Capítulo 17
O ar carregava aquele cheiro doce e sutil de um dia que agonizava — uma mistura de poeira quente, tecido velho e algo indefinido que só as horas tardias sabiam evocar.
Cael estava afundado no sofá, as pernas dobradas de modo displicente, o controle remoto frouxamente equilibrado entre os dedos. Na televisão, imagens coloridas passavam sem realmente prender sua atenção; seus olhos, vítreos e sem foco, deslizavam pelas cenas como se atravessassem vidro fino. Havia algo no silêncio morno da casa que parecia anestesiar seus pensamentos, deixando-o à deriva entre a preguiça e uma inquietação latente que ele não sabia nomear.
Foi então que a porta se abriu com violência desajeitada, e Nathan entrou — ou melhor, caiu para dentro da casa.
O som do impacto, quando ele despencou no sofá, foi tão abrupto que Cael se sobressaltou, os músculos tensos por um instante, como um animal acuado. Virou-se rapidamente, a respiração presa, até que o viu ali, esparramado, o rosto meio enterrado nas almofadas, soltando um gemido gutural de puro cansaço.
— Acabou… — murmurou Nathan, a voz abafada, arrastada pelo peso da exaustão. — Acabou…
Cael piscou, confuso, até que a tensão deu lugar a uma risada curta, abafada pelo alívio. Apoiou o queixo na mão, observando Nathan com olhos semicerrados, um sorriso enviesado nos lábios.
— Achei que você tivesse morrido. — Sua voz era uma nota baixa e divertida. — Mas, se era só isso… agora posso ter você só para mim?
Nathan fez um som que poderia ser uma risada ou um gemido de concordância, o corpo relaxando ainda mais, como se a própria gravidade estivesse mais forte naquela sala. Cael deslizou pelo sofá, aproximando-se, o calor do corpo de Nathan irradiando uma estranha sensação de ternura que ele ainda não sabia lidar plenamente.
— Terminei todas as provas. — disse Nathan, virando-se um pouco para encarar Cael, os olhos semicerrados e vermelhos de cansaço. — Finalmente… férias.
Por um momento, Cael apenas o olhou, a cabeça inclinada de leve, como se absorvesse o significado daquelas palavras em camadas mais profundas. Férias. Tempo livre. Nathan, inteiro, para ele. Um pensamento que deveria trazer apenas satisfação, mas que também carregava um fiapo inquieto de incerteza — como uma brisa fria através de uma janela mal fechada.
— Então… — começou Nathan, arrastando-se para uma posição mais sentada, os cabelos desgrenhados e a camisa amarrotada. — Eu estava pensando em visitar meus pais. Eles moram na costa, lembra? Eu queria que você fosse comigo.
O convite pairou no ar, leve, mas carregado de uma gravidade invisível que Cael imediatamente sentiu. Seu corpo reagiu antes da mente: uma rigidez sutil, quase imperceptível, mas que Nathan, mesmo na exaustão, não deixou de perceber.
— O quê? — Nathan riu suavemente, tentando disfarçar a vulnerabilidade que surgia sempre que Cael hesitava diante de qualquer gesto mais íntimo. — Você andou lendo besteira na internet de novo?
Cael desviou o olhar, um pequeno vinco de desconforto surgindo entre suas sobrancelhas perfeitas.
A ideia de conhecer os pais de Nathan era… perturbadora. Não por eles em si — que eram, na sua mente ainda fantasiosa, apenas humanos comuns —, mas pelo que aquilo representava. Conhecer os pais era um passo que envolvia raízes, permanência, futuro. Palavras que soavam quase irreais para alguém cuja existência havia sido moldada para ser efêmera, descartável, sempre em função de outros.
Ele sabia como os humanos eram frágeis. Como o tempo era cruel com eles. E sabia, em um nível ainda mais profundo e indizível, que qualquer promessa de eternidade feita naquele momento seria apenas um sussurro contra a tempestade inevitável.
Ainda assim, o olhar de Nathan — cansado, mas cheio daquela esperança teimosa que sempre carregava — o desarmou de formas silenciosas. Havia algo na maneira como Nathan o incluía sem reservas — sem sequer questionar se Cael deveria ou poderia fazer parte daquele círculo íntimo — que o puxava, lenta e inevitavelmente, para fora de suas sombras.
