Capítulo 2
O espelho devolvia a imagem com a precisão cruel da luz branca: Cael, em jeans apertados e uma camiseta de tecido fino, quase transparente sob certas inclinações. A gola larga deslizava, negligente, sobre um ombro, revelando pele macia.
A roupa fora escolhida pelo homem. Um capricho comum naquele aplicativo que Cael frequentava com a mesma emoção de quem lê um cardápio: fome, necessidade, estratégia.
A escolha dizia muito. Os mais ansiosos pediam nudez disfarçada de casualidade. Os mais inseguros preferiam roupas românticas, como se quisessem fingir que era amor.
Este — Marcus, segundo o nome que usava — queria algo no meio: algo que fosse fácil de rasgar depois, mas que parecesse um presente a ser desembrulhado.
Cael suspirou, ajeitando a gola com os dedos, o gesto carregado de uma preguiça estudada.
Ele odiava encontros.
Odiá-los era, aliás, um luxo que se permitia silenciosamente: odiava o fingimento, o pequeno teatro social, as perguntas vazias, os sorrisos ensaiados.
Mas precisava. Era mais fácil — e mais seguro — quando se escolhiam parceiros que respeitavam o ritual: um encontro rápido, palavras mínimas, desejo expresso sem floreios. Consumo puro.
E ainda assim, de tempos em tempos, errava no cálculo.
—–
O bar escolhido era mais escuro do que elegante, com as paredes forradas de garrafas que brilhavam como pequenas promessas sob a luz âmbar. O cheiro de álcool, couro velho e perfume barato saturava o ar, criando uma atmosfera viscosa, quase pegajosa sobre a pele.
Marcus já o esperava, encostado no balcão, sorrindo como quem acredita possuir alguma vantagem.
Era bonito — admitiu Cael num pensamento ocioso. Cabelos bem cortados, barba desenhada com precisão clínica, olhos atentos demais.
O tipo de homem que gastava horas tentando parecer casual.
— Você veio perfeito — disse ele, a voz grossa, carregada de expectativa. Seus olhos percorreram Cael com uma lentidão quase palpável, como mãos invisíveis. — A roupa ficou melhor do que eu imaginei.
Cael sorriu — um sorriso que aprendera a calibrar: suficiente para agradar, nunca o bastante para se comprometer.
— Fico feliz em corresponder — disse, a voz aveludada, deslizando pelo ar entre eles como fumaça.
Não ficou.
Não queria estar ali.
Queria já estar depois: no momento em que os corpos se tocassem, em que pudesse se alimentar e dissolver aquela fome constante que zumbia sob sua pele.
Mas Marcus queria brincar antes. Queria cortejar.
Ofereceu-lhe um copo de uísque e propôs uma conversa — banalidades sobre trabalho, hobbies inventados, elogios vagos que escorriam como mel morno.
Cael jogava o jogo. Era bom nisso.
Apoiado no balcão, inclinava-se na medida certa, tocava o braço do homem em intervalos quase imperceptíveis, ria baixo quando apropriado. Seus olhos heterocromáticos — verdes e cortantes — pareciam ouvir mais do que suas palavras.
Era fácil. Tão fácil que doía.
Ainda assim, havia um tédio latente em cada gesto.
A bebida era a única coisa genuinamente prazerosa — o álcool espalhando calor pelas veias, afrouxando os limites do corpo, tornando o fingimento mais suportável.
Marcus não percebia. Homens assim nunca percebiam.
Confundiam a performance com interesse real. Misturavam desejo com conquista.
— Queria te ver antes de… — disse Marcus, inclinando-se mais perto, o hálito quente e pesado. — Antes de fazermos o que viemos fazer.
— Curioso — respondeu Cael, rodando o copo entre os dedos longos —, a maioria prefere não ver demais.
Marcus riu, como se aquilo fosse uma piada.
Cael apenas sorriu, sem corrigir.
