Cael ergueu os olhos ainda marejados, os cílios pesados pelas lágrimas. Ele estava encolhido em si mesmo, o rosto inchado, a pele fria e úmida, com o mesmo tremor contido de um gato assustado depois de um banho forçado. A gola do casaco cobria metade de seu pescoço, mas não escondia o rubor que vinha do choro mal reprimido.
— Você disse que chegaria às cinco. Claro que eu viria — a voz dele saiu rouca, quase um sussurro, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Como se não tê-lo encontrado estivesse fora de qualquer possibilidade aceitável.
Nathan apenas assentiu, o maxilar contraído, desviando o olhar. Pegou o celular do bolso e digitou algo breve antes de dizer, seco:
— Vou pedir um Uber. Vamos pra casa.
O silêncio entre os dois era denso. No carro, não trocaram palavra. O rádio tocava algo instrumental, e Cael olhava pela janela como se esperasse que as ruas desfocadas explicassem o que havia acontecido com ele — com eles.
Quando entraram no apartamento, o ar parecia mais frio do que o habitual — como se o espaço ainda carregasse o silêncio da ausência.
Nathan largou a mala no corredor, caminhou alguns passos até a sala e, com um gesto distraído, abaixou-se para abrir a caixa do gato. O som leve da portinha se soltando ecoou no ambiente vazio, e o animal saiu com cautela, farejando o chão como quem reconhece um território deixado para trás.
Foi nesse instante que Cael o alcançou pelas costas.
E chorou. Outra vez.
— Eu senti sua falta… — murmurou, contra a nuca dele. — Não faz isso de novo. Não desaparece. Por favor.
Nathan se virou devagar, soltando um suspiro. O toque nos ombros de Cael não era carinhoso, mas também não era cruel. Apenas humano.
— Eu não desapareci — respondeu, com uma calma forçada. — Eu só fui visitar meus pais. Você sabia disso.
Cael balançou a cabeça, afastando-se um pouco para encará-lo.
— Eu sei… mas parecia que você nunca ia voltar. E eu fiquei… eu fiquei sozinho aqui. Sem saber o que você estava pensando. Ou sentindo.
Nathan desviou o olhar, as mãos indo até os bolsos da calça.
— Não tem por que se desculpar — disse por fim. — Você só estava fazendo o que faz. O que é da sua natureza. Seduzir. Se alimentar.
Cael enrijeceu.
As palavras não foram ditas com crueldade. Mas foram afiadas. E acertaram.
Nathan se afastou um passo, tirando os braços de Cael de sua cintura.
Cael não resistiu. Simplesmente… caiu. Como uma marionete cujo fio foi cortado. Sentou-se no chão, desajeitado, com as pernas dobradas sob si. E então ergueu o rosto, vermelho, devastado.
— Por que você é tão gentil comigo? — perguntou, a voz falhando. — Mesmo quando tá machucado… mesmo quando eu sou a razão disso. Por que você me trata assim?
Nathan o encarou por um longo tempo. Seus olhos não tinham raiva. Tinham mágoa. Uma decepção muda que doía mais do que qualquer grito.
— Porque você ainda é alguém — respondeu, com firmeza. — Mesmo sendo um demônio. Você ainda merece respeito. O mínimo.
Ele suspirou, cansado, passando a mão pelo cabelo. Por um instante, pareceu mais velho. Mais frágil.
— Mas sim… eu tô chateado. Claro que tô — disse, num tom quase ríspido, embora houvesse uma amargura branda por trás. — E nem temos nada, né? Nenhum tipo de compromisso. Então… talvez eu só esteja sendo um idiota.
Cael ficou em silêncio, o rosto escondido nas mãos. As lágrimas escorriam pelos dedos como sangue de uma ferida antiga que insistia em reabrir. Ele queria pedir desculpas de novo, mas temia que isso soasse vazio. Queria prometer que mudaria, mas ainda não sabia como.
Queria dizer que o amava. Mas o silêncio era mais seguro.