— Eu… — Cael começou, a voz saindo mais baixa do que pretendia. — Eu vou.
Nathan sorriu — um sorriso genuíno, ainda que cansado — e estendeu a mão, tocando a ponta dos dedos de Cael como se selasse um pacto silencioso.
— Vamos ter alguns dias só nossos. Você vai gostar. — disse, e por um momento, o futuro parecia um território possível, ainda que nebuloso.
Cael não respondeu imediatamente. Em vez disso, deixou que seus olhos se fechassem por um breve instante, permitindo-se imaginar aquele futuro simples e humano — areia entre os dedos, o cheiro salgado do mar, risos ao vento — como se fossem cenas de uma vida que ele poderia, finalmente, reivindicar como sua.
Quando abriu os olhos novamente, encontrou Nathan já adormecido, a respiração lenta e profunda, os traços suavizados pela fadiga.
Cael se inclinou devagar, pousando um beijo silencioso na têmpora dele — um gesto pequeno, quase imperceptível, mas carregado de um significado imenso. Depois, acomodou-se ali, ao seu lado, deixando que o calor do corpo adormecido de Nathan dissipasse, mesmo que temporariamente, os medos que latejavam no fundo de sua consciência.
Afinal, o futuro sempre seria incerto — mas, por ora, Nathan estava ali.
E Cael também.
E isso bastava.
Por enquanto.
—–
Na manhã seguinte, a casa parecia embebida em uma luz pálida, como se o sol, ainda sonolento, hesitasse em atravessar as janelas. O ar carregava o frescor úmido das primeiras horas e, por um momento, o mundo parecia suspenso entre a vigília e o sonho.
Cael observava Nathan enquanto este se movia pela casa, arrastando uma mala meio velha, os cabelos ainda desgrenhados pelo sono, a camiseta larga caindo de um ombro. Havia algo de absurdamente humano naquela cena — tão corriqueira e, ao mesmo tempo, tão preciosa — que Cael se viu paralisado por alguns segundos, como se tentasse absorver cada detalhe para guardá-lo em algum lugar seguro dentro de si.
— Vai mesmo levar tanta coisa? — perguntou Cael, finalmente, inclinando a cabeça, a voz carregada de uma leve provocação.
Nathan bufou, agachando-se novamente para enfiar desajeitadamente uma pilha de roupas dentro da mala.
— Nunca se sabe do que vai precisar — respondeu, lançando-lhe um olhar breve e cúmplice. — E você? Já arrumou suas coisas?
Cael hesitou, olhando para a mochila pequena largada ao lado do sofá. Não precisava de muito — nunca precisou, na verdade. Sua existência inteira sempre coubera em espaços mínimos, entre ordens e expectativas alheias. A ideia de escolher o que levar — de escolher por si mesmo — ainda lhe parecia estranhamente nova.
Com passos preguiçosos, caminhou até a mochila e começou a colocar algumas roupas — gestos meticulosos, quase cerimoniosos. Nathan o observou de soslaio, sorrindo para si mesmo diante da maneira cuidadosa, quase reverente, com que Cael dobrava cada peça.
— Sabe que vamos ficar só alguns dias, né? — brincou, fechando sua própria mala com dificuldade.
— Eu sei — respondeu Cael, sem levantar os olhos, mas havia algo em sua voz — uma seriedade soterrada sob o habitual desinteresse — que não passou despercebida.
Quando enfim estavam prontos, deixaram a casa para trás, o ar da manhã batendo frio contra suas peles enquanto atravessavam a cidade em direção à estação de trem. O burburinho habitual das ruas parecia abafado naquela hora, como se o mundo ainda estivesse despertando em câmera lenta.
Na plataforma, Cael manteve-se próximo a Nathan, os olhos claros varrendo a multidão com uma atenção instintiva. Apesar de suas tentativas de agir normalmente, havia uma tensão sutil em seus ombros, como se cada fibra de seu corpo se mantivesse alerta, desconfiada.