O tempo esticava-se em torno deles, denso como mel derramado. As luzes do bar pintavam manchas douradas nas maçãs do rosto de Cael, transformando-o em algo quase etéreo — uma visão, uma miragem feita de promessas quebradas.
Por dentro, sentia o zumbido constante da fome — não urgência, não desespero, mas a fome calma e elegante de quem sabe que terá o que quer, cedo ou tarde.
—–
Quando Marcus finalmente sugeriu irem para um lugar mais privado, Cael permitiu que a sugestão parecesse dele, ainda que tudo já estivesse meticulosamente planejado. A noite estava fria quando saíram, e a rua pulsava sob seus pés como se respirasse um hálito sombrio. As luzes espalhadas refletiam nas poças de chuva, criando ilusões de profundidade.
Cael caminhava ao lado de Marcus, sem jamais tocá-lo, os passos leves e autossuficientes — como se o chão lhe pertencesse, mas o mundo, não.
O hotel fora escolhido por Cael. Anônimo, mas elegante, feito para encontros que começavam e terminavam sem rastros. A recepção mal levantou os olhos quando entraram; era esse tipo de lugar. No elevador, sob o zumbido suave dos cabos se movendo, Marcus puxou-o para um beijo.
Cael permitiu, os lábios se moldando aos do homem com uma doçura estudada — cálida, porém desprovida de verdadeira necessidade. No intervalo entre o beijo e o próximo andar, Cael murmurou contra a boca de Marcus, a voz baixa, embriagada de promessas não ditas:
— Costumo gravar vídeos com meus parceiros… Para postar em meus perfis privados. Seu rosto não apareceria, se isso te preocupa.
Marcus hesitou apenas o suficiente para trair seu próprio desejo, antes de sorrir com malícia.
— Por mim, tudo bem — respondeu, puxando Cael ainda mais para si.
Cael sorriu, um brilho astuto percorrendo seus olhos esmeralda.
— Ótimo. Então vai poder aproveitar um pequeno privilégio — disse ele, a voz escorrendo preguiçosamente pela nuca de Marcus. — Assim como escolheu minhas roupas esta noite, pode escolher também o que vou usar durante a gravação.
O tilintar do elevador anunciando o andar chegou como uma pontuação sutil ao convite.
O quarto, quando entraram, exalava o perfume neutro de limpeza industrial, misturado ao leve odor metálico do ar-condicionado. A cama — lençóis brancos impecáveis — parecia aguardá-los em expectação muda.
Cael deslizou para o banheiro antes que Marcus pudesse agarrá-lo de novo, lançando um olhar provocante por sobre o ombro. A porta fechou-se com um clique suave.
Lá dentro, sob a luz fria, Cael abriu a pequena bolsa que trazia e retirou a roupa escolhida: uma peça de lingerie preta, de tecido translúcido e cortes estratégicos, que mais sugeria do que cobria.
O tecido abraçava sua pele pálida como uma segunda camada de desejo. Havia algo quase ritualístico em vestir-se para ser consumido.
Ele se observou por um instante no espelho, ajustando as alças finas com dedos delicados.
Era belo.
E era uma mentira.
Mas que importância isso tinha, quando a mentira era tudo o que os outros queriam?
Quando Cael saiu do banheiro, o silêncio no quarto era espesso como veludo.
Trazia nas mãos um tripé dobrado e o celular, que pendia com familiaridade entre seus dedos.
Marcus estava sentado à beira da cama, mãos apoiadas nos joelhos, os olhos arregalados ao vê-lo.
Por um instante, tudo parou — um silêncio carregado, onde cada respiração parecia carregar o peso de promessas não ditas.
O olhar de Marcus percorreu Cael com avidez, absorvendo cada detalhe: o tecido quase inexistente da lingerie, as linhas que delineavam o corpo com intenção, o brilho indecente nos olhos de Cael.
— Você é ainda mais deslumbrante do que eu imaginava — disse Marcus, a voz rouca, embargada de desejo.
