Capítulo 27
Restaurante Chengxian
Suiyin escolheu um assento junto à janela no segundo andar, com vista para o turbulento rio Baijiang — suas corredeiras esbranquiçadas faziam jus ao nome de “Rio Branco”.
O povoado de Baijiang era habitado, em sua maioria, por familiares de discípulos da Seita Sanqing e cultivadores de nível baixo que preferiam a paz mundana às ambições celestiais.
Xia Shi contemplava o eterno fluxo rumo ao leste de seu lugar habitual, uma paisagem que já testemunhara incontáveis vezes.
— Fadas, o que agrada aos seus paladares? — Uma atendente de bochechas rosadas se aproximou, com um sorriso mais radiante que as flores da primavera.
— O que vocês recomendam? — Suiyin apoiou o queixo nas mãos entrelaçadas.
— Nosso banquete de peixes da temporada de inverno! — A garota se inclinou, conspiradora. — Os peixes pescados no Baijiang estão cheios de essência espiritual. Se pedirem, ganham um prato extra de cortesia!
Enquanto falava, a atendente lançava olhares sutis, mas animados, em direção a Xia Shi, como se a reconhecesse.
Suiyin percebeu e perguntou:
— Você a conhece?
A garota assentiu com a cabeça.
Xia Shi franziu o cenho.
— Por quê… eu não me lembro de você?
— Meu nome é Xia He! — As bochechas da jovem se avermelharam. — Você me salvou, me deu esse nome e convenceu o gerente a me deixar ficar.
— Esperei anos para vê-la de novo!
Xia Shi ficou ainda mais confusa — não se lembrava de nada daquilo.
— Por que a outra salvadora não veio? Eu queria agradecer às duas — acrescentou Xia He, com um tom de pesar.
O peito de Xia Shi apertou. Todas as memórias que perdera envolviam aquela pessoa. Embora o rosto que aparecia em seus sonhos fosse assustadoramente parecido com o de Suiyin, ela não podia ter certeza.
Sonhos, por mais vívidos que fossem, ainda eram só sonhos — não confiáveis.
Já que Xia He mencionara outra benfeitora, devia ser a que ela esquecera.
Aquela que foi forçada a esquecer.
— Perdoe-me… Esqueci muita coisa nesses últimos anos — Xia Shi se inclinou à frente. — Qual era o nome da outra salvadora? Sua aparência?
Xia He inclinou a cabeça, pensativa, e então suspirou:
— Faz muito tempo… Só me lembro de você chamá-la de “Senhorita Pei”.
Pei…
Xia Shi nunca teve amigas com esse sobrenome.
— Xia He! Precisamos de ajuda!
— Já vou!
A garota desceu correndo ao ouvir o chamado.
— A Anciã Wuwei realmente não se lembra? — Suiyin murmurou, pensativa. Estaria a anciã se tornando esquecida?
Xia Shi lançou-lhe um olhar de soslaio, sem responder.
Por que fingir ignorância, se na verdade se lembrava?
Pei… Pei…
Xia Shi pressionou os nós dos dedos contra as têmporas, o olhar se perdendo no rio Baijiang, enquanto os pensamentos voltavam a Quatrocentos Anos Atrás.
Sua última visita ao Restaurante Chengxian fora com Xuanhua.
Xuanhua provavelmente não queria mais nada com ela.
Após o incidente na Região Qinghu, a Cidade Qingyun recolheu-se por um século. Apenas o avanço de Xuanchen ao estágio de transformação evitara a decadência total da cidade.
— Anciã Wuwei?
Xia Shi piscou, vendo Suiyin segurando algo arredondado.
— O que é isso?
— O ovo! — Suiyin revelou o ovo roubado do dragão. Sua superfície rachada agora estava lisa, irradiando um brilho carmesim com marcas que lembravam antigos selos de barreira.
— Olhe como ele mudou! — Ela sacudiu o ovo suavemente entre as duas mãos.
Xia Shi estendeu a mão para detê-la, temendo que a gema fosse virar mingau com tanta sacudida.
— Isso não é um ovo comum.
Suiyin o colocou sobre a mesa e deu um peteleco, fazendo-o balançar.