Nathan percebeu, é claro. Mas, com a paciência que aprendera a cultivar ao lado dele, apenas deslizou a mão sobre a dele — um gesto simples, sólido — sem dizer nada. Cael aceitou o toque, seus dedos enlaçando os de Nathan com uma firmeza que dizia mais do que palavras poderiam.
O trem chegou envolto em uma nuvem de vapor e ruído metálico. Subiram juntos, encontrando seus assentos lado a lado, próximos à janela. Cael observou enquanto a cidade se desfazia atrás deles — prédios, ruas, postes — substituída lentamente por campos abertos e florestas que pareciam se estender até o horizonte.
O balanço suave do trem, o som ritmado das rodas sobre os trilhos, o calor discreto irradiado pelo corpo de Nathan ao seu lado — tudo conspirava para criar uma atmosfera quase hipnótica. Pela janela, o mundo passava em tons de verde, dourado e azul, emoldurado pela moldura envelhecida da cabine.
Nathan adormeceu rapidamente, a cabeça tombando para o lado, repousando no ombro de Cael. E, mais uma vez, Cael ficou parado, permitindo-se sentir o peso daquele momento — a confiança implícita, o calor, a realidade frágil e, ainda assim, incontestável do corpo de Nathan apoiado contra o seu.
Se fechasse os olhos, poderia quase acreditar que aquele era o seu lar.
O trem avançava, cortando a paisagem como uma linha de destino. E, em algum lugar dentro de Cael, uma semente de esperança — pequena, ainda frágil — começava a germinar. Talvez, pensou ele, pudesse realmente pertencer a algo, a alguém. Não como um instrumento. Não como uma criação defeituosa. Mas como ele mesmo.
Quando Nathan acordou, ainda sonolento, sorriu para Cael, e o mundo pareceu, por um instante, menos ameaçador.
— Estamos quase chegando — disse, esfregando os olhos. — Vai ser divertido, eu prometo.
Cael não respondeu de imediato. Olhou para fora, para o mar que começava a surgir ao longe — uma linha brilhante e interminável sob o céu aberto. Havia algo de simbólico naquele encontro com o oceano — vasto, impassível, cheio de mistérios e promessas.
Finalmente, virou-se para Nathan, e seu sorriso foi pequeno, quase tímido, mas genuíno.
— Eu confio em você.
E, pela primeira vez em muito tempo, ele sentiu que talvez fosse o bastante.
O trem começou a desacelerar, rangendo suavemente. A pequena cidade costeira se revelava aos poucos — ruas de pedras irregulares, casas baixas com telhados vermelhos, o cheiro salgado do mar impregnando o ar. Era um lugar feito de simplicidade e permanência, tão diferente dos cenários efêmeros que Cael conhecera.
Ao descerem do trem, o vento do oceano os envolveu como um lençol fresco, carregando promessas que Cael ainda não sabia se podia compreender inteiramente.
Mas ele estava ali. Com Nathan.
E, por ora, isso era o suficiente para seguir adiante.
—–
O táxi deixou-os em frente a uma casa térrea envolta por um jardim marinho, onde conchas enfileiradas dividiam espaço com pequenas pedras brancas e trechos de areia que pareciam colhidos diretamente da praia. A construção era simples, mas bem cuidada, tingida por aquele tom amarelado que o tempo deposita nas paredes com ternura. O som distante das ondas misturava-se ao canto dos pássaros, e o ar, saturado de sal e vento, trazia consigo uma sensação de permanência.
Cael parou um instante antes de seguir Nathan pelo caminho de pedras. Observou os detalhes com uma precisão quase inconsciente — o portão levemente empenado, a pequena escultura de madeira pendurada ao lado da porta, um peixe esculpido com traços infantis. Tudo ali era profundamente humano. E ele, por mais que tentasse se convencer do contrário, ainda era algo à parte.
Nathan olhou por cima do ombro, sorrindo de maneira serena, quase protetora.
— Eles vão gostar de você — disse, e não soou como uma esperança, mas como um fato já consolidado.
Cael não respondeu. Apenas assentiu com a cabeça, escondendo o tumulto de pensamentos que se desenrolavam em silêncio por trás do olhar calmo. Não era medo. Era o tipo de desconforto que se origina quando se é confrontado com aquilo que não se pode possuir: pertencimento, raízes, uma história que não se escreveu sozinho.