Cael sorriu — um gesto lento e hipnotizante — enquanto fechava a porta com um movimento que parecia parte de sua natureza.
Caminhou até o centro do quarto como uma maré silenciosa, inevitável, deixando-se consumir pelo olhar faminto do homem.
Marcus não conseguiu se conter por muito tempo.
Levantou-se num impulso tenso, mãos já se estendendo para tocar aquele corpo que parecia feito sob medida para a tentação.
Ao roçarem a pele quente de Cael, o íncubo se inclinou para a frente, oferecendo-se à carícia como uma dádiva viva — ainda que mantendo, em cada gesto, o domínio invisível da situação.
O quarto se enchia de calor — uma névoa densa, carregada de eletricidade.
O ar estava impregnado pelo cheiro cru do desejo, da antecipação.
Cael se afastou apenas o suficiente para montar o tripé diante da cama. Posicionou o celular com precisão calculada. A lente encarava o espaço como um olho silencioso, prestes a registrar cada momento.
Então, ele se virou, estendendo a mão para Marcus com um sorriso que era convite e comando.
Guiou-o até a cama e o fez sentar-se. Só então retornou à câmera, ajustando o ângulo — tudo perfeitamente enquadrado.
Cael subiu na cama atrás dele. O íncubo envolveu Marcus com os braços, os dedos deslizando lentamente por seu peito. Seu toque era elétrico, cada carícia despertando arrepios que percorriam a espinha de Marcus. Com calma, Cael começou a desabotoar sua camisa. O tecido deslizou pelos ombros, revelando a pele quente e macia. As mãos de Cael desceram, provocando o cós da calça antes de abrir o zíper com habilidade silenciosa.
Os dedos roçaram o pênis semi-ereto de Marcus, arrancando-lhe um gemido baixo e involuntário. Ele apertou de leve, sentindo o calor pulsante e o enrijecimento crescente enquanto o acariciava. A respiração de Marcus acelerou, o corpo se curvando em resposta ao prazer crescente.
Cael puxou seus ombros para trás com firmeza, enquanto se movia sobre ele. Marcus se deitou sob seu corpo, entregue à tensão que se acumulava no ar.
O íncubo se posicionou entre suas pernas, abaixando-se até que os lábios se abriram ao redor do pênis de Marcus. Sua língua circulava a ponta com maestria. Marcus arqueou os quadris, soltando um gemido quando a boca de Cael o envolveu completamente, quente e precisa.
Cada movimento da língua era calculado, enviando ondas de prazer que se espalhavam pelo corpo de Marcus como eletricidade líquida. Ele sentia-se crescendo a cada segundo dentro daquela boca ávida. O brilho do piercing de Cael capturou seu olhar — a pequena joia reluzente no centro do prazer.
Marcus puxou a calcinha de Cael para o lado, revelando sua intimidade molhada, e quando o piercing se soltou, ele mordeu de leve a joia com os dentes, provocando um arrepio imediato.
Cael gemeu ao redor do pênis de Marcus, a vibração o atingindo como uma descarga direta ao centro do corpo. Marcus deslizou os dedos para dentro da vagina de Cael, sentindo o calor e a umidade recebê-lo. Cael se movia por instinto, rebolando contra a mão dele, o corpo inteiro entregue à sensação.
Os dedos de Marcus se curvaram dentro dele, encontrando aquele ponto preciso que arrancava tremores profundos do íncubo. Os gemidos de Cael vibravam em sua boca, e a dupla sensação empurrava ambos para os limites do controle. Os movimentos de Marcus se tornaram mais intensos, os dedos e a boca de Cael em perfeita sintonia.
As mãos de Cael cravaram-se nas coxas de Marcus, as unhas fincando na pele enquanto se aprofundava. Ele sentia o pênis latejar em sua boca, o gosto do pré-sêmen espalhando-se em sua língua. Seu corpo inteiro tremia de desejo, à beira de explodir.