Nathan se agachou à sua frente. Não o tocou.
— Você não é idiota — disse Cael de repente, a voz embargada, ainda ajoelhado no chão, como uma súplica informal. Seus olhos, ainda marejados, buscavam os de Nathan com urgência, como se esperasse que ele duvidasse disso.
Nathan não respondeu. A respiração dele era calma, mas havia algo contido nos ombros rígidos, como se estivesse tentando manter-se inteiro sob uma pressão invisível.
Cael inspirou fundo. O ar pareceu doer.
— Eu não vim aqui pra te dar explicações… — começou, com dificuldade. — Eu… nem sei se conseguiria. Mas… eu preciso dizer isso. E depois… depois você faz o que quiser com isso. Me aceita ou me odeia. Mas… eu não consigo mais carregar isso sem te dizer.
O silêncio entre eles parecia expandir o espaço da sala. A luz do fim da tarde entrava pela janela com um tom dourado esmaecido, lavando a pele de Cael num brilho que não o aquecia. Ele parecia pequeno ali, vulnerável, sem charme, sem artifícios — só carne crua e emoção desorganizada.
— Eu… senti sua falta todos os dias — a voz falhou, as lágrimas voltando com força. — Eu ficava sentado no tapete, olhando para a porta… esperando ouvir as chaves. Eu conversava contigo mesmo quando você não estava ali. Mandava mensagem só pra saber se você ainda estava vivo. E cada vez que você respondia, doía mais. Porque… eu sabia que você estava bem. Só não estava aqui.
Ele engoliu em seco.
— Eu não fiquei com ninguém, Nathan. Eu não queria. Nem quando o meu corpo gritava por isso… eu não queria. Eu te traí antes. Com o que eu fiz. Mas depois… eu só queria você. Eu… — ele hesitou, a garganta se fechando — eu te amo.
Disse como quem arranca algo que estava preso há tempo demais.
— Se é isso o que vocês chamam de amar, então eu te amo. E não espero que isso resolva tudo. Não estou dizendo isso para ser perdoado, nem pra me fazer de vítima. Só… só precisava que você soubesse — seus olhos ardiam, mas não desviaram. — Mesmo que você vá embora agora. Mesmo que não queira mais me ver.
Nathan ainda não havia se movido. Seus olhos estavam fixos em Cael — duros, imóveis — e, no entanto, o que se passava por trás daquele silêncio era incalculável.
Ele parecia tentar encontrar alguma mentira nas palavras. Alguma manipulação, alguma armadilha emocional. Mas tudo o que viu foi vulnerabilidade.
Verdade nua. Do tipo que Cael sempre evitou.
Nathan se aproximou devagar. Sentou-se no chão, de frente para ele, as pernas cruzadas, as mãos entrelaçadas entre os joelhos.
— Por que agora? — murmurou, não como acusação, mas como se estivesse tentando entender. — Por que só depois de tudo isso?
Cael sorriu de forma torta, exausta.
— Porque só agora eu soube o que significava sentir falta de verdade — respondeu. — Se você se sentiu assim tão miserável quanto eu quando eu fazia coisas que você não gostava… eu sinto muito. Porque só agora eu percebi que… perder você me doeu mais do que qualquer fome que Arael já me fez passar. E isso me assustou. Muito mais do que qualquer coisa que eu já senti.
Nathan fechou os olhos por um instante.
Quando voltou a encará-lo, seu semblante estava mais suave. Não havia um perdão ali. Mas havia… um espaço. Um talvez.
Ele estendeu a mão e, com um gesto tímido, tocou o rosto de Cael. O polegar secou uma das lágrimas que escorriam. O toque foi breve, mas carregado de silêncio.
— Você me ama? — perguntou, num sussurro. — Mesmo assim?
— Mesmo assim — Cael respondeu sem hesitar.
Nathan assentiu, como se estivesse tentando entender o peso daquilo.
Depois se aproximou e pousou a testa contra a de Cael.