A porta se abriu antes que pudessem bater. A mulher que surgiu parecia ter saído de uma fotografia antiga — cabelos grisalhos presos em um coque frouxo, olhos claros que brilhavam com familiaridade e uma expressão calorosa que imediatamente se suavizou ao ver Nathan. Ela envolveu o filho em um abraço apertado, o tipo de gesto que carrega uma vida inteira de afeto silencioso.
— Finalmente! — disse, apertando as bochechas de Nathan como se ele ainda tivesse dez anos. — Eu estava começando a achar que você tinha esquecido da sua mãe.
— Nunca — respondeu Nathan, rindo, e então se virou para apresentar Cael. — Mãe, esse é o Cael.
Houve um pequeno silêncio, não hostil, mas carregado de uma atenção súbita. Os olhos da mulher pousaram em Cael com uma curiosidade cuidadosa, quase estudiosa, como se tentasse vê-lo para além da aparência. Então ela estendeu a mão e sorriu.
— É um prazer conhecê-lo. Sou Marianne.
Cael apertou a mão dela, sua voz baixa e educada.
— O prazer é meu, senhora.
Ela riu com delicadeza.
— Ah, não precisa dessa formalidade toda. “Marianne” está ótimo.
Entraram juntos, e Cael foi tomado por uma sensação peculiar: ali dentro, o tempo parecia desacelerar. O interior da casa era preenchido por pequenos detalhes afetivos — fotografias em molduras de madeira, livros empilhados ao lado do sofá, lembranças de viagens dispostas com despretensão nas prateleiras. Não havia luxo ali, mas havia calor, história, uma espécie de paz que não se podia forjar artificialmente.
Marianne os guiou até a cozinha, onde o cheiro de pão recém-assado pairava no ar como uma promessa. Um homem alto, de semblante calmo e óculos sobre o nariz, ergueu-se de uma cadeira com um sorriso discreto.
— Então esse é o Cael? — disse ele, a voz pausada, gentil. — Nathan fala bastante sobre você.
— Isso me preocupa — murmurou Cael, em tom tão seco quanto bem-humorado.
O pai de Nathan riu, e Nathan apenas revirou os olhos antes de puxar Cael levemente pelo braço para que se sentassem.
—–
O jantar prosseguiu sob o som constante dos talheres e o aroma sutil do vinho que Marianne servira com certo orgulho — afirmando que não era dos caros, mas sabia enganar bem. A conversa fluía entre trivialidades e memórias familiares — pequenas histórias da juventude de Nathan, contadas por Marianne e complementadas com risos contidos pelo pai, que ora observava com olhos nostálgicos, ora interferia com comentários mais céticos.
Cael, sentado ao lado de Nathan, mantinha um sorriso educado, mas seus olhos, sempre atentos, varriam a mesa com a precisão de alguém habituado a identificar perigos disfarçados em cortesias. Não estava em território inimigo, mas tampouco sentia-se exatamente seguro.
— E você, Cael? — começou Marianne, com um tom leve e curioso. — Trabalha com o quê?
A pergunta parecia simples, lançada como uma ponte de boas intenções entre desconhecidos. Mas Cael congelou — ainda que apenas por um instante. Um segundo imperceptível, em que seu olhar permaneceu sereno, enquanto a mente vasculhava territórios velados — não em busca de uma mentira, mas de algo que pudesse se aproximar da verdade sem tocá-la por completo.
Trabalho?
Durante tanto tempo, seu “ofício” fora sobreviver à margem da humanidade — cultivando uma presença cuidadosamente construída em uma conta privada, onde vendia fragmentos do próprio corpo em vídeos e imagens. Quando não era isso, era a vida nos sites de relacionamento, encontros pagos, corpos desconhecidos onde se alimentava e performava o que se esperava de alguém como ele. Tudo velado sob pseudônimos e convites discretos. Aquilo lhe rendia dinheiro — suficiente para viver com uma autonomia que, mesmo artificial, ainda era sua.
Mas, desde que conhecera Nathan, tudo mudara. Encerrar aquilo não fora um sacrifício — fora quase um alívio. Aquela existência, sustentada no desejo alheio, deixava um gosto amargo demais. Ele apenas… parou. E nunca pensara em criar outra fachada.