A língua deslizou ao longo da parte inferior do pênis, na região mais sensível. Marcus estremeceu, o corpo dando os sinais inequívocos da aproximação do orgasmo.
Cael então tirou o pênis da boca com um estalo úmido, e com um gesto final, deu uma última lambida lenta antes de parar.
Num movimento seguro, montou sobre Marcus com domínio absoluto. Posicionou-se com precisão — a câmera captando a imagem perfeita: o pau ereto dele, a bunda arqueada de Cael, sua boceta úmida e reluzente prestes a engoli-lo.
Inclinou-se para frente, os lábios roçando nos de Marcus, que o recebeu com as mãos — ávidas, mas surpreendentemente delicadas.
Marcus puxou o corpete para baixo, expondo o peito de Cael. Seus olhos demoraram-se nos piercings que cintilavam sob a luz suave.
— Lindo — murmurou, os dedos tocando a joia com reverência, puxando-a suavemente. Cael inspirou com força, o gesto provocando um arrepio que percorreu todo o seu corpo.
— Você está pronto?
Marcus assentiu, as mãos apertando os quadris de Cael quando ele começou a se mover, lentamente, deixando que a ponta de seu pênis provocasse a entrada.
Cael afundou-se com lentidão torturante, centímetro por centímetro, até que o homem estivesse totalmente dentro de si. A sensação era deliciosa, o pau dele abrindo espaço com firmeza, preenchendo-o por completo.
Começou a cavalgar num ritmo ritmado e hipnótico, quadris ondulando com intenção. Marcus voltou aos piercings nos mamilos, puxando e torcendo, arrancando ondas de prazer que reverberavam por todo o corpo de Cael.
— Você é incrível — gemeu Marcus, agarrando-lhe a bunda com força, incentivando-o a se mover mais, mais fundo.
Os gemidos de Cael preenchiam o quarto, se misturando ao som úmido e ritmado de seus corpos em colisão.
O calor aumentava, selvagem, indomável.
As mãos de Marcus exploravam cada curva, cada centímetro marcado pela excitação.
— Tão lindo… — murmurou ele, com um olhar embriagado.
Cael ofegava, o corpo tremendo à beira da explosão.
Inclinou-se para frente, os lábios quase tocando os de Marcus.
— Me faça gozar — sussurrou, um pedido carregado de urgência.
Marcus atendeu sem hesitar, estocando com força renovada. Cada investida atingia fundo, direto naquele ponto sensível que fazia a visão de Cael se turvar.
Marcus levantou os quadris, afundando-se mais, buscando o limite do prazer. Cael jogou a cabeça para trás, um grito entrecortado escapando de seus lábios enquanto seu corpo se contraía ao redor dele.
— Tô quase… — rosnou Marcus, as mãos apertando com mais força, os quadris investindo com brutal intensidade.
O orgasmo veio como uma onda arrebatadora.
O corpo de Cael convulsionava, gemidos altos enchendo o espaço. Marcus gozou logo em seguida, derramando-se dentro dele com força, a sensação profunda e crua.
Cael estremeceu enquanto cavalgava as últimas ondas do prazer, até que tudo se aquietasse.
Então, desabou sobre o peito de Marcus, seus corpos colados, corações batendo em descompasso harmônico.
O ar estava espesso, carregado do aroma de sexo e calor.
Cael abriu os olhos.
Um sorriso preguiçoso, malicioso, desenhou-se em seus lábios.
— Você foi incrível — ronronou, a voz baixa, cheia de satisfação.
Marcus riu, as mãos afagando-lhe os cabelos.
— Você é incrível — devolveu, com olhos brilhando. — Nunca senti nada assim.
O sorriso de Cael se ampliou.
Inclinou-se novamente, os lábios roçando a orelha de Marcus, sua voz escorrendo como mel quente.
— Fica por aqui. Vou te mostrar coisas que você só ousou sonhar.