— Eu não sei se consigo te dar tudo agora — confessou. — Mas eu não vou te deixar sozinho.
Cael fechou os olhos e deixou o corpo tremer sob o peso daquela promessa. Não era uma aceitação total. Mas era um recomeço. E, para ele, naquele momento, era tudo. O silêncio entre eles era espesso, quase tangível, como se o mundo ao redor houvesse prendido a respiração para não interromper o momento.
Cael ainda soluçava em meio àquele momento delicado, o corpo encolhido em si mesmo, quando uma onda de calor súbito começou a se espalhar por sua nuca — não o calor reconfortante de um toque ou um abraço, mas um calor que vinha de dentro, como se algo velho, incandescente, começasse a reagir à presença da verdade que acabara de ser dita.
Nathan recuou ligeiramente, sentindo a mudança no ar. A pele de Cael parecia vibrar sob uma tensão invisível, e uma luz opaca, doentia, começou a pulsar sob os fios de cabelo que escondiam sua marca.
— Cael…? — murmurou, hesitante, os olhos arregalados diante da luz que crescia sob a pele.
Cael apertou os olhos, a dor queimando como uma lembrança viva de todas as vezes em que havia sido silenciado, controlado, moldado. Era como se Arael o tocasse à distância, arranhando por dentro, tentando manter o que estava escapando.
Mas já era tarde demais.
Com um estalo seco — quase orgânico, como o rompimento de um osso antigo —, a marca se rasgou de dentro para fora. Uma luz densa se expandiu por um instante, lançando sombras ao redor da sala. E então, tão rápido quanto veio, apagou-se.
Restou apenas um rastro cinzento, dispersando-se no ar como cinzas levadas pelo vento.
Cael arquejou, curvando-se para frente, os dedos cravando o chão como se buscassem ancoragem no mundo. A dor cessou tão abruptamente quanto começara. Mas algo havia mudado. Algo profundo. Uma ausência.
O silêncio seguinte era outro — não pesado, mas novo. Como se o universo ao redor tivesse se reorganizado.
Nathan o segurou pelos ombros, os olhos cheios de uma preocupação que ainda não compreendia totalmente.
— O que foi isso?
Cael não respondeu de imediato. A respiração estava irregular, o peito arfando como se acabasse de emergir debaixo d’água.
Nathan se aproximou, ainda ajoelhado diante dele, as mãos hesitando no ar, como se não soubessem por onde começar. Então, seus olhos se deteram no pescoço de Cael — exatamente no lugar onde ele sempre evitava o toque.
— Cael… — sussurrou, estendendo a mão.
Cael enrijeceu imediatamente, recuando ligeiramente. Um reflexo antigo, automático, moldado pelo medo.
— Não. Não toca aí. — Sua voz era baixa, quase um sussurro, mas carregava urgência.
Nathan, porém, não recuou. Em vez disso, aproximou-se ainda mais. Cael o fitou como se aquilo fosse loucura, como se Nathan estivesse tentando pôr a mão no fogo — não por coragem, mas por ignorância. Mesmo assim, não o impediu. Apenas fechou os olhos, como quem se prepara para a dor.
Os dedos de Nathan tocaram sua pele e nada aconteceu. Nenhum calor. Nenhuma reação. Nenhuma dor. Apenas pele quente, viva e trêmula — mas comum.
Cael estremeceu, como se estivesse sendo tocado pela primeira vez em um lugar proibido, onde o trauma e a memória se entrelaçavam como espinhos.
Nathan deslizou os dedos lentamente sobre o ponto onde antes se encontrava o selo.
— Como…?
— Não tem mais nada aí, Cael — respondeu Nathan, com olhar sereno.
— Isso… não é possível. — Cael levou a mão até o próprio pescoço, cobrindo os dedos de Nathan com os seus. Os olhos, ainda marejados, fixaram-se nos dele. — O selo… — murmurou, com voz rouca e trêmula — ele… se quebrou. Ele… sumiu.