— Eu… — começou, mas a voz soou incerta.
Nathan interferiu com naturalidade, preenchendo a lacuna antes que se tornasse visível.
— Ele tá fazendo um tempo sabático, na verdade — disse, erguendo os ombros de forma despreocupada. — Trabalhou por um tempo com restauração de arte antiga, principalmente manuscritos e itens históricos. Mas queria uma pausa e, bom… acabou ficando por aqui.
— Ah! Que interessante — respondeu o pai, acenando com um ar quase impressionado.
— Sim — disse Cael, agarrando-se à explicação como se ela sempre existisse. — Eu… sempre fui fascinado por registros antigos. É uma forma de entender as pessoas, eu acho.
— E sua família? — perguntou Marianne, agora com mais suavidade. — Eles também são da área artística?
Cael olhou para o prato.
Família. Um conceito que ele só compreendia por observação.
— Eles… não estão mais por perto — disse, por fim, a voz baixa, sem forçar emoção alguma. A verdade era sempre mais segura quando envolta em silêncio.
Nathan pousou a mão levemente sobre a dele, por debaixo da mesa — um gesto tão breve quanto carregado.
— É uma história complicada — completou, e os olhos de sua mãe se estreitaram por um instante, como se guardasse aquilo mentalmente.
— Imagino que sim — respondeu ela, com uma gentileza que beirava a pena, mas que logo foi dissolvida pelo tom reconfortante. — Nem sempre a vida é feita de raízes. Às vezes, é preciso criar as próprias.
O jantar seguiu, mas o desconforto não se dissipou por completo. Cael permaneceu calado, atento, revivendo cada pergunta como se estivesse tentando reconstruir-se por dentro. Não havia se preparado para aquilo — para ser “alguém” no mundo de Nathan. E o modo como Nathan desviara das perguntas com tanta facilidade lhe despertava uma sensação ambígua: gratidão, sim, mas também algo mais profundo e incômodo — como se estivesse sendo esculpido por mãos que ele não controlava.
Quando terminaram, Nathan se levantou com o pai para uma habitual caminhada depois de uma refeição. O som distante das ondas trazia consigo uma calma que contrastava com o que pairava por trás das palavras não ditas.
Antes de sair, Marianne o chamou suavemente:
— Nathan.
Ele se virou, curioso.
— Sim?
Ela se aproximou devagar, o toque em seu braço sendo simultaneamente delicado e firme. Seus olhos, embora ainda gentis, estavam atentos, investigativos.
— Você mentiu. Sobre algumas coisas. Eu sei.
Nathan suspirou — um suspiro que não era de surpresa, mas de cansaço. O tipo de cansaço que vem de carregar algo grande por muito tempo.
— Eu sei que sabe.
— Por quê? — perguntou ela, com uma dor sutil atravessando as palavras. — Você nunca mentiu pra mim antes. Nunca precisou.
Ele hesitou. E então sorriu — um daqueles sorrisos que só filhos sabem dar às mães: meio tristes, meio protetores, e completamente impossíveis de traduzir.
— Porque é complicado. Porque… não se trata só de mim.
Marianne não respondeu logo. Seus olhos estudaram o rosto do filho, buscando nele sinais de algo mais perigoso — um sofrimento escondido, talvez uma manipulação. Mas o que encontrou ali foi uma certeza silenciosa, uma escolha sólida.
— Está se protegendo… ou protegendo ele?
Nathan desviou o olhar para a janela, onde a noite começava a tomar o céu e o som do mar era apenas um sussurro ao fundo.
— Os dois — respondeu, por fim.
A mãe manteve o silêncio por um momento mais longo. Então, como se algo em seu interior aceitasse o que não podia ser explicado, assentiu levemente.
— Ele está em alguma encrenca, Nathan? — murmurou. — Não precisa me dizer tudo… só me diga se ele está bem.
O filho hesitou.
— Ele é órfão, mãe. Nunca conheceu os pais. Viveu por conta própria a vida inteira. Então, às vezes, ele é um pouco estranho, sim. Ele não confia fácil nas pessoas… e tem os motivos dele.
Os olhos de Marianne suavizaram, mas não perderam a gravidade.