—–
Nos dias que se seguiram, a rotina de Nathan tornou-se um teatro de pequenas surpresas — como se, cada vez que abrisse a porta de casa, o universo decidisse brincar com a ideia do absurdo cotidiano. E o centro dessa confusão tênue entre o bizarro e o encantador era sempre Cael.
A presença dele transformou-se numa constante improvável — um evento extraordinário inserido na banalidade do dia a dia. Não havia padrão, nem aviso. Às vezes, Nathan chegava em casa e encontrava o apartamento tomado pelo aroma adocicado de incenso e canela, que Cael deixava por onde passava como um traço involuntário de sua natureza. Outras vezes, era o silêncio absoluto que o recebia, quebrado apenas pelo som baixo de músicas antigas tocando em algum dispositivo que Nathan nem sabia possuir.
Em um desses dias, Nathan chegou exausto da faculdade e o encontrou dormindo no sofá, enrolado no seu cobertor favorito — a cauda pendendo até o carpete e os chifres suaves, brilhosos sob a luz tênue da televisão ligada em um canal de culinária. A cena teria sido pacífica, quase tocante, se Cael não estivesse murmurando nomes de pratos em línguas extintas enquanto dormia. Nathan apenas suspirou e desligou a TV, tentando não pensar demais no fato de que um demônio estava, literalmente, sonhando com comida.
Cael estava sempre em lugares diferentes, em estados diferentes.
Às vezes vestia roupas de Nathan — camisas largas demais, meias coloridas trocadas — e, às vezes, estava simplesmente… nu, como se a ideia de decência fosse um conceito vago pertencente a outra espécie.
Certa vez, Cael estava sentado no chão da cozinha, cercado por livros de feitiços antigos e potes de temperos que, com toda certeza, não haviam sido comprados em nenhum mercado humano. Ele não percebeu Nathan entrando, tão concentrado estava em misturar algo numa tigela que exalava uma fumaça cor-de-rosa. Nathan o observou por um longo segundo e depois virou-se lentamente para sair, sussurrando:
— Vou fingir que não vi — antes de trancar-se no quarto com seu café gelado.
Cael comia como se fosse a primeira refeição em dias, espalhava objetos esotéricos pela mesa de jantar, escrevia símbolos com caligrafia de séculos passados em post-its coloridos que colava na geladeira. E dormia. Dormia muito. Como se seu corpo se rebelasse contra o tempo perdido. Em certos momentos, Nathan o encontrava adormecido com os membros entrelaçados nos lençóis, os chifres visíveis, as asas levemente expandidas — vulnerável de uma maneira que não condizia com a natureza que dizia possuir.
Em outro dia, Nathan encontrou Cael em frente ao espelho do corredor, experimentando seus óculos. Os chifres atrapalhavam, é claro, mas o íncubo parecia fascinado com o próprio reflexo, testando expressões humanas com um zelo quase estudioso. Nathan o observou em silêncio, até que Cael notou sua presença e apenas piscou, teatral. Nathan deu meia-volta antes que fosse envolvido numa dissertação sobre a estética da fragilidade humana.
Mas foi em um dia específico que Nathan abriu a porta e parou na soleira, sem conseguir processar de imediato o que via.
Cael estava de pé no centro da sala, com o corpo inclinado enquanto lia algo no notebook equilibrado sobre a mesa de centro. Nada fora do comum, exceto pelo detalhe de estar vestindo apenas uma cueca boxer preta. A cueca de Nathan. O elástico com a marca ainda visível, um pouco largo para o quadril mais estreito do íncubo, mas justo o bastante para provocar um caos silencioso no cérebro de quem o visse.
Nathan ficou ali por um instante eterno, tentando encontrar palavras que fizessem sentido, mas sua mente estava ocupada demais tentando não pensar em como Cael fazia até a mais banal das peças de roupa parecer indecentemente sensual.