A incredulidade moldava cada palavra. Havia alívio na voz, mas também medo. Medo puro. Medo do desconhecido. Pois, desde que existia, aquela marca era parte dele. Parte do que o definia. Do que o prendia.
E agora, ela se fora.
— Eu achei que só Arael poderia quebrar. Que… que eu teria que implorar. — Cael balançava a cabeça, os olhos perdidos no chão. — Mas eu não pedi. Eu só… falei com você. Eu disse a verdade.
Nathan, sem entender completamente, fez o que sabia fazer: puxou-o para os braços, acolhendo o corpo que ainda tremia.
— Isso não é bom? — sussurrou. — Você parece com medo, como se quisesse o selo de volta.
Cael demorou a responder. Por dentro, sentia-se flutuar no abismo. Livre, sim. Mas de quê? E para quê?
— Eu… eu não sei quem sou sem ele. — confessou num fio de voz. — Eu nunca soube.
Nathan se aproximou ainda mais, ajoelhado diante dele, segurou o rosto de Cael entre as mãos com delicadeza que contrastava com o desespero crescente no outro. Seus polegares roçaram levemente a pele ainda úmida pelas lágrimas que não cessavam, e seus olhos estavam calmos, mas firmes — um ponto de ancoragem no meio da tempestade.
— Respira. — murmurou, mantendo o contato visual. — Olhe para mim. Você está aqui. Está seguro.
Mas Cael tremia. O corpo inteiro — não só pelas emoções, mas por uma inquietação mais profunda, como se algo dentro dele estivesse se desfazendo, e ele não soubesse como manter os cacos unidos. As mãos se fecharam em punhos sobre o próprio colo, as unhas cravadas na pele das coxas. Ele arfava, tentando conter o colapso.
— Eu não sei o que fazer. — disse num sussurro entrecortado. — Não tem mais a voz dele na minha cabeça. Não tem mais o peso… e ainda assim sinto como se ele estivesse vendo tudo. Como se eu tivesse feito algo terrível. Como se… como se agora eu fosse desaparecer.
Nathan se inclinou, encostando suavemente a testa na de Cael. Seu toque era uma âncora — não uma corrente, não uma prisão, mas algo que o chamava de volta.
— Você não vai desaparecer. — respondeu com firmeza serena. — A vida que você teve… não precisa ser a vida que você vai ter. E sim, eu sei que parece assustador. Sei que o silêncio parece enorme. Mas ele também é espaço. Espaço para você se escutar, talvez pela primeira vez.
Cael apertou os olhos com força, a testa franzida num esforço quase físico para se conter.
— E se eu não gostar do que encontrar? — sussurrou, com os lábios trêmulos. — E se eu não souber viver fora das ordens dele?
Nathan respirou fundo, afastando-se só o suficiente para vê-lo melhor. As mãos não deixaram o rosto de Cael.
— Então você vai descobrir. Aos poucos. E não precisa fazer isso sozinho. — Olhou-o com doçura. — Você me disse que me amava. Que não esperava nada em troca. Mas agora quero te dar algo de volta, Cael: tempo. Tempo para sentir medo, para se reconstruir. Para descobrir quem você é — mesmo que demore. Mesmo que doa.
Cael soluçou mais uma vez e enfim deixou o corpo pender para frente, desabando nos braços de Nathan. Não como quem cede ao desespero, mas como quem, pela primeira vez, permite que alguém o segure sem controle, sem cobrança, sem medo.
Nathan o acolheu com firmeza, envolvendo-o num abraço longo, respirando contra seus cabelos desalinhados, murmurando palavras sem pressa, só para que ele soubesse: estava ali.
O coração de Cael batia rápido, mas, pela primeira vez em anos… era só dele.
E mesmo sem saber quem era — começava, enfim, a existir.
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Doce Inanição
Nathan jamais esperou encontrar o amor na forma de um íncubo. Muito menos descobrir que ele tinha um lado doce, um senso de humor duvidoso e uma tendência incorrigível a usar lingerie como forma...