— Verdade. Qualquer ovo que atrai tribulações de trovão com certeza é encrenca. Que desperdício — suspirou, imaginando a quantidade de sopa de ovos que aquele ovo enorme poderia render.
— Tribulação de trovão? Onde você conseguiu isso? — Xia Shi percebeu algo estranho.
— No Vale dos Dragões Subjugados, em Qingshou. Encontrei nas mandíbulas de um dragão negro. A besta não conseguiu nos derrotar, a mim e ao Lu Ciyou, então tentou esmagar o ovo para provocar uma tribulação de trovão e nos matar. Mas fomos mais rápidos. — O rosto da jovem irradiava orgulho, esperando — implorando — por elogios.
Xia Shi congelou.
Teria sido tudo por causa daquela única palavra — “amiga”?
…
— Nós não somos amigas?
— Não. Nunca fomos amigas, Xia Wuwei.
Palavras estranhas invadiram sua mente. Ela tentou agarrar a memória, mas não conseguia lembrar quem as dissera.
A frustração crescia.
Quanto mais cavava, mais sua consciência parecia se rasgar. Xia Shi finalmente entendeu — não era esquecimento. Era um selo. Alguém mais forte havia selado suas lembranças.
Forçar não adiantaria. Perguntaria às suas irmãs seniores mais tarde.
— Anciã, a senhora sabe que ovo é esse? — Suiyin se inclinou sobre a mesa, curiosa.
Xia Shi balançou a cabeça.
— Nunca vi nada parecido.
— Você disse que ele atrai tribulação de trovão. É melhor parar de brincar com isso, a menos que… — Xia Shi apontou discretamente para cima.
O gesto inesperadamente brincalhão arrancou uma risada de Suiyin.
— Certo, ordem da Anciã.
Xia Shi escondeu as mãos sob a mesa, esfregando as pontas dos dedos, envergonhada.
Enquanto Suiyin guardava o ovo, um alvoroço irrompeu ali perto.
—Idiota cega! Nem consegue segurar uma bandeja! — o rugido de um homem sacudiu a casa de chá.
Do outro lado da escada, um homem de túnica cinza pairava ameaçador sobre a trêmula Xia He.
—D-desculpa! Eu vou pagar! — a garota se curvava repetidamente, as lágrimas caindo como chuva.
—Pagar? Com o quê? — Ele sacudiu a barra da túnica manchada de sopa. — Esta túnica é de seda Kunlun! Você não conseguiria pagar nem um fio!
O dono da loja subiu correndo as escadas, empurrando Xia He para trás de si.
—Elixires nutritivos espirituais da Senhora das Fadas Sanqing. Tesouros inestimáveis.
—Sanqing? — o homem recuou como se tivesse ouvido uma blasfêmia. Ele esbofeteou os elixires, fazendo-os rolar pelo chão. — Pílulas de lixo! Está me insultando?!
A expressão do dono da loja ficou tensa, e o sorriso gradualmente desapareceu.
—O que o cliente deseja fazer?
O homem apontou para Xia He atrás dela.
—Entregue essa garota. Já que causou confusão, que limpe a própria bagunça!
Xia He estremeceu, a voz trêmula enquanto agarrava a manga da dona da loja.
—Não foi de propósito! Eu ouvi uma mulher pedindo socorro vindo dele… foi por isso que derramei a sopa de peixe.
A dona da loja alcançou com a mão para trás e acariciou a mão de Xia He que a segurava.
—Não tenha medo.
—Entregue-a ou eu destruo este lugar! — o homem estourou os móveis próximos com um aceno da mão, fazendo lascas de madeira voarem pelo ar.
Os clientes fugiram do salão do segundo andar, sem querer se envolver com aquele homem implacável.
—Socorro… alguém… me ajude…
O pedido fraco ficou mais claro no salão esvaziado — inconfundivelmente a voz de uma mulher.
—Esse é o som! — Xia He apontou para a bolsa pendurada no cinto do homem. — Vem dali!
—Cale a boca! — o homem rugiu, atravessando a dona da loja como um vulto para agarrar Xia He pela garganta com dedos em forma de garra.
—Solte-a! — a dona da loja gritou, liberando poder espiritual da palma da mão.
Um estalo nauseante ecoou quando o pulso do homem se curvou para trás de repente, os ossos se partindo. Ele caiu de joelhos, uivando de dor.