Cael, ao notar sua presença, virou-se com naturalidade, sem o menor traço de culpa. Os chifres estavam levemente curvados para trás, o cabelo desgrenhado de sono, os olhos cintilando com aquela familiar mistura de travessura e algo mais suave, quase… doméstico.
E, antes que qualquer explicação fosse exigida, ele apenas sorriu — como se vestir-se com a roupa íntima de outro fosse algo perfeitamente razoável.
A estranheza se diluía lentamente na rotina, como uma gota de tinta escura em água morna. Com o passar dos dias, Nathan parou de se assustar com os detalhes. Já não se incomodava ao ver Cael no espelho atrás de si, preparando chá com os olhos semicerrados. Nem quando encontrava frutas exóticas no balcão — impossíveis de identificar, doces e quentes como carne fresca.
Havia algo de reconfortante naquilo tudo. Uma anomalia constante. Como um sonho que não terminava ao acordar, mas também não se tornava pesadelo.
—–
Nathan entrou no apartamento com a chave girando, como de costume, os fones ainda nos ouvidos, distraído por alguma playlist e pensamentos desconexos sobre a aula. Tirou os sapatos na entrada com um chute displicente e só percebeu algo estranho quando sentiu o cheiro.
Não era ruim. Muito pelo contrário. Era aquela mistura inebriante e morna que agora ele associava exclusivamente a Cael — um aroma de incenso caro, umidade e algo perigosamente doce. Algo que ficava preso no ar e também no corpo.
— Não — murmurou Nathan para si mesmo, franzindo o cenho. — Ele não tá aqui de novo.
Virou o corredor e… lá estava ele.
No sofá, de pernas cruzadas, vestindo um moletom velho de alguma banda que provavelmente nunca ouvira, Cael estava com um notebook no colo, alguns livros empilhados no chão, uma sacola de mercado vazia e uma garrafa de vinho pela metade ao lado. Como se estivesse ali há horas. Como se aquilo fosse absolutamente normal.
— Você… — Nathan apontou, depois passou a mão pelo rosto. — Você tá morando aqui?
Cael levantou os olhos do notebook devagar, como se tivesse sido interrompido em um artigo de importância quase divina. Piscou, depois sorriu com aquela leveza irritante de quem não vê problema algum em estar completamente fora de lugar.
— Tecnicamente, eu já estava morando aqui. Só formalizei. Vendi minha casa.
Nathan congelou, a mochila escorregando do ombro.
— Você o quê?
— Vendi. Não fazia sentido manter um imóvel vazio, quando acabo vindo parar aqui sempre que apago por mais de três minutos. — Ele deu de ombros, casual, e virou o notebook para Nathan. — Achei um comprador ótimo, um lobisomem divorciado. Eles são ótimos negociadores, muito práticos.
Nathan ainda não havia conseguido processar a parte do “vendi minha casa”. Ele apontou para o computador, depois para o vinho, depois para a sacola.
— Isso aqui… tudo isso…
— É meu. Eu não tenho muita coisa. São só minhas roupas, o computador e um pouco de comida.
Nathan passou por ele, jogando a mochila no chão, e soltou um suspiro desesperado.
— Você não pode simplesmente… aparecer do nada com malas, sacolas e uma enciclopédia do sobrenatural e dizer “vou morar aqui”.
— Mas estou dizendo. — Cael apoiou o notebook de lado e se virou de corpo inteiro, a cauda surgindo por debaixo do moletom e se enrolando preguiçosamente no braço do sofá. — Isso é sua culpa.
— Minha culpa?!
— Sim. Eu tentei resistir. Juro. — Ele ergueu uma mão, teatral. — Mas sempre que durmo, apareço aqui. Sempre. Como se sua casa tivesse um campo gravitacional sobrenatural. E, já que eu não posso ficar acordado pra sempre — ele estendeu os braços como quem apresenta um argumento lógico e inquestionável —, então nada mais justo do que oficializar essa coabitação.