— Não é isso que me assusta. O que me assusta é… o quanto ele tenta não parecer. O quanto ele tenta ser perfeito pra mim. Como se temesse que, se falhar uma vez, eu vá embora.
Marianne tocou o rosto do filho com delicadeza, a ponta dos dedos fria contra a pele quente.
— Então faça com que ele saiba que não vai — disse ela. — E esteja pronto pro dia em que ele começar a acreditar nisso.
Nathan assentiu, apertando os olhos como quem precisava conter uma emoção maior. Porque, no fundo, ele sabia: Cael não era só um passado cheio de feridas — era um futuro cheio de riscos.
E, mesmo assim, ele escolheria aquele futuro. Todos os dias.
Quando Nathan saiu para caminhar com o pai, deixando Cael e Marianne a sós na cozinha, a mulher recolhia os pratos com gestos tranquilos, e Cael, após um breve momento de hesitação, começou a secar as louças.
— Ele parece feliz — disse Marianne, após algum tempo. — Isso é o que importa pra mim.
Cael assentiu, enxugando uma taça com lentidão.
— Eu quero que ele seja feliz… mesmo que isso não dure para sempre.
Ela o olhou de soslaio, os olhos apertados em uma linha quase melancólica.
— Nenhuma felicidade dura para sempre. Mas isso não significa que não valha a pena.
Silêncio. Apenas o som da água e do pano contra o vidro. E então, ela completou:
— Às vezes, os momentos são tudo o que temos. E às vezes, são o bastante.
Cael sentiu algo apertar no peito — não dor, exatamente, mas uma consciência sutil e cortante do quanto aquilo era verdade. Ele pensou em Arael, em todas as promessas veladas, em sua própria natureza como criatura feita para consumir e obedecer. E pensou em Nathan, deitado ao seu lado em noites calmas, os dedos entrelaçados no escuro.
Sim. Talvez momentos fossem o bastante.
E, se não fossem… ele ainda lutaria para que fossem.
—–
O sol filtrava-se pelas cortinas com uma timidez dourada, tingindo o quarto com tons suaves de âmbar e areia. A brisa que entrava pela janela entreaberta trazia o cheiro salgado do mar e o murmúrio das ondas quebrando ao longe, como uma cantiga antiga entoada por um mundo que sempre estivera ali — indiferente e eterno.
Cael abriu os olhos devagar, acostumando-se ao calor morno da luz sobre os lençóis, ao som suave da respiração de Nathan, ainda adormecido ao seu lado.
Havia algo sagrado naquele instante suspenso — uma quietude que ele não reconhecia do passado, mas que começava a compreender como uma espécie de paz. Deitou-se por mais alguns minutos, observando o perfil de Nathan, traçado pela luz com tanta precisão que parecia feito à mão. O contorno do nariz, o modo como os cílios projetavam sombras sutis sobre as bochechas… Era estranho o quanto ele parecia humano. Frágil. Amável.
Quando Nathan se mexeu, espreguiçando-se com um murmúrio abafado, Cael desviou o olhar para a janela, onde o azul do céu se dissolvia em branco nas bordas do horizonte.
— Que horas são? — perguntou Nathan, a voz ainda rouca de sono.
— Pouco depois das oito — respondeu Cael, em tom baixo.
Nathan se virou para ele, os olhos meio fechados, mas já sorrindo.
— Dormiu bem?
— Dormi. — Houve uma pausa. — Acho que sim.
Nathan o estudou por um instante, notando a hesitação, mas não insistiu. Em vez disso, estendeu a mão e tocou o rosto de Cael com a ponta dos dedos, traçando-lhe a linha do maxilar com um carinho despretensioso.
— Quer dar uma volta pela praia antes do café?
Cael hesitou. Nunca havia visto o mar de perto. Apenas o ouvira em gravações ou o observara em imagens — belíssimo, mas sempre distante, como tudo que pertencia a esse mundo no qual ele ainda não sabia se cabia. Mas agora, com Nathan ali, oferecendo-lhe aquele momento como se fosse uma dádiva simples… talvez fosse a hora.
— Quero — disse, e a resposta soou mais certa do que ele esperava.