—Quem está aí?! — seus olhos selvagens vasculharam o salão até se fixarem em duas mulheres junto à janela.
Uma jovem de aparência inocente sorria, enquanto a companheira de branco o encarava com um olhar cortante como lâmina.
—Você.
O homem se moveu como um borrão através do espaço, reaparecendo diante delas.
Quando Xia Shi levantou os olhos, o punho erguido dele congelou no ar, como se preso em âmbar.
—Socorro—
O pedido recorrente agora soava vagamente familiar.
Xia Shi examinou a bolsa espacial em sua cintura — recipientes incomuns para conter seres vivos. Com um leve movimento de dedo, ela a puxou para a própria mão.
—O que pretende fazer?! — o homem imobilizado rugiu. — Isso é meu!
—Seu? — Xia Shi sacudiu a bolsa. — Então explique isso.
—Não é da sua conta! — ele cuspiu, mas o cuspe foi repelido de volta ao rosto por energia de espada.
Suiyin alegremente deu um chute no joelho dele, arrancando outro grito de dor.
Quando Xia Shi quebrou o selo da bolsa, uma energia de espada fria como o inverno rasgou o ar — seu próprio ataque. Ela desviou, mas a bolsa se rasgou, espalhando o conteúdo pelo chão.
Uma mulher quase nua rolou para fora, o corpo coberto de cicatrizes antigas e recentes, a respiração mal perceptível no peito.
O homem aproveitou a rajada de energia espiritual para saltar pela janela direto no Rio Baijiang, desaparecendo sem deixar rastro.
—Socorro… — a figura caída rolou até os pés de Xia Shi, uma mão ensanguentada agarrando sua barra.
—Semente de lótus? — Suiyin pegou uma semente branca entre os escombros espalhados.
Xia Shi lançou um olhar. A semente carregava tanto sua energia de espada quanto a essência de um Lótus Ziyan. Só uma pessoa vinha à mente — Wen Zhishu, do Reino Secreto de Lingyang.
Ela examinou a mulher desmaiada. Através dos cabelos embaraçados, vislumbrou um perfil mais magro do que o rosto que lembrava de Wen Zhishu.
Suiyin se agachou primeiro, afastando os cabelos do rosto machucado da mulher. Embora coberto por hematomas azulados, os traços ficaram visíveis.
—Senhorita Wen?! — Suiyin ofegou. Rapidamente a segurou contra o próprio corpo.
A dona da loja chegou com Xia He, que enxugava as lágrimas.
—Obrigada, salvadora. Me resgatou de novo.
—Ah, é você — disse a dona da loja ao reconhecer Xia Shi. — A Senhora das Fadas não nos visita há anos. Está bem?
Xia Shi assentiu.
—Lembra da pessoa que me acompanhava quando trouxe Xia He aqui pela primeira vez?
—Ah, sim! — a dona da loja assentiu. — Aquele Senhora das Fadas também era gentil.
—Nome? Aparência? — Xia Shi pressionou.
A dona da loja piscou. Elas não eram amigas? Por que perguntar isso agora…?
—Aquela Senhorita das Fadas se chamava Pei Jiu, mas o rosto dela… — A mulher franziu a testa, batendo levemente na têmpora. — Estranho… eu lembrava até agora há pouco.
Após um silêncio tenso, ela se desculpou:
—Não consigo recordar agora, Senhora das Fadas. Se lembrar, mando um retrato.
—Deixe pra lá. — Xia Shi examinou os destroços. Tirou um frasco de elixir de seu anel de armazenamento e ofereceu. — Tome este restaurador.
—Não, não! — a dona da loja recuou. — Já ajudou demais!
Xia Shi deixou o frasco sobre a mesa.
—Pagamento por se lembrar de Pei Jiu.
—Bem… na próxima visita, vou lembrar direitinho.
Xia Shi se virou para Suiyin, que segurava a inconsciente Wen Zhishu.
—Vou levá-la comigo.
—Claro, Senhora das Fadas.
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Capítulo 27
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I Have a Sword to Ask the Heavens
Na grande competição do Reino Sanqing, Suiyin conquistou o primeiro lugar em esgrima, recebendo a rara oportunidade de escolher seu mestre. Selecionar um mestre digno significava...