Nathan franziu o cenho, andou em círculos, coçou a cabeça. Ele vendeu a casa dele. Ele não tem mais casa. Ele mora aqui agora.
— Isso é loucura.
— Bem-vindo à minha vida.
— E como exatamente você planeja… sei lá, pagar aluguel? Contribuir com as contas?
Cael inclinou a cabeça, um brilho zombeteiro nos olhos cor de âmbar.
— Eu posso literalmente sugar a energia vital das pessoas. Acha mesmo que eu não consigo lidar com finanças? Eu morava sozinho, sabe.
Nathan apontou pra ele.
Nathan suspirou, cobrindo o rosto com as mãos, mas havia um meio sorriso escapando pelas bordas. Ele não sabia quando isso virou sua vida. Não sabia por que não estava mais surpreso. Talvez tivesse sido no momento em que percebeu que realmente gostava de ter Cael por perto, por mais absurdo que isso fosse.
— Tudo bem — disse por fim, resignado —, mas você vai lavar a louça.
Cael levantou-se, foi até ele e inclinou-se para falar bem perto de seu ouvido.
— Eu faço coisas bem mais interessantes com as mãos do que lavar louça.
Nathan bufou uma risada.
— Eu odeio você.
— E ainda assim me deixou mudar.
— Não deixei!
— Deixou sim. Olha, já estou de pantufas.
E, de fato, estava. Uma pantufa de unicórnio em um pé e uma de morcego no outro.
Nathan enterrou o rosto nas mãos, rindo.
— Eu vou me arrepender disso, não vou?
Cael se jogou no sofá de novo com um ronronar satisfeito.
— Provavelmente. Mas até lá… temos vinho.
Nathan levantou-se da poltrona com um suspiro pesado, cruzando os braços e encarando Cael com aquela expressão típica de alguém que estava prestes a estabelecer ordem em um ambiente onde claramente não havia ordem alguma. A cauda de Cael balançava preguiçosamente de um lado para o outro, como se antecipasse o que estava por vir e, ainda assim, não levasse nada a sério.
— Ok. Já que você vendeu sua casa e decidiu morar aqui sem ao menos me perguntar, a gente precisa estabelecer algumas regras. — Nathan ergueu um dedo, dramático. — Regras de convivência.
Cael ergueu uma sobrancelha, e lentamente seus ombros escorregaram para trás, afundando ainda mais no sofá. O moletom desceu um pouco do ombro, revelando parte da pele pálida e brilhante, os chifres curvados parecendo relaxar junto com ele.
— Regras? — Ele estalou a língua, o sorriso surgindo aos poucos, traiçoeiro. — Você vai me fazer assinar um contrato? Me colocar de castigo se eu quebrar alguma?
— Não é uma má ideia. — Nathan apontou de novo, agora com as duas mãos. — Pelo menos vamos estabelecer uma convivência civilizada. Sem possessões demoníacas, sem feitiços aleatórios e, definitivamente, sem andar pelado pela casa. De novo.
Cael fez uma careta de ofendido.
— Isso foi uma única vez!
Nathan ergueu o dedo, severo.
— Três. Três vezes. E, em uma delas, você estava usando minha cueca.
Cael deu de ombros.
— Achei confortável.
— Não é esse o ponto! — Ele escreveu algo com força desnecessária, como se o papel fosse responsável por sua frustração. — Regra número um: nada de ficar pelado pela casa.
— Sem graça.
— Regra! — Nathan se apressou, antes que Cael pudesse usar aquele tom arrastado que sempre o deixava levemente envergonhado e, pior, interessado. — Regra número dois: você vai lavar sua própria louça. Toda. Eu não vou mais lidar com taças com marcas de batom e cheiro de enxofre.
— Isso é preconceito contra cosméticos demoníacos.
— Três! Nada de sugar energia das visitas!
Cael fez um som ofendido.