—–
Os dois caminharam em silêncio até o fim do jardim, onde um pequeno portão de madeira dava acesso a uma trilha de areia e grama seca. O som do mar tornava-se mais nítido a cada passo, como se a terra estivesse abrindo espaço para o encontro.
Quando Cael finalmente vislumbrou a praia — ampla, deserta, com ondas quebrando em fileiras que avançavam e recuavam como respiração viva —, parou por instinto.
O mar era… imenso.
Não apenas grande. Imenso de uma forma que fazia o corpo parecer menor do que nunca, como se tudo que ele fosse pudesse caber numa concha. As cores — azuis fundindo-se em verdes, o brilho espelhado da água sob o sol — doíam nos olhos pela beleza crua. O sal no ar, o barulho constante, o vento que bagunçava seus cabelos e carregava partículas de areia fina… Era como se a natureza, por um instante, gritasse — mas não para assustar. Para lembrar que ele estava ali. Que existia.
Nathan não disse nada. Apenas observou Cael com um olhar quieto, respeitoso. Sabia que aquilo significava mais do que poderia ser dito em voz alta.
Cael caminhou devagar até a beira da água. Tirou os sapatos e sentiu a areia fria sob os pés, depois morna, onde o sol já tocava. Quando as ondas o alcançaram, seus tornozelos se contraíram com o choque do frio. Mas não recuou. Ao contrário, fechou os olhos e respirou fundo.
Era salgado. Vivo. Real.
— Nunca estive tão perto — murmurou, com a voz quase engolida pelo vento. — Do mar.
Nathan sorriu de onde estava, os braços cruzados enquanto o observava.
— É mais bonito de perto, né?
Cael assentiu, ainda com os olhos fechados.
— É mais… forte. Como se pudesse engolir tudo.
Nathan caminhou até ele e parou ao seu lado.
— Mas não engole. Só abraça.
Cael virou-se, os olhos claros fixando-se nos dele, e por um momento pareceu que queria dizer algo mais. E disse.
— Sobre ontem… — começou, a voz mais baixa. — Eu… não fui muito bom com as perguntas da sua mãe.
Nathan ergueu uma sobrancelha, mas não respondeu de imediato. Cael continuou:
— Eu deveria ter me preparado. Não pensei que… fosse me sentir tão… — ele procurou a palavra certa — …exposto.
Nathan soltou um suspiro leve — não de irritação, mas de compreensão.
— Eu também não pensei nisso — admitiu. — Não achei que seria um problema. Quis tanto te trazer comigo que esqueci que… talvez você ainda esteja aprendendo a estar aqui.
Cael abaixou os olhos, a brisa empurrando uma mecha de cabelo contra seu rosto.
— Eu só… não quero que eles pensem que sou um problema.
— Você não é um problema, Cael. — A resposta veio firme, sem hesitação. — E se fosse, ainda assim seria meu. Isso basta pra mim.
O silêncio que se seguiu não era desconfortável. Era cheio de coisas que não precisavam ser ditas. Cael inclinou a cabeça até encostar no ombro de Nathan. Não sabia como agradecer por aquilo — não com palavras, ao menos. Mas havia um peso que se dissolvia lentamente dentro de si. Um tipo de liberdade nova, estranha, como se, enfim, pudesse existir sem se justificar o tempo todo.
Depois de alguns minutos em silêncio, Nathan falou com um tom brincalhão, embora ainda carregado de ternura:
— Se quiser mergulhar, eu seguro sua mão.
Cael sorriu de lado, sem abrir os olhos.
— E se eu me afogar?
— Então eu pulo atrás. Mesmo que não saiba nadar.
— Isso seria estúpido.
— Seria amor.
Cael soltou uma risada contida, a primeira do dia, e o mar pareceu rir com ele.
E assim ficaram — os pés na água, os olhos no horizonte. Pela primeira vez em muito tempo, Cael não pensava no que viera antes. Nem no que ainda viria.
Apenas… sentia. E isso era novo. Isso era tudo.
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Doce Inanição
Nathan jamais esperou encontrar o amor na forma de um íncubo. Muito menos descobrir que ele tinha um lado doce, um senso de humor duvidoso e uma tendência incorrigível a usar lingerie como forma...