— Eu nunca faria isso sem permissão! Ok, quase nunca. Mas o que são visitas, mesmo? Você não tem amigos.
Nathan revirou os olhos e ignorou.
— Quatro: você vai dormir na cama de hóspedes. Sem mais aparições no meu quarto. Ou em cima de mim. Ou debaixo do meu cobertor!
Cael, finalmente, pareceu reagir com um pouco mais de intensidade. Sentou-se com as pernas cruzadas e fez um biquinho. Um biquinho de verdade, com os lábios cheios franzidos e os olhos brilhando como os de um gato pego no flagra.
— Nathan… — Cael falou em tom arrastado, com a voz tão suave quanto chantilly quente —, você tá mesmo me expulsando do seu quarto?
— Não vem com esse drama. — Mas Nathan já estava rindo, tentando manter a compostura. — Acordar com você em cima de mim, quase me matando de tesão, não é saudável.
Cael afundou ainda mais no sofá, emburrado, a cauda chicoteando o ar.
— Você é um péssimo anfitrião.
— E você é um hóspede que invade minha casa e se muda pra minha casa sem avisar!
— Eu sou especial.
— Você é uma dor de cabeça com chifres e uma cauda.
O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo som de Cael pegando a taça de vinho e tomando um gole demorado, o biquinho ainda firme — embora seus olhos brilhassem de puro divertimento.
Nathan esfregou o rosto e balançou a cabeça.
Você pode continuar me alimentando de vez em quando?
Nathan piscou, um pouco pego de surpresa, e depois bufou, o rosto corando apesar de si mesmo.
— Regra cinco: Nada de se alimentar de mim. A não ser que a gente… converse antes. Formalmente.
Cael arqueou uma sobrancelha.
— Formalmente?
— Sim. Como pessoas civilizadas. E vestidas.
O íncubo bufou, cruzando os braços, a expressão emburrada se formando de maneira tão cômica quanto indecente. Fez um biquinho exagerado, inflando as bochechas num gesto quase infantil, e lançou um olhar teatral de sofrimento.
— Então eu não posso nem comer de vez em quando? Só um pouquinho? Um selinho, uma mordidinha…
— Cael.
— Você é muito chato, sabia? — resmungou, afundando-se mais no sofá. — Isso não é um lar. Isso é um mosteiro.
Nathan riu, finalmente, o som escapando antes que pudesse contê-lo. A figura de Cael, um ser tecnicamente infernal, fazendo beicinho de criança contrariada com pantufas descombinadas, era algo que sua sanidade nunca teria imaginado.
— Só… tenta seguir essas regras, tá bom? Só pra que eu não enlouqueça completamente.
Cael olhou pra ele por cima da borda da taça, os olhos cintilando em um tom mais suave dessa vez. Ele colocou a taça de lado e se aproximou devagar, Cael rolou os olhos.
— Ta bom. tá bom. Nada de nudez, vou lavar minha louça, ficar no quarto de hóspedes e nada de sugar sua alma sem consentimento. — Ele pegou a taça de vinho e bebeu casualmente. — Quer um pouco?
— Só se for vinho normal.
— É vinho normal, eu trouxe comigo quando vim para cá. — Nathan pegou a taça de Cael e estava prestes a beber. — Mas se você beber do meu copo pode não ser mais um vinho normal, você sabe o que a saliva de inccubus pode fazer, certo?
Nathan colocou a taça na mesa em frente aos dois.
— Eu vou pegar outra taça para mim então.
Cael observou Nathan se afastar até a cozinha, as costas retas, a expressão determinada como se estivesse tentando se proteger de algo mais perigoso do que as propriedades alquímicas de um vinho compartilhado.
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Capítulo 2
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Doce Inanição
Nathan jamais esperou encontrar o amor na forma de um íncubo. Muito menos descobrir que ele tinha um lado doce, um senso de humor duvidoso e uma tendência incorrigível a usar lingerie como forma...